BuscaLegis.ccj.ufsc.br Insubmissão nos tiros-de-guerra Alexandre de Barros Leal Saraiva* Em recentíssima decisão, uma das Turmas do Colendo Supremo Tribunal Federal, firmou entendimento, no julgamento do RHC nº 77.293-MG, de que a falta de apresentação do convocado para se ver matricular em Tiro-de-Guerra, na data e no local aprazados, não configura o delito de insubmissão, in verbis: O crime de insubmissão previsto no artigo 183 do CPM ( deixar de apresentar-se o convocado à incorporação, dentro do prazo que lhe foi marcado... ) aplica-se apenas aos convocados para prestação de serviço militar em organização militar da ativa. Com esse entendimento, a Turma, por falta de justa causa, deferiu habeas-corpus para trancar ação penal instaurada contra o paciente, que deixara de se apresentar para matrícula em Tiro-de- Guerra, órgão de formação de reserva (Lei 4.375/64). Com efeito, o Decreto nº 57.654/66 (Regulamento da Lei do Serviço Militar), em seu artigo 3º, nº 25, diferencia a matrícula em Órgão de Formação da Reserva da realizada em Organizações Militares da Ativa. Nestas, o matriculado invariavelmente também será incorporado, e assim não haveria qualquer dúvida quanto à aplicação do artigo 183 do Código Penal Militar. Entretanto, em se tratando de estabelecimento formador de reservistas em que o convocado, tal qual nos Tiros-de-Guerra, fique vinculado para a prestação de serviço, em períodos descontínuos, em horários limitados ou com encargos reduzidos àqueles necessários à sua formação, não haverá incorporação.
Em que pese a autoridade do decisum, ouso, instado unicamente pelo espírito dialético e apresentando, desde logo, as escusas de estilo, trazer à colação algumas ponderações sobre a matéria. O Código Penal Militar, dispõe que: Art. 183. Deixar de apresentar-se o convocado à incorporação, dentro do prazo que lhe foi marcado, ou, apresentando-se, ausentar-se antes do ato oficial de incorporação: Pena - impedimento, de três meses a um ano (g. n.). Ora, indubitavelmente, exige a norma em destaque que o insubmisso furte-se à incorporação, que é o ato de inclusão do convocado ou voluntário em Organização Militar da Ativa, bem como em certos Órgãos de Formação de Reserva.1 Porém, ao contrário do que afirmava Beccaria2, o monopólio legal do direito repressivo não pode oferecer ou garantir a mirífica perfeição dos textos legais, e, a norma penal, como toda norma jurídica, não pode prescindir do processo exegético, tendente a explicar-lhe o verdadeiro sentido, o justo pensamento, a real vontade, a exata razão finalística, quase nunca expressos com todas as letras3, uma vez que o legislador não é, e nunca será, um implacável e invencível tradutor dos reais anseios e necessidades da sociedade. Neste sentido, a justa advertência de Basileu Garcia: a interpretação é necessária. Não se pode desconhecer a utilidade de uma tarefa mental que vise proporcionar o exato entendimento da lei. Nem sempre esta se apresenta clara, e, mesmo quando se mostre simples nos seus termos, podem surgir dúvidas quanto ao seu alcance. O que ela abrange imediatamente, às vezes, não é tudo quanto pode incidir na sua esfera de ação 4 (g. n.). A interpretação, que é um processo lógico de averiguação da vontade contida na norma5, pode ser classificada com pertinência ao sujeito que a realiza, ao meio empregado ou ao resultado obtido. Uma das formas destacadas de interpretação é a autêntica, em que o próprio legislador, no texto da mesma lei ou por intermédio de outro diploma legal, desvenda o conteúdo da norma interpretada.
