Caracterização participativa da frota pesqueira do Rio Araguaia Tocantins, Brasil

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Transcrição:

ISSN 2236-4420 Caracterização participativa da frota pesqueira do Rio Araguaia Tocantins, Brasil 1 Adriano Prysthon da Silva, 2 Eduardo Guilherme Gentil de Farias 1 Embrapa Pesca e Aqüicultura, Prolongamento da Avenida NS 10, cruzamento com Avenida LO 18, sentido Norte, Loteamento Água Fria, Caixa Postal n. 90, CEP 77.008-900, Palmas, TO, Brasil. E-mail: adriano.prysthon@embrapa.br 2 Universidade do Estado de Santa Catarina, Rua Coronel Fernandes Martins, 270, Progresso, CEP 88790-000, Laguna, SC, Brasil. E-mail: eduardo.gentil@udesc.br. Resumo: A atividade pesqueira na bacia Tocantins-Araguaia é responsável por abrigar aproximadamente 40% dos pescadores artesanais de águas interiores do Brasil. Assim, caracterizar o uso das embarcações faz-se de fundamental importância, visto que estas integram a cadeia da pesca comercial. Contudo, devido ao difícil acesso à várias comunidades ribeirinhas, bem como, em virtude das expressivas dimensões contempladas pelo rio Araguaia, há poucas informações qualitativas e/ou quantitativas acerca das embarcações empregadas nas pescarias comerciais da região. Partindo desta premissa, o presente trabalho visitou 15 comunidades pesqueiras em 14 municípios as margens do rio Araguaia, catalogando as principais informações consoantes às embarcações utilizadas na região de estudo, a saber: tipo de embarcação, matéria prima, tamanho, propulsão, tripulação, jornada de trabalho e capacidade de carga. Foram identificados quatro materiais básicos para a construção de embarcações para a região do Araguaia: madeira, alumínio, aço e fibra de vidro. Em relação ao número de tripulantes, foi possível observar que as frotas costumam conduzir entre 1 e 5 pescadores por operação de captura, havendo uma maior proeminência das atividades pesqueiras que empregam apenas 2 tripulantes por embarcação. As embarcações da região apresentam propulsão manual e com o auxílio de motores de popa e rabeta. A potência encontrada nos motores de rabeta utilizados nas embarcações de tábuas variou de 5 a 9 HP, enquanto que a motorização das embarcações com motores de popa variaram entre 15 a 25 HP. Concluiuse que a frota pesqueira do rio Araguaia pode ser caracterizada como artesanal e de pequena escala. Palavras chave: Águas interiores, Tecnologia naval, Pesca artesanal. Participatory approach to characterization of fishing fleet in the Araguaia River Tocantins, Brazil Abstract: The fishing activity in Tocantins-Araguaia basin is responsible for employing nearly 40% of artisanal fishermen in brazilian inland waters. Thus, the boats description is relevant to better understand its relevance in commercial fishing chain. However, due to the difficult access in several communities and due the formidable dimensions of the Araguaia river is lacking qualitative and/or quantitative information about the fishing fleet adopted in this region. Based on this premise, the present work visited 15 fishing communities in 14 different cities along the Araguaia River, cataloging the main regional boats characteristics: type of vessel, size, crew, propulsion and load capacity. Four basic materials were identified for the construction of vessels: wood, aluminum, steel and fiberglass. In these vessels work one to five fishermen by catch operation, however the most usually is to employ just two fishermen per vessel. The propulsion system in the boats are manual or with tail engines (short and long). The power found in long tail engines was 5 to 9 HP, while the short tail engines ranged from 15 to 25 HP. We conclude that the fishing fleet of the Araguaia river can be characterized as small scale and artisanal. Key words: Inland waters, Naval technology, Artisanal fishing.

