O MÉTODO ESCOLÁSTICO NA UNIVERSIDADE PARISIENSE DO SÉCULO XIII SANTIN, Rafael UEM/PIBIC/CNPq OLIVEIRA, Teresinha UEM/DFE/PPE

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Transcrição:

O MÉTODO ESCOLÁSTICO NA UNIVERSIDADE PARISIENSE DO SÉCULO XIII SANTIN, Rafael UEM/PIBIC/CNPq OLIVEIRA, Teresinha UEM/DFE/PPE Nosso objetivo neste trabalho é analisar aspectos relevantes da Escolástica, principalmente o método de ensino escolástico desenvolvido nas Universidades do século XIII, em especial na Universidade de Paris. Vale lembrar que este trabalho está vinculado a um projeto maior, coordenado pela professora Drª. Terezinha Oliveira denominado Intelectuais, ensino e política na Universidade Medieval: Tomás de Aquino e Boaventura de Bagnoregio. Esse projeto tem como finalidade analisar o pensamento desses dois grandes intelectuais do século XIII, que marcaram forte presença na constituição da instituição de ensino universitária, em âmbitos que interessaram aos homens medievais e, de maneira análoga, interessam a nós hoje, como o ensino e a política. Assim, para o desenvolvimento de nossas considerações, estudaremos mais a fundo o pensamento de Tomás de Aquino, debruçando-nos sobre duas questões que compõe uma das suas maiores obras, a Suma Teológica. Tomás foi, segundo Nunes (1979), o principal nome da Escolástica medieval, principalmente porque suas formulações contribuíram para que o pensamento característico do medievo alcançasse o apogeu, dito de outro modo, foi com Tomás de Aquino que a Escolástica alcança o equilíbrio entre razão e fé, visto que a conciliação entre estas duas naturezas de conhecimento, distintas, porém complementares, se constituía um de seus maiores paradigmas. As questões que serão por nós estudas são a 15 e a 16, pertencentes ao primeiro livro da Suma Teológica. A questão 15, intitulada O consentimento, que é ato da vontade, comparado com aquilo que é para o fim, trata basicamente das relações entre as duas potências espirituais, o intelecto e a vontade, e revela como pode o homem agir de maneira racional, sem ser impulsionado por impulsos unicamente instintivos. Já a questão 16, intitulada O uso, que é ato da vontade, comparado com as coisas que são para o fim, 1

aborda como é possível aos indivíduos direcionarem suas ações de forma consciente, isto é, tendo em vista a finalidade inerente a cada coisa ou ação. Contudo, vale dizermos que não é possível considerar o pensamento tomasiano dissociado do contexto em que se desenvolveu. Por isso, utilizaremos obras de historiadores consagrados, que se dedicaram ao estudo do período, como Geoger Duby, Henri Pirenne e Jacques Le Goff. Esta necessidade de entendermos o contexto do século XIII advém da afirmação de que toda forma de pensar que emerge em um dado período se fez possível devido às condições históricas deste, sendo inconcebível que se julgasse fora deste determinado recorte. Queremos, no entanto, delimitar os limites temporais desse contexto, pois a nossa matéria de análise corresponde aos aspectos políticos, econômicos e sociais do século XIII 1. Assim, nos limitaremos a descrever o contexto entre os séculos XI e XIII, não por negligenciar o processo da história, mas sim devido ao nosso objeto de estudo. Segundo Le Goff (2005), em A Civilização do Ocidente Medieval, o desenvolvimento da cristandade a partir do século XI possui, supostamente (segundo ele é difícil ordenar as causas e as conseqüências), uma primeira grande causa: o crescimento demográfico. Ele destaca que dois fatores, também supostamente, contribuíram para que existisse esse aumento populacional: o fim das invasões e o aprimoramento das instituições que controlavam a atividade militar 2. Outro fato importante para contextualizar nosso trabalho é o desenvolvimento da atividade agrícola. Le Goff (2005) afirma que, provavelmente, esse progresso tenha nascido da exigência que se vazia sobre a população camponesa para que expandisse a produção agrícola com o intuito de atender aos interesses dos senhores e dos nobres. Foi no século XI 1 Entretanto, não negamos a importância dos acontecimentos anteriores a este século. Ao contrário, consideramos que estes contribuíram e muito para o desenvolvimento dos séculos posteriores, pois a sociedade medieval do século XIII resultou de um conjunto de transformações que vinham acontecendo desde a queda do Império Romano, no século V. 2 É difícil distinguir neste desenvolvimento da cristandade o que foi a causa e o que foi conseqüência, e a maior parte dos aspectos deste processo foram ao mesmo tempo uma e outra coisa. Mais difícil ainda é apontar a causa primeira e decisiva de tal progresso. Mas pode-se negar tal papel a fatores freqüentemente invocados para explicar o arranque do Ocidente. Como o crescimento demográfico, que foi apenas o primeiro e mais espetacular resultado daquele progresso. O mesmo pode-se dizer da relativa pacificação que se instaura no século 10º: fim das invasões, aperfeiçoamento da instituições de paz que regulamentam a guerra (...) (LE GOFF, 2005, p. 58). 2

