PARECER DA UGT SOBRE O LIVRO VERDE «MODERNIZAR O DIREITO DO TRABALHO PARA ENFRENTAR OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI» O documento apresentado pela Comissão Europeia com a designação de Livro Verde «Modernizar o Direito do Trabalho para enfrentar os desafios do século XXI» pretende debater a evolução do direito do trabalho, no sentido de alcançar os objectivos da estratégia de Lisboa, apontando, no entender da UGT, claramente para um único sentido, que é o de facilitar o desempenho das empresas à custa do factor trabalho, sem nada lhes ser pedido em troca. O emprego é apenas deixado à responsabilidade dos Governos para que as empresas possam competir melhor no contexto global. Da leitura atenta do documento constatámos que o mesmo, por um lado, apresenta os objectivos gerais e específicos, tendo como suporte o campo das relações laborais dos últimos anos em que não passa despercebida a crítica à acção sindical e, por outro lado, apresenta um questionário que se submete a um pretendido debate público. Mais realçamos que o principal desafio do documento ora apresentado é político: a flexibilidade do mercado de trabalho. O objectivo é claro: tornar o mercado de trabalho ainda mais flexível, assente no chavão modernização do 1
direito do trabalho, identificando esta como a única forma capaz de suportar e estimular este desafio. Ora, não negamos a necessidade de existência de empresas mais competitivas, com maior capacidade de resposta às mudanças, desde que se compatibilize os interesses dos trabalhadores e das empresas. No documento agora apresentado está subjacente a ideia de que os mercados de trabalho europeus devem, através da alteração à legislação laboral, resolver o «dilema» da conjugação de uma maior flexibilidade com a necessidade de maximizar a segurança, a denominada «flexigurança», respondendo assim, a um dos maiores desafios deste século. De um modo geral, na base da noção de flexigurança está a combinação de flexibilidade e de segurança para os trabalhadores, capaz de promover tanto a protecção social como a competitividade. Não aceitamos que, como parece sugerir o Livro Verde, que esta noção se centre e se esgote no direito do trabalho. A flexibilidade, em nosso entender deve resultar da procura da adaptabilidade do tempo de trabalho, da melhoria das qualificações profissionais e, consequentemente de uma maior polivalência funcional e mobilidade interna. A flexibilidade existe já em muitos países, sendo Portugal um deles, onde a flexibilidade é consequente de uma elevadíssima precariedade, marcada por trabalho desqualificado e sem futuro. O modelo que tem suscitado curiosidade pelo sucesso da sua aplicação é o modelo dinamarquês. Trata-se de um sistema que assenta em três pilares essenciais: facilidade nos despedimentos, elevada protecção em caso de desemprego e elevado nível de políticas activas de emprego e formação profissional (com fortes penalizações para quem não aceitar ofertas de emprego), favorecendo a reinserção social. Esta protecção passa pela concessão 2
de subsídios vários desde elevadas prestações de desemprego e apoios que asseguram o pagamento dos encargos com rendas, escolas, etc. Ora é este sistema que a União Europeia pretende generalizar em todos os Estados Membros, daí a apresentação do documento agora em apreciação. A questão que se coloca, e que não pode ser esquecida, é que Portugal não é a Dinamarca. Na discussão nacional não podemos esquecer que os dois países estão em situações claramente distintas: a Dinamarca caracteriza-se, ao contrário de Portugal, por um elevado nível de escolaridade, alto nível de políticas de protecção social, mobilidade profissional e geográfica muito elevadas e baixa precariedade do emprego. A versão dinamarquesa oferece segurança, combinando um elevado nível de protecção no desemprego e de alguns apoios sociais com flexibilidade, períodos curtos de pré-aviso. Paralelamente à protecção social e a um elevado grau de mobilidade, é igualmente atribuída grande importância a uma política activa de mercado de trabalho que assegura a disponibilidade efectiva de pessoas para trabalhar e para melhorar as suas qualificações profissionais. Este modelo assenta efectivamente numa série