A CRIANÇA NOS BAIRROS OPERÁRIOS PAULISTANOS -BRÁS/MOOCA/BELENZINHO-NO SÉCULO XX(1910/1940)



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Transcrição:

A CRIANÇA NOS BAIRROS OPERÁRIOS PAULISTANOS -BRÁS/MOOCA/BELENZINHO-NO SÉCULO XX(1910/1940) AUTOR: VANDERLICE DE SOUZA MORANGUEIRA FILIAÇÃO INSTITUCIONAL : UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (Mestranda) Ao concentrar nosso olhar sobre os bairros operários paulistanos como Brás, Moóca e Belenzinho percebemos que os mesmos retratam bem o cotidiano das crianças entre os anos de 1910 e 1940, permitindo traçar um paralelo entre ser criança e ser criança operária. A vida das crianças nesses bairros operários era simples, com muita ordem e controle rígido dos pais. Por exemplo, meninos e meninas brincavam separadamente. As brincadeiras dos meninos eram Futebol, Jogo de pião e as das meninas eram casinha, boneca, passa anel, roda, entre outras. Os brinquedos dessas crianças eram modestos e na maioria das vezes feitos por seus próprios pais como boneca de pano, carrinho de madeira. Nas escolas dos bairros operários também imperava a divisão de acordo com a idade e o sexo, ou seja, Escola de Meninos, Escola de Meninas. As matérias ministradas pelas professoras eram comuns a ambos, apenas com algumas variações como bordar, costurar, pintura nos cursos de meninas. No ensino escolar também existia uma rigidez de horários, a postura na fila, a disciplina em sala de aula. Caso contrário, as crianças eram severamente castigadas por suas mestras. Em relação ao trabalho nas fábricas podemos afirmar que a criança trabalhava longas jornadas (10/12 horas por dia), recebendo pequena remuneração, que consistia na maioria das vezes como um complemento para o sustento da família. As condições de trabalho eram ruins, pois a criança trabalhava como adulto e na maioria das vezes sem equipamentos de proteção adequados. Às vezes, as crianças freqüentavam as aulas à noite quando havia escolas no bairro. O lazer ficava relegado aos fins de semana ou não existia. Acreditava-se que o trabalho infantil tirava as crianças da rua, evitando o ócio e a marginalidade porém, sabemos que o trabalho da criança era lucrativo para o empresariado e que, por outro lado, contribuía, ainda que modestamente, para o rendimento mensal das famílias. Nesses bairros operários, as festas existentes eram basicamente as religiosas (Páscoa, Santo Padroeiro, Natal etc.) e às vezes, festas para as crianças no Natal. No decorrer do início do Século XX não era fácil ser criança dentro do universo de um bairro operário, pois esta tinha muitas obrigações e deveres ( ser bom filho, bom aluno, bom cristão, bom operário ). Resta perguntar quais seriam os sonhos, os desejos, dessa criança nessa sociedade. O nosso estudo tem como objeto de análise o cotidiano da criança na Vila Maria Zélia, situada no Belenzinho, durante os anos de 1910 a 1940. A partir desse foco central pretendemos 1