81 Introdução A pesca em ambientes continentais ou de água doce apresenta significativa importância sócio-econômica e cultural para o desenvolvimento regional das comunidades ribeirinhas que habitam no entorno das principais bacias hidrográficas do país (Begossi, 2004). Na região Norte do Brasil, regiões como a bacia Amazônica e a Tocantins-Araguaia possuem importância estratégica, sendo a atividade pesqueira nesta última, responsável por abrigar aproximadamente 40% do contingente dos pescadores artesanais de águas interiores do Brasil (Santos, 2005). Neste sentido, o uso das embarcações faz-se de fundamental importância, sendo este o principal meio de transporte para o deslocamento aos sítios de captura, escoamento da própria produção pesqueira local e ainda, no transporte para lazer e turismo das comunidades ribeirinhas Agência Nacional de Águas [ANA] (2005). Deste modo, é razoável admitirmos que os investimentos empregados na aquisição e adequação de embarcações para as atividades de captura, integram a cadeia da pesca comercial. Embora fundamentalmente importantes para uma ampla compreensão da dinâmica das pescarias, há poucas informações qualitativas e/ou quantitativas acerca das embarcações empregadas nas pescarias comerciais do rio Araguaia (Prysthon & Ummus, 2016, Zacarkim, Dutra & Oliveira, 2017). Em parte, este panorama deve-se ao difícil acesso a várias comunidades ribeirinhas, bem como, em virtude das expressivas dimensões da bacia à qual este rio encontra-se inserido (382.000 km 2 de área e 2.115 km de extensão sentido Sul-Norte). Em alguns trechos, tais como nos 900 km em que o rio Araguaia percorre o estado do Tocantins, há uma carência quase absoluta de esforços que contemplem esta temática (Beard et al., 2016). Infelizmente, a pesca continental em países em desenvolvimento, a produção pesqueira é muito mais diversa e superior do que as estimativas reportadas (Cooke et al., 2013, Zacarkim, Piana, Baumgartner & Aranha, 2015). Partindo desta premissa, o presente trabalho visa sanar parcialmente esta lacuna, descrevendo as características da frota pesqueira no lado tocantinense do Araguaia onde o pescado representa a principal fonte de manutenção da segurança alimentar e de renda. Deste modo, além da descrição da frota, esperamos que o presente trabalho contribua para subsidiar medidas de gestão pesqueira mais participativas e justas para a bacia do rio Araguaia. Material e métodos Foram visitadas 15 comunidades pesqueiras do rio Araguaia em 14 municípios do estado do Tocantins,. As comunidades estão distribuídas em 11 Colônias de Pesca e em aldeias indígenas (Figura 1). Foram realizadas oito expedições da equipe técnica entre os meses de março e outubro de 2016 e cada expedição durou em média cinco dias. As informações concernentes a caracterização das embarcações empregadas na pesca foram obtidas por intermédio de uma abordagem participativa. Esta abordagem foi considerada fundamental para a organização e empoderamento das comunidades pesqueiras a respeito dos trabalhos de campo. A participação possibilitou a compatibilização entre os interesses dos pescadores e a equipe técnica em estabelecer ações de desenvolvimento voltadas a este setor, despertando no pescador, o papel de sujeito de sua própria realidade. Este cenário só é possível se houver um clima de confiança entre técnicos e pescadores. Esta abordagem proporcionou ainda a oportunidade de modificações a partir da quebra de rotinas da atividade pesqueira visando gerar novas práticas e/ou melhorar as já existentes conforme relatado por Ploeg et al.,(2004), trabalhando com comunidades tradicionais. Esta metodologia proporcionou também o compartilhamento de informações sobre a pesca e a valorização do conhecimento tradicional associado. Valorizar este conhecimento perante a sociedade é criar modalidades ambientalmente sustentáveis de vivências entre o homem e a natureza e reconhecer que essas comunidades devem ter direitos e acessos ao ambiente em que vivem e trabalham (Oliveira, Gazolla & Schneider, 2011, Zanirato & Ribeiro, 2007).