que o progresso técnico da agricultura encontrou seu período de crescimento mais acelerado, devido a necessidade de suprir as necessidades da população que, de acordo com o autor, praticamente dobrou entre os séculos X e XIII. O crescimento populacional e o desenvolvimento do feudalismo foram, acredita Le Goff (2005) o início do grande crescimento da cristandade medieval após a Alta Idade Média. Porém, para chegarmos a cumprir nossos objetivos, precisamos nos aproximar das Universidades, que nasceram no século XIII. Para isso, destacaremos a seguir dois acontecimentos que foram decisivos para o nascimento da Universidade, mas que não seriam possíveis sem o impulso inicial proporcionado, segundo Le Goff, pelo renascimento urbano e comercial. A base da sociedade medieval foi inegavelmente agrícola. Assim, o renascimento comercial, afirma Le Goff (2005), foi impulsionado não somente pelo excedente populacional, mas também pelo desenvolvimento técnico do trabalho rural. Esse desenvolvimento do sistema de produção feudal contribuiu de maneira efetiva para o desenvolvimento das cidades e do comércio, no sentido de promover o progresso dos diversos elementos que compõe a sociedade como um todo. É preciso aceitar o fato de que o nascimento e o desenvolvimento das cidades medievais deve-se a um conjunto complexo de estímulos e, sobretudo, a diversos grupos sociais. [...] Certamente as cidades atraíram homens novos, recém-chegados evadidos do campo, das famílias monásticas, livres de preconceitos prontos a negociar e obter ganhos [...] (LE GOFF, 2005, p. 69-70, grifo nosso). Nessa passagem, o autor nos deixa claro que o renascimento urbano é resultado de vários estímulos, dentre os quais se destacam o crescimento populacional e o desenvolvimento dos meios de produção rural. Ele concede maior destaque ao segundo, pois considera que, sendo a agricultura a base da sociedade medieval, o amadurecimento do sistema feudal e da produção agrícola abastecia a cidade com homens, além de fornecer-lhe mantimentos. O autor destaca que no início do processo de renascimento urbano, a cidade e o campo viviam uma relação de co-dependência, a cidade necessitava do campo, e o campo da cidade. Entretanto, com o avanço do seguimento urbano, a cidade foi estabelecendo uma 3