analisar a criança desde a creche o trabalho na fábrica. Para isso procuraremos mostrar todo o universo desta criança, resgatando aspectos importantes como a educação, o trabalho, o lazer, as relações familiares, as festas religiosas ou não, enfim todo o sentido de ser criança e ser criança operária dentro de uma vila operária. O contraponto desse trabalho será mostrar a criança operária também em outros bairros como Moóca e Brás, assim como fora das vilas operárias, inclusive no próprio Belenzinho. O estudo desses bairros, característicos sobre a vida operária, contribui para compreender os costumes da época, suas transformações, o papel das crianças na sociedade em que viveram. Os aspectos sobre a criança inserem-se em um trabalho mais amplo onde o foco central será o universo da vila operária Maria Zélia. Os bairros operários como Brás, Mooca e Belenzinho surgiram acompanhando o processo de desenvolvimento industrial e a urbanização durante a segunda metade do século XIX. Por sua vez, possuem características comuns como : localizavam se em lugares onde os terrenos eram baratos;os operários em sua maioria eram imigrantes; as moradias em geral eram habitações coletivas e casas de cômodos, além das vilas operárias. Essas habitações não possuíam condições necessárias a uma vida adequada, desde a falta de higiene, ausência de privacidade, sendo foco de muitas doenças. As famílias operárias durante as primeiras décadas do século XX lutavam para superar as precárias condições de vida, devido aos baixos salários. Isso fazia com que os filhos e filhas desses operários aprendessem desde cedo que a infância não é apenas brincar, estudar, mas em sua maioria, trabalhar para ajudar os pais nos sustento da família. Nessa época, as crianças começavam a trabalhar cedo por volta dos 7, 8 anos para os meninos e 9, 10 anos para as meninas. O trabalho, apesar da parca idade não era fácil ou leve. Os meninos trabalhavam nos mais variados serviços desde entregas de jornal, operários das fabricas de vidro, entre outros. Em geral, as meninas trabalhavam nas fábricas de tecido como varredeiras entre as máquinas ou mesmo em oficinas de costura mas, há registros de muitas meninas que trabalhavam como domésticas em casas de família, cuidando de crianças ou arrumando a casa. O dia a dia dessas crianças, como já foi dito, não era fácil. Por exemplo, os meninos que trabalhavam nas indústrias de vidros, que tinham que gravar em metal ou soprar o vidro derretido para fazer garrafas e outros objetos e cujo horário de trabalho começava a contar depois de já estarem na fábrica (8/9 h), fazendo com que muitas vezes tivessem que trabalhar até a noite ou mesmo de madrugada. Entre eles, citamos Jacob Penteado, que nos conta que o calor que saía das fornalhas era muito quente, fazendo com que ficassem com dificuldade de respirar e até contraíssem doenças mais sérias como a tuberculose que não tinha cura na época. 2

Além dessa exploração as crianças eram castigadas pelos donos das fábricas ou até mesmo por operários mais velhos das fábricas quando o serviço não era satisfatório ou por pura maldade. Muitas vezes, as crianças reagiam com pequenas traquinagens ás escondidas como jogar pedras, pois tinham medo de represálias. Os salários recebidos pelas crianças operárias eram irrisórios, outras vezes apenas trabalhavam em troca de ter um local para morar ou mesmo pequenas gorjetas. Em relação ao enfoque da educação dessas crianças percebemos que ela se dava por partes: da creche ao jardim da infância, curso primário e dividido de acordo com o sexo e idade. Normalmente ocorria em três períodos, sendo o da noite reservado às crianças que trabalhavam, havendo crianças que trabalhavam em turnos diferenciados e freqüentavam a escola nos cursos diurnos antes ou depois do trabalho. O ato de estudar era muito difícil, começando desde a dificuldade de obter o material necessário (livros, cadernos, uniforme etc), a distância até a escola e até mesmo o cansaço depois de um turno exaustivo. Algumas professoras mais generosas emprestavam seus livros para que os alunos pudessem ler. O número de escolas nesse período era pequeno e não atendia a todas as crianças. Além disso, muitas crianças devido à necessidade de ter que trabalhar longas jornadas, fazer horas extras para contribuírem com o sustento da casa que era primordial, deixavam a escola antes da conclusão do curso primário. Outros fatores que afastavam as crianças da escola eram : os castigos, no caso de crianças mais rebeldes, as reprovações que desmotivavam o prosseguimento dos estudos ou, em situações mais sérias, o jubilamento da criança. Nas escolas eram ministradas matérias básicas como: linguagem, aritmética, geografia e história do Brasil e também existiam cânticos em homenagem aos mitos nacionais, aos santos padroeiros etc. Algumas escolas ministravam o catecismo durante as aulas do curso normal, com dispensas aos alunos não católicos, o que muitas vezes provocava um isolamento desses alunos nesse momento por não terem outra atividade para fazer. Os bairros operários possuíam um caráter festivo que envolvia todos adultos e principalmente as crianças,pois representava para muitos a única forma de lazer, o contato com os familiares e amigos mais distantes e, para a criança, a possibilidade de aprender novas brincadeiras, se divertir. Entre as festas religiosas de maior destaque temos a primeira comunhão, as festas em homenagem aos santos padroeiros, a páscoa e o natal. O dia da primeira comunhão para a maioria das crianças era uma festa, além do significado religioso de receber cristo, cerimônia que era acompanhada de comes e bebes no final. As festas em homenagem ao Santo padroeiro, a Virgem Santíssima, eram normalmente acompanhadas de procissões e quermesses no final. Para realizar as procissões era necessário pedir autorização ao 3