82 Figura 1- Localização das comunidades pesqueiras visitadas no lado tocantinense do rio Araguaia. Nos trabalhos de campo, aplicou-se um conjunto de técnicas referenciadas em manuais, livros e relatórios de atividades de campo participativas (Prysthon et al., 2013, Cordioli, 2010, Bunce, Townsley, Pomeroy,Pollnac, 2000 & Geilfus, 1997). No entanto, algumas ferramentas foram selecionadas no intuito de otimizar a coleta de dados específicos sobre as embarcações, neste caso, a Matriz de Avaliação. Esta técnica permitiu avaliar determinados aspectos constitutivos da produção pesqueira, no caso, as embarcações, a partir de critérios que foram estabelecidos previamente com a equipe técnica. Os critérios escolhidos para a caracterização das embarcações foram as características tecnologias das embarcações empregadas na pesca, qualificando as diferentes tipologias presentes no rio Araguaia, possibilitando assim, um panorama das principais características tecnológicas das embarcações atuantes na área de estudo. Os locais de reunião foram definidos pelas lideranças locais e geralmente ocorreram nas sedes das Colônias, Associação comunitárias e/ou escolas. As lideranças fizeram a mobilização prévia acionando a comunidade pesqueira para as datas e horários agendados. A aplicação das técnicas de coletas de dados nas comunidades foi explicada antes de sua execução, visando aumentar a compreensão sobre a atividade. As variáveis catalogadas consoantes às embarcações utilizadas na região de estudo foram: tipo de embarcação, matéria prima, tamanho, propulsão, tripulação, jornada de trabalho e capacidade de carga. O número de participantes variou entre as comunidades visitadas e a mobilização dependeu principalmente das lideranças comunitárias (colônia de pesca, aldeia, associação, etc.). O numero total de participantes das oficinas foi de 741 pescadores, aproximadamente 16% da população pesqueira do rio Araguaia, Tocantins,

83 que é de 4.562, segundo o cadastro das lideranças locais em 2016. Resultados e discussões A partir dos dados coletados registrou-se um total de 2.027 embarcações (Tabela 1), tendo este número sido obtido a partir de informações das oficinas participativas. Deste montante, apenas duas comunidades indígenas não souberam informar o quantitativo de embarcações de sua localidade. Não foi informado o número por tipo de embarcão, apenas uma estimativa do total baseado no número de famílias que praticam a pesca. Tabela 1 - Total de embarcações (por tipo e comunidade) empregadas na pesca artesanal no Rio Araguaia. Comunidade Material predominante utilizado para a construção das embarcações Madeira Côcho Alumínio Aço Fibra de vidro Total Couto Magalhães X X X 80 Araguacema X X X X 100 Esperantina X 406 Araguatins X 500 Xambioá X X 130 Araguanã X X X 200 Aldeia Boto Velho X X 13 Aldeia Canoanã X X X NF Aragominas X X X X 59 Santa Fé do Araguaia X X 186 Caseara X X X X 120 Pau D Arco X X X 140 Garimpinho X X X 43 Aldeia Macaúba X X X X 50 Aldeia Fontoura X X NF TOTAL 2027