independência em relação ao meio rural, adquirindo propulsão própria para seu desenvolvimento. Para nascer, as cidades tiveram necessidade de um meio rural favorável, mas, na medida em que se desenvolveram, exerceram uma força de atração cada vez maior na área rural circunvizinha. [...] pouco a pouco conseguirá substituir as diretrizes vindas do campo por impulsos próprios (LE GOFF, 2005, p. 70-71). Esse impulso próprio a que Le Goff faz referência constitui a atividade econômica que se configurará no meio urbano, em outras palavras, foi a atividade do comércio que se constitui no meio pelo qual as cidades conseguiram se desenvolver e se colocar, relativamente, independentes do campo. O autor ainda esclarece que as atividades comerciais e artesãs estavam submetidas às condições impostas pelos senhores feudais, pois as matérias primas advinham dos feudos e os senhores aplicavam taxas e impostos sobre os comerciantes viajantes que passavam por seus domínios. O renascimento comercial foi crucial para o surgimento da Universidade, tendo em vista que esta instituição emergiu nos centros urbanos como corporações, cujo ofício era o ensino. Os séculos XII e XIII se destacaram pelo reflorescimento da vida urbana impulsionada pela atividade dos artesãos e dos mercadores. Segundo Le Goff (2005, p. 75), a escolástica é filha das cidades, e reina nas instituições novas, as universidades, corporações intelectuais. Assim, o renascimento urbano proporcionou as condições para nascimento e crescimento da Escolástica, pois foram nos centros urbanos que nasceram as universidades, corporações dedicadas ao ensino e ao estudo escolástico. Para fortalecer o comércio, os artesãos, que alimentavam a circulação de mercadorias e assim proporcionavam o desenvolvimento econômico das cidades, se organizaram em corporações de ofício. Essas corporações eram associações formadas por pessoas que exerciam o mesmo ofício e surgiram para organizar o processo produtivo de bens de consumo e para defender os interesses dos artesãos do mesmo segmento. Ao mesmo tempo em que surgiram os diversos ofícios que tinham como objetivo produzir os bens de consumo, nasceu uma figura caracterizada por Jacques Le Goff, em Os Intelectuais da Idade Média, como professor, homem que tinha como objetivo desenvolver 4

o espírito dos alunos. A fim de exemplificar o nascimento deste novo homem: o intelectual, o autor discorre sobre a trajetória de Pedro Abelardo. Pedro Abelardo foi, segundo Le Goff (1995), o primeiro grande professor. Especialista em lógica, as suas maiores contribuições referem-se à retomada do debate entre razão e fé 3 e à fundamentação do método escolástico, notadamente observado em Sic et Non, obra na qual discorre sobre os possíveis equívocos que causam falsas interpretações da Sagrada Escritura e ainda afirma que o interrogar assíduo e freqüente é definido como primeira chave da verdade (ABELARDO, 2005, p. 129). Ele protagonizou importantes debates nos quais contribuiu para o amadurecimento do método dialético 4 para o estudo. Abelardo foi primeiro um especialista em lógica e, como todos os grandes filósofos, estabeleceu antes de tudo um método. Foi um grande defensor da dialética. [...] com seu Sic et Non de 1122, deu ao pensamento ocidental seu primeiro Discurso sobre o Método (LE GOFF, 1995, p. 46). Assim, as características observadas na figura de Abelardo são aquelas dos professores que formaram as corporações universitárias posteriormente. Ele representou o nascimento de um novo intelectual, cujo ofício característico consiste ensinar e debater, e donde emergiram os primeiros professores universitários. A partir do agrupamento de mestres como Pedro Abelardo e alunos, foi se constituindo o espírito da Universidade, que mais tarde se consolidaria como universitas studium. Como as corporações de ofício, a corporação de ensino universitário surgiu com o propósito de organizar e sistematizar a atividade dos professores e alunos, e também para defender os interesses dos mesmos diante dos poderes laico e eclesiástico. A Universidade, segundo Ullmann, em A Universidade Medieval (2000, p. 192), foi, antes de tudo, uma simples associação de indivíduos, sem o caráter institucional das universidades modernas, 3 Este debate entre estas duas naturezas de conhecimento foi principiado por Santo Anselmo de Bec, que escreveu, a pedidos, Monológio, na qual prova a existência de Deus sem recorrer a Sagrada Escritura, ou seja, somente pela razão. 4 Vale lembrar que os medievais tinham uma concepção particular de dialética, cujo sentido difere daquele dado pelos teóricos vinculados à teoria do materialismo histórico. A dialética para os medievais dizia respeito ao diálogo, o debate entre idéias, o confronto entre pensamento distintos. 5