bispo e, em geral, eram organizadas com bastante antecedência. Algumas, como a de São Benedito, durava de 3 a 4 dias com quermesses, fogos etc.. (1) Nessas festas religiosas ocorriam representações de crianças vestidas de anjos, nossa senhora e eram encaradas de maneira divertida pela criança que não vinha com seriedade a esse ato. As festas de caráter religioso faziam parte do cotidiano da maioria das famílias, que nessa época eram em sua maioria católica. Nas festas familiares, como o natal e a páscoa, observamos o entusiasmo com que eram aguardadas, desde o preparo das comidas, o sentido religioso e para muitos o encontro com a família. No natal encontramos registros do ato de presentear, mas relegados a um segundo plano, sendo o caráter religioso a montagem do presépio, o culto ao menino Jesus - primordiais. Entre as famílias italianas no Brás havia o costume de fazer o panetone. Na páscoa encontramos o mesmo sentido religioso e entre os italianos era celebrada a pascoaleta (segunda-feira após a páscoa). Mas não podemos esquecer das festas juninas que aconteciam no Brás, Mooca e Belenzinho e nos bairros operários em geral, envolvendo a participação de todos os moradores, não podendo faltar comida, dança, fogueira, homenagem aos santos padroeiros e brincadeiras como subir no pau de sebo etc. Porém, nem só de festas religiosas viviam os operários dessa época. Havia, também, as festas de caráter profano como o carnaval, onde o povo acompanhava o corso pelas ruas brincando com água e farinha, numa brincadeira que envolvia a família e toda a comunidade. Existiam também os bailes carnavalescos mas, eram destinados aos jovens e adultos. Nas escolas encontramos os registros das festas cívicas, como culto à bandeira, realizadas na própria escola, enquanto as comemorações do 1º de maio que eram de caráter nacional, era realizadas na rua, onde ocorriam discursos, conflitos sendo em alguns lugares acompanhadas de almoço e piquenique. No inicio do século XX começam a surgir outros tipos de moradia para os operários : as vilas operárias que são mais higiênicas, mas também responsáveis por um caráter disciplinador do operário. Entre elas destacamos a Vila Maria Zélia, criada pelo industrial Jorge Street, pertencente a Cia. Nacional de Tecidos de Juta., que oferecia creche para os filhos de funcionários, escola, hospital, armazém e até uma capela para os católicos fazerem suas orações. A partir de agora procuraremos fazer algumas considerações a respeito de nosso foco central de estudo que é a Vila Maria Zélia. Ao entrarmos na vila localizada no bairro do Belenzinho temos a sensação de viver em um mundo diferente dos bairros operários e até do próprio Belenzinho seja pela sua organização, ordem, união das pessoas. Enfim, temos a idéia de vivenciar um outro mundo. 4

No universo fascinante dessa vila procuraremos concentrar nosso olhar sobre o ser criança, desde a idade de freqüentar a creche até o curso primário, bem como a criança trabalhadora, abordando aspectos como educação, lazer, trabalho, com base, principalmente, em relatos de moradores mais antigos que viveram e ainda vivem na vila, permitindo-nos conhecer melhor como era morar na vila, os costumes, as transformações da época. Com relação à educação dessas crianças na vila, existiam os prédios destinados à creche, ao jardim da infância e ao curso primário- este dividido em escolas de meninos e meninas sendo os alunos agrupados em três períodos: de manhã, estudavam os meninos, em quatro salas do prédio destinadas à escola de meninos; à tarde, estudavam as meninas, também em quatro salas do prédio destinadas à escola das meninas; à noite, estudavam rapazes e moças que trabalhavam na fábrica durante o dia, porém, conforme o costume, em salas separadas As aulas no jardim da infância eram dadas para os meninos e meninas, filhos de operários da fábrica entre a idade de quatro a sete anos. Os pequenos aprendiam as noções de escrever e ler, a doutrina cristã através de história e quadros normalmente dados por um capelão, sendo que com a professora que, nos primeiros tempos, era uma irmã, aprendiam os hinos religiosos em homenagem a São José e Maria Santíssima. Apesar do oferecimento da educação, nem todos chegavam a concluir o curso primário, pois grande parte abandonava o curso após os dois primeiros anos, seja pela necessidade de trabalhar em período integral ou devido ao cansaço para estudar à noite. O material necessário para o funcionamento da escola, bem como cadernos aos filhos de operários e uniforme escolar, a contratação de professoras e a manutenção da estrutura escolar era fornecida por D. Zélia Street (esposa do industrial Jorge Street, dono da fábrica e da vila). Os alunos normalmente moravam na vila mas, alguns vinham de bairros próximos, sendo transportados por uma jardineira pertencente à Cia. de Tecidos de Juta. Entre as matérias ministradas, havia aulas de religião e canto em louvor aos benfeitores e hinos nacionais. As aulas em seu início e até meados dos anos vinte eram ministradas pelas irmãzinhas da imaculada conceição, contratadas por D. Zélia mas, quando a vila é vendida aos Scarpa, passa a professores da rede estadual de educação e por volta da década de 40 deixa de funcionar devido ao surgimento do SESI na região. Esses dados são fornecidos por um álbum sobre a Vila Scarpa, bem como pela entrevista realizada com a Sra. Cinta Ramos Amantero, funcionária da fábrica, estudante da escola e moradora da vila há cerca de oitenta anos que nos informa: Meu pai veio para a vila em 1917- para trabalhar na fábrica e quem trabalhava na fábrica tinha direito a morar na vila, podia trabalhar na fábrica e não morar na vila, mas ao contrário não... A Dona Zélia era uma santa dava tudo para a gente, caderno, lanchinho era tudo uma beleza 5

