Biologia da Estética. 126 Rev Dental Press Estét jul-set;8(3):126-34

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Transcrição:

Biologia da Estética * Professor Titular de Patologia da FOB e da Pós-graduação da FORP Universidade de São Paulo. ** Professora Doutora da Universidade Sagrado Coração Bauru. *** Professora Doutora substituta da FOA-UNESP e das Faculdades Adamantineses Integradas (FAI). 126 Rev Dental Press Estét. 2011 jul-set;8(3):126-34

Hipoplasia do esmalte: fundamentos para nomenclatura e identificação dos tipos e causas Alberto Consolaro*, Leda A. Francischone**, Renata Bianco Consolaro*** INTRODUÇÃO Quando as manchas e os defeitos no esmalte são nominados incorretamente, significa que as verdadeiras causas e mecanismos foram ignorados e uma abordagem terapêutica inadequada pode ser aplicada 4. A formação do esmalte, ou amelogênese, é executada exclusivamente pelos ameloblastos, células altamente especializadas, que:» produzem a matriz orgânica adamantina;» mineralizam-o de uma forma muito específica, para resultar nos prismas;» proporcionam uma estrutura altamente cristalina, ao reabsorverem as proteínas anteriormente incorporadas. A atividade do ameloblasto exige um grande refinamento metabólico, estrutural e organizacional, a ponto de ser considerado uma das células mais sensíveis frente aos agentes externos. O padrão estético do esmalte depende da atividade normal dos ameloblastos. Qualquer alteração na deposição da matriz do esmalte, na mineralização e/ou na sua maturação final, pode resultar em alterações de cor, translucidez, estrutura e grau de dureza. Entender como ocorrem as hipoplasias do esmalte e nominá-las corretamente revela um conhecimento adequado de suas causas e resulta em diagnósticos precisos, para que se planeje e execute uma ação terapêutica consciente e duradoura. Este trabalho foi concebido com a finalidade de contribuir no esclarecimento da terminologia/nomenclatura e das causas relacionadas à hipoplasia do esmalte. No próximo artigo, trataremos especificamente das causas, formas e diagnóstico da Hipoplasia do Esmalte de causa sistêmica, e seus significados clínicos e implicações terapêuticas. As Hipoplasias do Esmalte induzidas por causas locais foram abordadas em trabalhos anteriores 1,2. A hipoplasia representa uma malformação: fundamentos A fecundação e o pré-embrião Após a fecundação do óvulo inicia-se a proliferação, até que um aglomerado arredondado de células adere e implanta-se na parede uterina, ao redor do sétimo ao décimo dia um processo conhecido como nidação. Até esse momento, o ser em formação recebe o nome de pré-embrião e dificilmente fatores externos atuam promovendo distúrbios do desenvolvimento. Nesse período prevalece a lei do tudo ou nada: os fatores externos, se eficientes a ponto de alterarem o desenvolvimento do pré-embrião, promovem, em geral, o aborto espontâneo. O embrião e as anomalias Depois da nidação, o aglomerado de células iguais passa a ter três populações celulares diferentes, organizadas em forma de um disco semelhante a um pequeno botão de camisa. Logo após essa estratificação em camadas, conhecida como gastrulação, teremos muitos tipos de células migrando e se diferenciando, em diferentes locais, para dar origem aos órgãos e tecidos do futuro organismo: essa fase recebe o nome de organogênese. Nesse período de intensa atividade migratória e diferenciação, o ser em formação ainda não tem o aspecto externo da espécie a que pertence, e recebe o nome de embrião. O período embrionário se estende do 13º-18º dia após a fecundação até o início do 3º mês. Rev Dental Press Estét. 2011 jul-set;8(3):126-34 127