de premissas, até de origem cultural, como a importância da negociação colectiva nestes países e da gestão partilhada entre Governo e Parceiros Sociais. Também as «particularidades do sistema educativo» e o «dinamismo das pequenas e médias empresas» são apresentados como factores para o sucesso do modelo de flexigurança, factores esses que não se verificam no nosso país. Daí a necessidade de discutir a flexigurança na sua dimensão nacional, sem nunca perder de vista as características do tecido económico e produtivo do mercado de trabalho, pois como podemos constatar não há na UE dois países com o mesmo sistema de relações de trabalho ou a mesma legislação do 3
trabalho. Desta forma cada país deverá conceber um modelo de flexigurança que responda às suas necessidades laborais, sociais e económicas, tendo em conta que um modelo que permita obter resultados profícuos num determinado país poderia criar o «caos» noutro. Mesmo analisando um sistema capaz de fomentar a mobilidade no mercado de trabalho através de garantias de protecção social e de políticas activas de emprego e formação com sucesso reconhecido, a nossa preocupação prende-se com a impossibilidade de importá-lo. Daí, a resistência à sua aplicação, por parte dos sindicatos, pois entendemos que a abordagem que é feita, centralizada apenas no Direito do Trabalho favorece sobretudo a visão patronal da revisão da legislação no que respeita aos despedimentos, postergando claramente a visão sindical que favorece a flexibilidade interna, sobretudo por via da negociação colectiva. A Comissão Europeia pretende a flexigurança definida como «uma abordagem abrangente à política do mercado de trabalho que combina a suficiente flexibilidade nos contratos permitindo que empresas e trabalhadores enfrentem a mudança com a garantia de que os trabalhadores mantenham o emprego ou possam procurar outro, recebendo entretanto um subsídio adequado» e suportada por uma alteração da legislação laboral, no sentido de a flexibilizar, nomeadamente na matéria dos despedimentos. Ora esta perspectiva da Comissão vai de encontro às reivindicações patronais, que sob o lema da modernização e da competitividade, procuram um sistema que serviria mais para despedir do que para proteger muita «flexi» e pouca «gurança», aumentando a flexibilidade externa, ligada a uma crescente precarização e redução do número de postos de trabalho. 4
Não podemos deixar de realçar que o que está em causa nesta matéria são os despedimentos colectivos e não os despedimentos individuais. Deverá ser o despedimento colectivo a permitir reduzir a força de trabalho, quando o mesmo se torne necessário para responder a diminuições das encomendas e para garantir a viabilidade das empresas. Em matéria de despedimentos colectivos, Portugal é dos países da UE onde o processo é mais facilitado pois «considera-se despedimento colectivo a cessação de contratos de trabalho promovida pelo empregador e operada simultânea ou sucessivamente no período de três meses, abrangendo, pelo menos, dois ou cinco trabalhadores». Efectivamente, a legislação de trabalho é muito flexível nesta matéria e a prová-lo está o facto de não existirem propostas patronais no sentido de rever esta disposição legal. Situação inversa e, em nosso entender, inaceitável, é a revisão da legislação do trabalho no que respeita ao despedimentos individuais, que consagra o conceito constitucional de justa causa, obrigando assim, o empregador a justificar que o comportamento culposo do trabalhador inviabiliza ou impossibilita a subsistência da relação de trabalho. Aliás, analisados os motivos para o despedimento individual verificamos que os mesmos contêm na generalidade os motivos existentes noutras legislações, desde a extinção do posto de trabalho e razões tecnológicas a outras resultantes do comportamento culposo do trabalhador. A legislação de trabalho deve favorecer o reforço do diálogo social e da negociação colectiva na empresa e no sector de actividade (a adaptabilidade interna), reforçando uma adaptabilidade do mercado de trabalho que comporte outras dimensões, nomeadamente na matéria da adaptação dos horários de trabalho, originando dinâmicas diferentes entre flexibilidade e segurança. Os empregadores terão relações de trabalho estáveis e seguras e trabalhadores motivados, e os trabalhadores terão flexibilidade dos horários moderada pela 5