você precisava ver.. A gente cantava para entrar, cantava no recreio ah. No recreio a gente brincava de roda, de correr, uma vez eu cai e desmaiei e fui parar na enfermaria, fiquei tonta sabe, chamaram minha mãe e ela veio... Cada aluno tinha a caixinha com as suas coisinhas (tinta para escrever)...etc eu era danada gostava de correr, mas nunca fiquei de castigo. (2) Nesse relato percebemos que D. Zélia esposa do sr. Jorge Street era muito querida e que existia o medo do castigo, o que gerava a disciplina, o respeito aos professores e uma idolatração aos benfeitores Zélia e Street. Com relação às festas nacionais, como Dia da árvore, Dia da independência, eram celebradas no próprio grupo escolar com a assistência das reverendas irmãs professoras, com a presença dos pais e quando possível dos diretores da companhia, O Sr. Street e D. Zélia. Existiam as festas religiosas como a consagração a Nossa Senhora, São José, Adoração ao Santíssimo e a primeira comunhão. Segundo a Sra. Cinta Ramos Amantero : A D. Zélia uma santa ela sabe nos dava a roupa da primeira comunhão, o terço e depois da comunhão ela nos oferecia um lanche bem reforçado. Era obrigado a ir a missa todos os domingos, pois na segunda feira a professora perguntava como foi.... (3) O catecismo para as crianças era dado na própria escola para os filhos dos operários e moradores da vila, pelas professoras- irmãs e fora da escola para os moradores do bairro. Os alunos que não eram católicos não eram obrigados a assistir as aulas. Na Vila havia muitas festas como o Natal, Dia Das crianças, Festa Junina e naturalmente as festas religiosas. No natal o industrial Jorge Street distribuía presentes aos filhos de seus operários. No dia das crianças D. Zélia distribuía muitas guloseimas para as crianças. Como era característico entre os bairros operários, como o Brás, Moóca, Belenzinho e na própria vila, comemorava-se as festas juninas com muitas barraquinhas de comida como bolo de fubá, quentão, pipoca, além das brincadeiras, patrocinadas por Jorge Street. Atualmente é mantida essa tradição junina, organizada pelos próprios moradores da Vila,conforme nos conta D. Cinta. O Trabalho das crianças nos bairros operários era intenso no Belenzinho, em especial na Vila Maria Zélia sendo que D. Cinta nos conta que começou a trabalhar aos dez anos na fábrica, recolhendo a linha das máquinas e varrendo entre elas. O início de seu trabalho ocorreu pela necessidade do dinheiro para a família e a necessidade de uma casa maior, pois conforme o número de trabalhadores da família na fábrica era o tamanho da residência que podiam ter na vila. Mas, aos poucos, ela foi aprendendo o ofício de tecelã indo à fábrica fora de seu horário (trabalhava das 6hs às 13h) para aprender o ofício com sua irmã que trabalhava na mesma, aprendizado que era gratuito. Apesar dessa exploração do trabalho infantil não existe relato de maus tratos entre os operários da fábrica de Street, como encontramos em outras fabricas do próprio Belenzinho. Embora possamos perceber nessa fala uma exploração intensa do trabalho infantil, pois D. 6