84 Os materiais básicos para a construção de embarcações para a região do Araguaia foram de quatro tipos, a sebar: madeira, alumínio, aço e fibra de vidro. Consoante às embarcações de madeira estas podem ser confeccionadas a partir de tábuas de madeira ou construídas a partir de um único bloco/tronco de madeira (localmente chamadas de "côcho"). As embarcações de alumínio são coloquialmente denominadas como "voadeiras", numa alusão à velocidade proporcionada à esta embarcação quando navegando. Também foram catalogadas embarcações constituídas primariamente por chapas de aço e fibra de vidro, sendo ambas construídas de forma artesanal. Excetuando-se as aldeias Boto Velho e Fontoura, as embarcações de tábuas foram as mais citadas pelas comunidades visitadas. As canoas de côcho também foram amplamente identificadas, a exceção dos municípios de Xambioá, Esperantina e Araguatins. Por fim, as embarcações de alumínio foram citadas na mesma proporção dos barcos de côcho. Em proporções diminutas foram evidenciadas a utilização de embarcações de fibra de vidro. Contudo, esta tecnologia de casco foi reportada apenas no município de Caseara e na Aldeia Macaúba. Consoante ao número de tripulantes, foi possível observar que as frotas costumam conduzir entre 1 e 5 pescadores por operação de captura, havendo uma predominância das atividades pesqueiras que empregam apenas 2 tripulantes por embarcação (Figura 2), representando aproximadamente 35% do montante global. De acordo com os relatos obtidos, é comum ainda, estes dois tripulantes serem casal (marido e mulher). Tanto o homem quanto a mulher desempenham funções ativas nas pescarias, realizando tanto a captura quanto os afazeres complementares (tratamento do pescado, cozinhar, limpar a embarcação, montar acampamento, etc.). Este relato contraria a afirmativa de Fassarela (2008) que destaca haver uma marcante divisão laboral por gênero na pesca artesanal, principalmnete a pesca marinha. Figura 2 - Distribuição dos comprimentos totais das embarcações pesqueiras (esquerda) e o número médio de tripulantes nas expedições de pesca no rio Araguaia-TO. A utilização de 19 diferentes tipos de árvores empregadas na construção naval foram registradas por seus nomes populares, sendo estas utilizadas pelos pescadores na carpintaria dos barcos de tábuas e côcho. A grande variedade de árvores possivelmente está relacionada com a disponibilidade destes recursos na natureza. No entanto, os pescadores relatam que a quantidade desta matéria prima vem diminuindo ao longo dos anos, devido principalmente às constantes e significativas ações antrópicas na bacia do rio Araguaia como a agricultura desordenada em larga escala (Oviedo & Bursztyn, 2016). A exploração de madeira para

85 a construção de embarcações ainda tem um fator agravante, pois mais da metade da vegetação nativa da bacia do Araguaia já foi suprimida, alterando as características hidrológicas e morfológicas de 82 mil km 2 (Coe, Latrubesse, Ferreira, & Amsler, 2011). Ainda, não há legislação específica que regulamente a exploração de madeira para construção e embarcações. Consequentemente, a fiscalização ambiental é um impeditivo iminente aos pescadores que estão sob a égide da exploração ilegal de madeira. Figura 3 - Frequência de ocorrência de nomes populares das árvores mais utilizadas para a confecção de embarcações de tábuas (a) e côcho (b) no rio Araguaia-TO. As embarcações do rio Araguaia utilizam propulsão manual com o auxílio de remo e zinga, sendo esta última constituída por uma vara de madeira com boa resistência e tamanho suficiente para navegar nas margens do rio, deslocando a embarcação quando o pescador empurra a zinga em contato com o leito do rio. Adicionalmente, constantou-se também as embarcações munidas com propulsão mecânica (motor de rabeta e popa), sendo a maioria

86 detentora de motores tipo rabeta. A escolha por embarcações com motor de rabeta deve-se ao seu menor custo de aquisição e manutenção. A potência encontrada nos motores de rabeta utilizados nas embarcações de tábuas variou de 5 a 9 HP. Já as embarcações de alumínio podem utilizar tanto os motores de rabeta (3 a 15 HP) quanto de popa (15 a 25 HP), sendo estes últimos predominantes (Figura 4). Figura 4 - Frequência da potência dos motores tipo rabeta (a) e popa (b), citadas nas comunidades e utilizadas na pesca artesanal do rio Araguaia-TO. Avaliando os questionários obtidos foi possível observar que não houve relação direta entre o comprimento total das embarcações e a potência do motor. Este fato sugere que os sistemas de motorização empregados independem de avaliação técnica, estando estes