negociação e organização do trabalho mais estável que lhes permita conciliar a vida profissional com a vida familiar. Para a UGT a modernização da legislação do trabalho deverá responder à necessidade de diminuição da precariedade e ao reforço da negociação colectiva. É por via da negociação colectiva que deve ser aumentada a adaptabilidade interna, por via da discussão da organização do tempo de trabalho, da polivalência de funções associada à melhoria das qualificações e da promoção da mobilidade interna, incluindo geográfica. Para a UGT é fundamental ter em conta a necessidade de conciliar a vida profissional com a vida familiar e o combate a todas as discriminações, incluindo em razão do sexo. Preocupa-nos que o Livro Verde conclua «que as formas contratuais diferentes do modelo tradicional de emprego tenham proliferado, sem demonstrar em simultâneo e em contrapartida melhorias na segurança do emprego» sem que o mesmo tenha evidenciado preocupações quanto à necessidade de assegurar maior protecção nas formas flexíveis e precárias legais e ilegais do trabalho e das relações laborais. Sendo certo que a precariedade ilegal deverá sobretudo ser combatida pela via institucional (Inspecção Geral do Trabalho, Ministério Público, Tribunais), a precariedade legal pode e dever ser limitada (segundo o próprio quadro previsional da lei) ao seu carácter de excepcionalidade. De salientar a clara insuficiência de actuação da IGT, por grave carência de meios humanos e materiais que conduz ao desrespeito sistemático no cumprimento da lei e do disposto nos acordos de negociação colectiva. 6
Não será demais sublinhar que a utilização abusiva e ilícita de contratação precária tem por principal finalidade a redução dos direitos dos trabalhadores, a diminuição dos custos decorrentes do cumprimento de direitos (em relação ao trabalhador) e de obrigações (em relação ao estado), designadamente junto da Segurança Social e, não a procura de novas soluções e de novos factores de competitividade que assentem no conhecimento, na inovação, na qualificação dos recursos humanos e na adaptabilidade das empresas. O Livro Verde lança na parte final e, com o objectivo de modernizar o direito do trabalho, algumas questões para debate. A primeira, respeita às transições profissionais. A UGT admite a transição profissional, desde que se respeite o conceito de emprego conveniente, como também aceita a atribuição temporária de outras funções se não modificarem substancialmente a posição do trabalhador. O que não faz sentido é a transição profissional em profissões altamente qualificadas para as quais houve um investimento dos trabalhadores na sua formação durante muitos anos. No que respeita à incerteza jurídica, uma primeira nota para salientar que em Portugal não há confusão entre o conceito de trabalhador com subordinação jurídica e o conceito de trabalhador independente, embora a UGT esteja de acordo em que deve haver uma maior clarificação para que aos mesmos deveres de contribuição fiscal e de segurança social correspondam os mesmos direitos. A UGT rejeita conceitos e regulação de situações que visem a diferenciação de condições entre os trabalhadores ou a existência de estatutos diferenciados entre trabalhadores. O combate às formas precárias e ilegais de emprego e de trabalho, como por exemplo o trabalho dissimulado ou o trabalho não declarado, referidos no Livro Verde, pode ser feito através do reforço de acções de inspecção mais eficientes, o 7