Cinta ganhava pouco como criança operária e ainda tinha que trabalhar de graça no seu aprendizado, em nenhum momento ela demonstrava tristeza com isso, mas alegria em trabalhar, aprender, ajudar os pais. Nesse momento, a escola passa a um segundo plano, pois começa a estudar à noite e aos poucos deixa de estudar. As brincadeiras, por sua vez, ficaram totalmente em terceiro plano. Apesar de todos esse sofrimento, a criança operária em geral, fosse da vila ou dos bairros operários, não perdia o seu jeito criança de ser e sempre que possível praticava suas brincadeiras preferidas como futebol, cantigas, amarelinha, pega-pega, passa anel, barra- manteiga. Entre as cantigas encontramos : A Bela Pastora, Dona Sancha, Fui no Itororó, etc. O Futebol era normalmente jogado nas ruas ou nos campos de várzea, onde a tranqüilidade era imensa. O ser criança envolvia muitas habilidades físicas e criatividade como correr, nadar, pular, cantar etc. Já que nesse tempo o brinquedo para essas crianças era difícil, grande parte era feita pelos próprios pais. A falta dos bens materiais fazia com que muitas vezes os pais fossem mais carinhosos com seus filhos e procurassem supri-los com abraços, beijos ou simplesmente contando histórias. Percebemos que a criança não perdia a magia, o encantamento de ser criança, seja por viver numa época menos violenta, seja pelo carinho dos pais ou por viver num período sem os avanços tecnológicos que faziam com que fossem mais criativas e menos consumistas. Nesse tempo de disciplina rígida, pouco dinheiro e muito afeto a criança tornava-se mais criativa, mais livre, mais solta e porque não dizer, mais preparada para enfrentar o mundo em que vivia. Os sonhos eram em sua maioria, ter uma boa profissão, uma esposa ou esposo compreensível, dedicado (a) e trabalhador (a), ter filhos, ser feliz. Mas muitos sonhavam em ser médicos, engenheiros, professores. Será que alcançaram? Percebemos que muitos sim, outros não, mas no momento de viverem a infância o fizeram com intensidade, ainda que por pouco tempo, sendo que muitos gostariam de reviver essa época. A criança era criança, no aspecto de brincar, mas no seu dia a dia a obrigação de trabalhar fazia com que se tornasse um adulto precoce, com muitas obrigações, um aluno com muitos deveres e obediente, um filho e um cristão exemplares, sendo que muitas vezes não lhe era dada a oportunidade de perguntar porquê, de questionar essa situação: tinha, simplesmente, de fazer o melhor para a família, a comunidade, o patrão. E para ela seria isso o melhor? Notas: 1. BOSI, Eclea - Memória e Sociedade. São Paulo, Edusp, 1987 a - pg. 309 2. Entrevista Com Sra Cinta Ramos Amantero 3. Entrevista com Srª Cinta Ramos Amantero 7

FONTES E BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA - Álbum Vila Scarpa (1926) - BOSI, Eclea - Memória e Sociedade. São Paulo, Edusp, 1987 a. - DECCA, Maria Auxiliadora Guzzo, A Vida Fora das Fábricas: Cotidiano Operário em São Paulo (1927-1934), Campinas: Unicamp, 1983. mimeo. - MOURA, Esmeralda Blanco B. de - Mulheres e Menores no Trabalho Industrial : Os fatores Sexo e Idade na Dinâmica do Capital. Petrópolis: Vozes, 1982. - PENTEADO, Jacob. Belenzinho 1910 - Retrato De Uma Época-Livraria Martins Editora, 1962 - RAGO, Luzia Margareth - Do Cabaré ao lar : A Utopia da Cidade Disciplinar: Brasil 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. - SILVA, Maria Alice Setúbal Souza e Maria Alice Silva Garcia, Sônia Campaner M. Ferrari. Memória e Brincadeiras na Cidade De São Paulo nas primeiras décadas do Século XX. São Paulo: Cortez: CENPEC, 1989. - TEIXEIRA, Palmira Petratti - A Fábrica do Sonho: Trajetória do Industrial Jorge Street - Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1990. Notas: 1. Penteado, Jacob- Belenzinho 1910 - retrato de uma época. 2. Álbum de recordação Vila Scarpa 3. Entrevista com Sra Cinta Ramos Amantero 8