Hipoplasia do esmalte: fundamentos para nomenclatura e identificação dos tipos e causas No período embrionário, os fatores externos podem facilmente alterar o desenvolvimento dos tecidos e órgãos. A migração, diferenciação e síntese estão em sua plenitude e as células são facilmente modificadas, em sua forma e função, pelos fatores externos. Nessa fase, a ação desses fatores modificadores promove, como resultado final, um tecido ou órgão com forma e funções alteradas conhecido como malformações ou anomalias. Quando múltiplas, essas malformações geram quadros clínicos como síndromes, associações e sequências. O feto, as deformidades e as displasias No início do terceiro mês, o ser em formação dá sinais aparentes da espécie a que pertence e passa a ser nominado de feto, tendo início o período fetal, que se estende até o nascimento. Nesse período, as células, em sua maioria, já migraram para seus respectivos locais e darão origem aos variados tecidos e órgãos. Agora, sofrerão o processo de diferenciação e maturação final: essa fase recebe o nome de histogênese (histo = tecidos). As células sintetizarão produtos para constituir as estruturas teciduais, como colágeno, membranas extracelulares e produtos especiais como a matriz óssea, dentinária, cementária e adamantina. Quando fatores externos atuam no período fetal, as alterações afetam a maturação e a formatação final dos tecidos e órgãos. Geralmente, os distúrbios são na síntese de alguns componentes teciduais ou na forma final do órgão ou tecido afetado. Os distúrbios do desenvolvimento promovidos no período fetal são conhecidos como deformidades. Quando a alteração nesse período afeta a maturação tecidual, às vezes comprometendo a função, os distúrbios provocados são denominados de displasias. Os distúrbios do desenvolvimento, ou disgenesias, podem ser divididos em malformações (que ocorrem predominantemente no período embrionário), displasias e deformidades, que ocorrem em geral no período fetal. Dentes: tempos e momentos diferentes A formação do corpo humano ocorre em três períodos bem definidos: pré-embrionário, embrionário e fetal. Os grupos de dentes obedecem os mesmos fenômenos celulares e teciduais para o desenvolvimento, mas em momentos diferentes aos do organismo como um todo. Há uma cronologia específica para a formação de cada grupo de dentes, por exemplo: temos odontogênese até os 15-16 anos de idade nos terceiros molares. A grande maioria dos dentes tem a sua formação na vida extrauterina e, por isso, está sujeita à ação de muitos fatores ambientais. Mas os mesmos conceitos e nomenclaturas dos distúrbios do desenvolvimento geral se aplicam às alterações dentárias. Diferenças entre distúrbios do desen- VOLVIMENTO e do crescimento celular Embora sejam bem diferentes, ocorrem confusões terminológicas na aplicação dos conceitos de distúrbios do desenvolvimento do organismo e de distúrbios do crescimento celular. Os distúrbios do crescimento celular ocorrem em tecidos maduros e representam respostas adaptativas dos tecidos frente a novas situações, como uma demanda funcional aumentada. Os mais frequentes distúrbios do crescimento celular são as hiperplasias, ou aumento local do número de células em um determinado tecido; hipertrofias, que representam o aumento do tamanho das células maduras; e metaplasias, nas quais uma célula madura se transforma em outro tipo morfológico igualmente maduro e da mesma linhagem embrionária. As atrofias, por sua vez, não são nem distúrbios do desenvolvimento e nem do crescimento celular. Elas representam a redução do tamanho de uma célula adulta para se adaptar a uma redução ou perda de atividade, nutrição ou estímulo. Essa redução se dá pela perda de organelas, citosol e mudanças estruturais, o que representa no conjunto uma verdadeira lesão celular subletal com caráter reversível, mas não um distúrbio do desenvolvimento. 128 Rev Dental Press Estét. 2011 jul-set;8(3):126-34