que só será possível através do aumento do número de inspectores de trabalho e de uma maior cooperação entre os Estados-Membros, designadamente os que têm fronteira comum. Para a UGT é fundamental que a regulação das relações de trabalho triangulares seja feita em função das especificidades resultantes da natureza do trabalho temporário e da especial desprotecção que dele resulta para os trabalhadores e, consequentemente, da maior protecção que necessitam, nomeadamente no que concerne às suas condições de trabalho. Mais, e enquadrando-se no combate à precariedade que desde sempre a UGT elegeu como uma prioridade, qualquer normativo nesta matéria não deve contribuir para um aumento da precariedade ilegal ou para a legalização generalizada das formas precárias de contratação, antes sim para que o acesso às mesmas seja regulado e limitado aos casos em que tal seja realmente adequado e necessário. Nesse contexto, é necessário um indubitável reforço dos mecanismos de combate à ilegalidade e à fraude, responsabilizando desde a empresa de trabalho temporário (ETT) ao utilizador, de forma a moralizar e a detectar o recurso muitas vezes abusivo a esta forma de contratação, que continuamos a defender dever revestir-se de um carácter de excepção e não instituir-se como regra para a fuga à responsabilização dos empregadores. As condições de trabalho dos trabalhadores temporários são habitualmente mais precárias que a dos restantes grupos de trabalhadores, sendo necessário salvaguardar que a sua actividade seja exercida com dignidade e garantias de segurança, higiene e saúde. Ainda nesta matéria, mas no que respeita ao quadro de protecção para os trabalhadores recrutados pelas empresas de trabalho temporário, manifesta-se 8
de extrema importância a clarificação quer do estatuto jurídico quer das responsabilidades delas próprias e das empresas utilizadoras. O trabalho temporário prestado através das empresas de trabalho deveria igualmente promover a criação de empregos e a participação e integração no mercado de trabalho, tanto criando possibilidades de formação e aquisição de experiência profissional como apoiando as empresas utilizadoras, designadamente as pequenas e médias empresas, através do aumento das possibilidades de emprego permanente. Neste debate sobre o Livro Verde há claramente que discutir a dimensão europeia das políticas sociais, quer no domínio da livre circulação de trabalhadores, quer visando uma harmonização social, mesmo que mínima. A UGT chama a atenção para as barreiras que ainda persistem na livre circulação, como no domínio da portabilidade das pensões e do reconhecimento das qualificações. Do mesmo modo se continua a verificar numa grande incapacidade na aprovação da legislação comunitária como é o caso da revisão da directiva sobre o tempo de trabalho, da directiva sobre as agências de trabalho temporário, da directiva sobre o destacamento, etc. Um mercado de trabalho dinâmico deverá assumir o direito de acesso à formação ao longo da vida e o apoio a processos de reestruturações e deslocalização (a nível nacional e europeu), exigindo ainda claras melhorias em termos de políticas activas de emprego. Em súmula: 9
Não podemos deixar de realçar que a flexibilidade já existe com todas as consequências que se conhecem, designadamente no aumento da precariedade e na diminuição das condições de trabalho. Para a UGT, se por um lado é imperioso, o reconhecimento de que as empresas europeias não percam competitividade na economia globalizada, por outro lado é igualmente fundamental que a utilização da flexibilidade não degrade o emprego e se crie a segurança necessária. Neste sentido, consideramos premente a participação dos parceiros sociais no que respeita às matérias de políticas do mercado de trabalho, formação e segurança social. O seu contributo poderá ajudar a encontrar soluções equilibradas para as dificuldades do mercado e da inovação e a preparar o país para se adaptar e enfrentar os actuais desafios, nomeadamente o combate à pobreza, à exclusão social e às discriminações, o acesso geral a sistemas de saúde e de educação, uma larga cobertura dos sistemas de protecção social, e a manutenção da importância do sector público para garantir as infra-estruturas. Uma última nota para reiterar que a UGT considera que a modernização das relações de trabalho deveria responder aos desafios crescentes da globalização, com o consequente aumento da competitividade e produtividade das empresas, mas de forma a dotá-las de instrumentos que assegurem uma adaptabilidade interna, não se centralizando na revisão da legislação de trabalho, mas no reforço do diálogo social e da negociação colectiva. A UGT participa neste debate europeu através da Confederação Europeia de Sindicatos, a cujos pareceres e posições se considera vinculada. Lisboa, 28 de Março de 2007 10