87 atrelados principalmente aos custos de aquisição e manutenção dos tipos de motor. Segundo os pescadores entrevistados, as campanhas de pesca embarcada no rio Araguaia não ultrapassam uma semana, ocorrendo majoritariamente num intervalo que compreende de 3 a 4 dias. No que diz respeito ao tempo de trabalho em horas/dia que os pescadores se dedicam pesca, a maioria possui uma jornada média de 8 horas (Figura 5). Uma segunda parcela dos pescadores afirmou se dedicar 12 horas, e um terceiro grupo, seis horas por dia. Vale salientar que as condições de trabalho embarcado no rio Araguaia-TO são precárias e não há aparato governamental que atenda minimamente as questões trabalhistas quanto à insalubridade e/ou periculosidade. A exposição excessiva ao sol e a postura corporal inadequada favorecem possíveis acidentes na atividade embarcada. Em estudos pretéritos, Garrone, Cordeiro, e Haddad (2005), avaliaram que 98% dos pescadores do rio Araguaia já sofreram algum tipo de acidente de trabalho durante a pesca. Portanto, estas informações podem subsidiar políticas públicas voltadas à segurança do trabalho na pesca. Figura 5 - Frequência da jornada de trabalho (h/dia) por dia de pesca no rio Araguaia-TO. Por fim, também foi avaliada a capacidade máxima de acondicionamento de biomassa de pescado a bordo. Segundo os relatos dos pescadores, esta pode ultrapassar os 800 kg/campanha de pesca (Figura 6), entretanto a faixa de peso usualmente capturada encontrou-se entre 100 e 300 kg de pescado, com oscilações deste quantitativo em relação a capacidade de carga da embarcação, esforço de pesca e época do ano. As embarcações de alumínio foram as que apresentaram maior capacidade de carga, sendo a maioria delas acima de 500 kg. Para as embarcações de tábua, a maioria suporta uma carga acima de 300 kg, enquanto que as de côcho limitam-se até 300 kg de pescado.

Figura 6 - Capacidade de armazenamento embarcado de pescado na frota artesanal do médio Araguaia- TO. 88 Conclusões As embarcações do tipo canoa (tábua e côcho), com baixa autonomia, corresponderam a maior parte da frota pesqueira artesanal do médio Araguaia, sendo este meio flutuante comum a quase totalidade das comunidades visitadas. Foi possível observar uma homogeneidade entre as tipologias e características das embarcações empregadas entre as comunidades visitadas. Neste sentido, conclui-se que a pesca é caracterizada como artesanal e de pequena escala haja visto os tipos e tamanho das embarcações, o número de tripulantes, o esforço de captura, potência e formas de propulsão dos motores, uso de matéria prima vegetal para construção artesanal dos barcos e a baixa capacidade de armazenamento das embarcações. A dinâmica de frota no Araguaia também foi caracterizada culturalmente pela forte participação da mulher na atividade pesqueira, dividindo com o homem (geralmente marido) as tarefas de captura, conservação do peixe e na montagem e manutenção do acampamento. A abordagem participativa proporcionou um melhor entendimento das informações geradas, sendo recomendada para projetos de pesquisa que tenham contato direto com comunidades tradicionais. Visando contribuir para a proposição de novas formas de gestão, mais inclusivas e participativas com os pescadores artesanais, salienta-se que a caracterização da frota deve necessariamente fazer parte de um contexto multidisciplinar e interinstitucional que considere um manejo sócio ecológico para a bacia hidrográfica do rio Araguaia como um todo, e não apenas de forma pontual e isolada. Agradecimentos Este trabalho foi financiado pelo projeto "Conhecimento e adaptação tecnológica para o desenvolvimento sustentável da pesca artesanal no rio Araguaia-TO", vinculados a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária [Embrapa] (Protocolo: 06.14.07.008.00.00), sendo este registrado de acordo com a Lei nº 13.123, de 2015, que permite o acesso ao patrimônio genético, bem como ao conhecimento tradicional associado, seja ele de origem identificada ou não. Agradecemos a Geógrafa Marta Eichemberger Ummus pelo apoio na elaboração do produto cartográfico presente na figura 1. Referências Agência Nacional de Águas (2005). A navegação interior e sua interface com os recursos hídricos.

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