carecendo, inicialmente, de uma organização institucional e constituída apenas de um grupo de mestres e alunos reunidos sob o mesmo princípio, a educação intelectual. A partir do século XIII, assim como as outras corporações, as universidades se desenvolveram e alcançaram seu apogeu, principalmente devido ao ingresso das ordens mendicantes, as traduções e a circulação das obras de Aristóteles, a construção de edifícios próprios para a Universidade, entre outros fatores que conduziram o ápice dessa instituição. É nesse contexto que vemos florescer a Escolástica. As universidades, especificamente a de Paris, na qual Santo Tomás e São Boaventura ministram aulas, tornam-se palco do desenvolvimento intelectual e moral dos indivíduos, extremamente necessário para o desenvolvimento de civilização medieval. A escolástica é filha das cidades, e reina nas instituições novas, as universidades, corporações intelectuais. O estudo e o ensino tornam-se um ofício, uma das numerosas atividades em que se pode especializar no canteiro urbano (LE GOFF, 2005, p. 75). Resta-nos, portanto esclarecer por que o método de ensino escolástico e a Universidade se constituíram como essenciais ao desenvolvimento da sociedade ocidental medieval e, para isso, faremos referência à concepção de civilização de François Guizot, analisada por Oliveira em Guizot e a Idade Média (1997). A autora nos coloca que Guizot considera os indivíduos e as relações sociais como os dois pilares substanciais que compõe a civilização. Partindo desse princípio, segundo ele, a civilização somente poderá continuar existindo se esses dois sustentáculos se desenvolverem reciprocamente, ou seja, é necessário que o indivíduo e as relações sociais amadureçam para que a sociedade exista e cresça. Tanto o indivíduo como as relações sociais fazem parte, portanto, de uma totalidade que, se abalada pela deficiência de um ou de outro pilar, pode conduzir a sociedade à ruína. Quando Guizot, afirma Oliveira (1997), faz referência ao desenvolvimento do indivíduo, quer dizer da sua capacidade reflexiva, habilidade que o caracteriza como animal racional e social. Essa habilidade mental/racional está presente integralmente no cotidiano do homem, de modo que seu desenvolvimento é fundamental no sentido de potencializar a 6

sua intervenção na natureza e na sociedade, à medida que é capaz, pela razão, de refletir sobre seu papel político e social. Segundo Guizot, a única forma de alcançar esse desenvolvimento é por meio do exercício dessas capacidades. Esse exercício acontece necessariamente por meio da educação, tanto ética e moral quanto intelectual. É precisamente por via da educação que os homens aprendem a pensar de maneira reflexiva e, deste modo, principiam a entender o funcionamento da sociedade e podem fazer parte dela como sujeitos atuantes. A educação a qual nos referimos acontece direta ou indiretamente no seio das instituições, especializadas ou não. No século XIII, essa função de amadurecer a capacidade reflexiva dos homens intencional e sistematicamente cabia principalmente às universidades, nas quais o ensino e o estudo eram guiados pelo método escolástico, objeto de nossa análise. No que diz respeito às relações sociais, Guizot considera que esse é o principal pilar que sustenta e forma a civilização, pois é responsável por agrupar um conjunto de indivíduos em torno de valores comuns. Essas relações se realizam, essencialmente, pela igualdade de princípios, ou seja, envolve minimamente indivíduos que compartilham dos mesmos valores, das mesmas idéias. Seu desenvolvimento exige do homem uma capacidade de perceber o outro e estabelecer com este um acordo social, que lhes permitem a convivência pacífica e construtiva. Assim, são dependentes do desenvolvimento das habilidades cognitivas e afetivas explicitado anteriormente. Devido a sua condição, as relações sociais só acontecem se os indivíduos possuírem a capacidade de compreender e relacionar coisas que se sucedam fora do mundo material, no campo das idéias, no imaginário dos homens. Por essa razão, Guizot vincula o desenvolvimento das relações sociais ao desenvolvimento do indivíduo, no que diz respeito à habilidade de refletir, de pensar. Nessa perspectiva, podemos considerar que o desenvolvimento dos sustentáculos da civilização, isto é, do homem e das relações sociais, e, portanto, dela própria, depende do processo de transmissão e apreensão do conhecimento, e que a responsabilidade sobre a manutenção da prática educativa cabe a uma instituição ou segmento social que é capaz de exercer essa função. 7