Debruçamo-nos agora com um dos objetivos destas argumentações, qual seja, estudarmos a possibilidade de que, no caso dos convocados à matrícula nos Tiros-de- Guerra, a Lei do Serviço Militar interprete, de forma autêntica, o artigo 183 do CPM. Em verdade, indigitada Lei, de nº 4.375/64, dispõe, em flagrante, claro e indisfarçavel esforço hermenêutico, que: Art. 25. O convocado selecionado ou designado para incorporação ou matrícula, que não se apresentar à Organização Militar que lhe for designada, dentro do prazo marcado ou que, tendo-o feito, se ausentar antes do ato oficial de incorporação ou matrícula, será declarado insubmisso. Parágrafo Único. A expressão convocado à incorporação constante do Código Penal Militar (art. 159), aplica-se ao selecionado para convocação e designado para a incorporação ou matrícula em Organização Militar, à qual deverá apresentar-se no prazo que lhe for fixado (g. n.). A exegese, a meu ver, aflora ululante a indicar que as expressões incorporação e matrícula, para os fins a que se destina a norma contida no artigo 183 do Código Penal Militar, se equivalem. Ademais, a Lei do Serviço Militar, como visto, não diferencia entre matrícula em Organização Militar da ativa ou da reserva, distinção existente, tão somente, no Decreto nº 57.654, instrumento normativo inábil para instaurar originariamente qualquer dever ou obrigação. Em conseqüência, há perfeita adequação típica da conduta do convocado à matrícula em Tiro-de-Guerra que não comparece ao chamado da Administração Militar com o referido preceito legal, sem nenhuma afronta, portanto, ao princípio da reserva legal. Por outro lado, à lei deve ser conferida, ainda, interpretação lógica, sistemática, em que o aplicador do direito objetiva identificar a voluntas legis em consonância com o sistema particular em que a norma se acha integrada, verificando-se, inclusive, a influência de outros dispositivos legais pertinentes. De acordo com Hungria, a interpretação lógica ou teleológica consiste na indagação da vontade ou intenção realmente objetivada na lei e para cuja revelação é muitas vezes insuficiente a interpretação gramatical. Pode mesmo dizer-se que, quase
sempre, para elucidação do sentido da lei, a interpretação gramatical tem de conjugar-se com a interpretação lógica. Se há contraste entre uma e outra, a última é que deve prevalecer, pois, de outro modo, estaria a forma subvertendo o fundo. Cumpre ter em mira, antes de tudo, o escopo prático, a razão finalística da lei (ratio legis), que é alcançada ou reconhecível pela consideração do interesse ou bem jurídico que a lei visa tutelar (...), perquirindo-se toda a respectiva disciplina jurídica, a fim de que se possa descobrir e entender com exatidão a voluntas legis6 (g. n.). Cabe-nos, destarte, indagar qual a vontade do legislador emanada do artigo 183. Em primeiro lugar, deve-se analisar a colocação topográfica do delito de insubmissão no Código Penal Militar. Sobre o tema pertinente à classificação dos crimes e a técnica legislativa em matéria penal, não se pode perder de vista a sistemática adotada pelo legislador pátrio que, historicamente e por razões de hermenêutica, adotou o critério do bem-interesse tutelado ou objetividade jurídica. Neste particular, considerando que o Código Penal Militar tem alma e razão, em palco as judiciosas palavras do Ilustrado Professor E. Magalhães Noronha7: Dividem-se, então, os Códigos modernos em duas partes: a Geral e a Especial. Aquela contém os princípios e regras gerais que dizem respeito ao crime, à imputabilidade, à pena, à medida de segurança etc., dando a característica da lei penal e o modo de sua atuação. Após essa disciplina ampla do crime, como pressuposto, e da pena, como conseqüência, apresentam os Códigos a Parte Especial, integradas pelos delitos considerados pelo legislador. Há tipificação. São os crimes definidos em fórmulas sintéticas, precisas e unitárias, constituindo tipos, aos quais a conduta do sujeito ativo se deve ajustar. Não basta, entretanto, a tipificação. As leis, em regra, distribuem sistematicamente os tipos, agrupados em títulos, que se subdividem em capítulos. É a classificação dos delitos. Os títulos são integrados por figuras delituosas que ofendem determinado bem, mas que se reúnem em capítulos ou subdivisões, conforme a fragmentação do bem jurídico, a semelhança dos tipos. A classificação sistemática dos delitos é uma necessidade real. A importância da classificação dos crimes, para a sua exegese, é coisa de que não se pode duvidar. A classificação sistemática dos delitos é um dos mais sólidos elementos com que pode contar a hermenêutica. Sem ela, o intérprete mover-se-ia com indecisão e incerteza, na busca do
bem tutelado, objeto de interpretação finalística ou teleológica, de todas a mais importante. Dos critérios aventados para a classificação dos crimes, é o do bem-interesse tutelado o melhor. (destacamos). O crime de insubmissão inaugura o Título III, do Livro I, da Parte Especial do Código Penal Militar, que trata dos crimes contra o SERVIÇO MILITAR e o dever militar. Por consegüinte, tutela a observância dos deveres e obrigações do cidadão para com o serviço d armas, notadamente com relação àqueles que, após seleção, foram designados para a prestação do serviço militar obrigatório, em diferentes órgãos e de variadas formas. Não se pode, portanto, negar que a falta de comparecimento do candidato selecionado e designado para a prestação de sua obrigação constitucional em um Tiro-de- Guerra não seja lesivo ao bem jurídico sob escolta do artigo 183 do CPM: o serviço militar. Entendemos, desta forma, que a incriminação do designado para matrícula em Tirode-Guerra pela prática do crime de insubmissão não ofende ao princípio da legalidade, haja vista que mostra-se possível e aplicável a interpretação do artigo 183 do Código Penal em estrita harmonia com a finalidade que inspirou o legislador e o bem jurídico objetivamente considerado, além do que, a Lei nº 4.375 assemelhou incorporação e matrícula. * Promotor da Justiça Militar Disponível em:< http://www.cesdim.org.br/temp.aspx?paginaid=130> Acesso em.: 01 out 2007