Nesse sentido, podemos considerar a importância que as universidades e o método escolástico tiveram no desenvolvimento da sociedade medieval, pois foram nos debates e nas lições ocorridas no seio dessa instituição que a Escolástica se desenvolveu e proporcionou aos homens uma leitura filosófica própria do seu presente. A prática educativa exercida por Tomás na Universidade de Paris durante o século XIII, está intimamente ligada ao desenvolvimento do pensamento escolástico e, por conseguinte, da própria sociedade medieva. Temas relacionados à política, à ética e à educação foram brilhantemente discutidas pelo mestre Tomás, e transcritas posteriormente em forma de questões disputadas. A questão na idade média diz respeito ao conteúdo de um debate travado na Universidade entre mestres e alunos. A questão se organiza da seguinte forma: primeiro tem-se uma tese acerca do tema a ser discutido; em seguida vêm as objeções, que visam refutar a tese inicial; depois, coloca-se uma contra-objeção, que, de certo modo, apóia a tese inicial e tenta desbancar as objeções feitas; enfim, segue a resposta, na qual se encontra a solução do problema proposto; por último, seguem as respostas às objeções. Seguindo estes moldes, muitas das discussões feitas por Tomás foram de suma importância para a sociedade medieva. Aliás, segundo Pieper (2001), a prática regular da disputatio permitiu que a Universidade na Idade Média conservasse sua comunicação com a totalidade social, mantendo ativa uma das finalidades essenciais desta instituição, que era a de possibilitar a reflexão sobre as vicissitudes daquela época. Tomemos como exemplo a Questão 15 da primeira parte da Suma Teológica. O Aquinate discute, como já dissemos, a relação entre intelecto e vontade, por meio da qual o homem é capaz de realizar ações conscientes, isto é, por meio do consentimento os indivíduos praticam seus atos de forma racional: Propriamente falando não há consentimento nos animais irracionais. E a razão disso é que o consentimento implica a aplicação do movimento apetitivo para fazer algo. Ora, aplica o movimento apetitivo para fazer algo é próprio do que tem poder sobre o movimento apetitivo. [...] Os animais irracionais não têm poder sobre o movimento apetitivo, mas tal movimento existe neles pelo instinto da natureza. [...] Por esse motivo, não se diz que propriamente consentem, porque isso pertence à natureza racional, que tem domínio sobre o movimento 8

apetitivo, podendo ainda aplicá-lo ou não a isso ou àquilo (TOMÁS DE AQUINO, 2001, p. 207). Na passagem acima, Tomás está discutindo se o consentimento pertence também aos animais irracionais, ou não. Contudo, podemos observar a preocupação deste pensador com os problemas relacionados aos atos humanos com relação à sociedade, haja vista que considera o consentimento próprio dos seres racionais, à medida que estes podem ou não praticar algo, enquanto que aos animais irracionais resta apenas conceber aquilo que os instintos lhes mostram como adequado. O conhecimento, que para Guizot consiste no elemento que diferencia os homens dos demais animais, se coloca nesta discussão como pressuposto fundamental. Com efeito, se os homens, únicos seres racionais, tem a potencialidade de regular sua vontade por meio do consentimento, é preciso que no mínimo possuam conhecimentos básicos que lhes permitam ter clareza das situações que se lhes apresentam, pois é no intelecto, faculdade responsável pelo aprendizado e pela reflexão, que o consentimento busca subsídios para tornar-se ato da vontade. O século XIII, como foi dito, foi marcado principalmente pelo desenvolvimento das cidades, impulsionado pelo renascimento do comércio e aprimoramento da produção feudal, e pelo debate a respeito da separação entre os poderes laico e eclesiástico. Estes fatos desenham um contexto novo, sobre o qual era preciso ter entendimento para que se pudesse tomar os devidos posicionamentos, orientados para a sustentação do bem-comum. Este é um dos caminhos para entendermos a discussão feita por Tomás acerca da relação intelecto-vontade, que chega até à questão da ação consciente do ser racional. Ao nosso ver, a importância de se debater sobre como o homem age por sua razão, portanto conscientemente, reside no fato de homens do século XIII terem buscado entender o seu tempo para que pudessem agir como sujeitos de sua própria história. O que colocamos até agora faz parte de nossa pesquisa de iniciação científica, que está sendo desenvolvida sob o amparo do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) vinculada ao Programa Institucional de Iniciação Científica (PIBIC-UEM), e justifica-se por três razões principais. 9

Primeiramente, podemos afirmar que o presente trabalho contribuirá para o nosso processo de formação acadêmica em Pedagogia, pois, segundo Libâneo, ela é um campo de conhecimento sobre a problemática educativa na sua totalidade e historicidade (1998, p.1998). Assim, o método escolástico de ensino compreende a forma pela qual os homens medievais assimilavam os saberes e valores desenvolvidos socialmente, constituindo, portanto, objeto de estudo da Pedagogia. A segunda razão que acreditamos sustentar o nosso trabalho é o fato de que consideramos importante a compreensão do processo educativo medieval para entendermos a própria sociedade medieva. Segundo Oliveira, em Escolástica (2005), a Escolástica não foi simplesmente um método ou um fenômeno intelectual isolado, fruto da criatividade de alguns teóricos da medievalidade, mas sim o que direcionou as relações sociais na Idade Média. Foi a forma característica dos homens medievais pensarem e responderem as questões humanas de sua época (2005, p. 10). Acima de tudo, trata-se de uma forma nova de pensar que traz em seu bojo o conjunto da sociedade, que, de algum modo, atinge desde o mais humilde dos homens até o soberano (OLIVEIRA, 2005, p. 10). Nessa passagem Oliveira explicita a importância da Escolástica para os homens medievais, pois ela constitui a essência do pensamento medieval, da qual eles obtinham os saberes e valores necessários para regulamentar suas relações sociais, bem como explicações teóricas para os diversos fenômenos naturais e sociais. Sendo, portanto, a Escolástica o corpo teórico que abarca o conjunto da sociedade medieva, por meio da análise sistemática da forma pela qual eles formavam intelectual e moralmente os homens, podemos entender a dinâmica social que se desenvolvia no século XIII. A partir desse segundo motivo apresentado acima, temos um terceiro que julgamos não menos importante, que se constitui na tentativa de explicar que o homem é um ser social, ou seja, por meio do estudo sobre a construção do saber em uma instituição de ensino na Idade Média, podemos entender que o homem é um ser social que apresenta mudanças constantes no decorrer do processo histórico. Assim, pretendemos afirmar que 10

não há uma forma correta de ensino, mas sim aquela que os homens desenvolvem em seu presente. Nessa perspectiva, concordamos com Políbios no que tange à essência da história. Ele afirmou que nenhum outro corretivo é mais eficaz para os homens que o conhecimento do passado (POLÍBIOS, 1985, p. 41). Assim, podemos afirmar que o estudo do nosso objeto se justifica por demonstrar que os homens medievais encontraram em sua história a forma de educar, e que devemos, hoje, buscar nas questões de nosso tempo a melhor maneira para ensinar e aprender. Referências ABELARDO, P. Sic et Non. Porto Alegre: Edipucrs, 2005. LE GOFF, J. A Civilização do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC, 2005. LE GOFF, J. Os Intelectuais na Idade Média. Tatuapé: Brasiliense:, 1995. LIBÂNEO, J. C. Pedagogia e Pedagogos, para que?. São Paulo: Cortez, 2000. NUNES, R. História da Educação da Idade Média. São Paulo: Edusp, 1979. OLIVEIRA, T. Escolástica. São Paulo: Mandruvá, 2005. OLIVEIRA, T. Guizot e a Idade Média: Civilização e Lutas Políticas. Assis: Unesp, 1997 (Tese de Doutorado). PIEPER, J. Abertura para o todo: a chance da Universidade [on-line]. 2001. Disponível em: <http://www.hottopos.com.br/mirand9/abertu.htm>. Acesso em: 11 ago. 2007. POLÍBIOS. História. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985. TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica v. I. São Paulo: Loyola, 2001. ULLMANN, R. A. A Universidade Medieval. Porto Alegre: Edipucrs, 2000. 11