Consolaro A, Francischone LA, Consolaro RB O conceito de Agenesia e Aplasia A falta completa de formação de um órgão deve ser referida como agenesia se, no local onde esse deveria estar presente, não se observar qualquer sinal, mesmo que rudimentar, de sua estrutura. Quando o órgão não se forma, mas no local nota-se algum sinal primordial grosseiro ou rudimentar, o evento passa a ser chamado de aplasia. Alguns exemplos podem ser utilizados para sedimentar esses conceitos, como as agenesias dentárias, que podem afetar um, alguns ou todos os dentes e passam a ser denominadas de anodontia parcial ou total. O termo agenesia dentária representa o grupo onde estão incluídas a anodontia parcial, total e a oligodontia. Um paciente pode ser portador de agenesia renal, mas, se no local dos rins apresentar um amontoado desorganizado de tecido fibroso e renal, formando um rudimento afuncional, o paciente será portador de aplasia renal. O conceito de Hipoplasia O termo hipoplasia representa o desenvolvimento incompleto de um tecido ou órgão, que pode até desempenhar sua função, embora não consiga exercê-la em sua plenitude. Quando um tecido ou órgão não completa a sua formação e parte dele fica defeituosa, podemos afirmar que está hipoplásico. O órgão ou tecido hipoplásico pode ou não manter sua atividade funcional. Quando a hipoplasia afeta o órgão ou uma parte do corpo por inteiro, o exemplo fica facilmente compreendido. Um exemplo de hipoplasia é a microdontia ou nanismo dentário, que pode ser coronário como nos dentes conoides ou radicular. Os dentes com microdontia podem ser funcionais, mas não na sua plenitude. A micrognatia da maxila ou da mandíbula é exemplo de hipoplasia de uma parte do corpo, e não exatamente de órgãos viscerais, que também podem ser afetados, como o rim, fígado, pâncreas, glândulas e outros. Hipoplasia do Esmalte: significado biológico e clínico A Hipoplasia do Esmalte representa um grupo de situações em que esse tecido deixa temporariamente de ser formado ou é sintetizado com estrutura anormal de sua matriz orgânica e/ou de seus cristais e prismas (Fig. 1 a 4). De acordo com a natureza de sua causa, a Hipoplasia do Esmalte pode afetar apenas um dente, mas também pode alterar vários dentes simultaneamente e até todos os dentes. Embora seja mais comum nos dentes permanentes, afeta também os dentes primários ou decíduos (Fig. 4C). Uma vez estabelecida a Hipoplasia do Esmalte, como um distúrbio do desenvolvimento da amelogênese, o tecido está definitivamente afetado, sem reversibilidade do processo. Apenas procedimentos operatórios e restauradores poderão corrigir os defeitos estéticos e funcionais decorrentes. Uma mancha branca por cárie dentária inicial pode ser corrigida pela remineralização, recompondo-se a densidade e distribuição dos cristais e, em decorrência, dos prismas 1,3. Numa mancha branca, que representa uma hipoplasia do esmalte na sua forma mais branda, a mesma remineralização não consegue restaurar um aspecto de normalidade no local. O defeito na Hipoplasia do Esmalte está na deposição da matriz orgânica e/ou no padrão de mineralização, sem possibilidade de reorganização tecidual da área afetada. Figura 1 - As manchas brancas com superfície preservada podem receber o nome de Opacidades do Esmalte, e seriam apenas alterações de translucidez (como a presente no canino). Mas em muitos casos a superfície também está alterada, indicando modificação estrutural e caracterizando uma Hipoplasia do Esmalte localizada, como na face vestibular do incisivo central. Rev Dental Press Estét. 2011 jul-set;8(3):126-34 129

Hipoplasia do esmalte: fundamentos para nomenclatura e identificação dos tipos e causas A B C Figura 2 - As duas causas principais da Hipoplasia do Esmalte localizada: A) traumatismo dentário, como a intrusão do decíduo, resvalando no germe do permanente; B) lesão periapical inflamatória crônica do decíduo, afetando o germe do permanente, por contiguidade. Nesses casos, a amelogênese pode ser afetada, gerando manchas brancas ou amareladas com ou sem superfície alterada, como em C. 130 Rev Dental Press Estét. 2011 jul-set;8(3):126-34

Consolaro A, Francischone LA, Consolaro RB Hipoplasia do Esmalte: pode ser adquirida ou hereditária A Hipoplasia do Esmalte implica em desenvolvimento alterado desse tecido, induzido por fatores externos referidos também como causas adquiridas, que podem atuar local ou sistemicamente. No entanto, existem famílias com formação alterada do esmalte por causa de defeitos genéticos e transmitidos de pai para filho, caracterizando um quadro de Hipoplasia do Esmalte de causa genética e transmissão hereditária, em que a amelogênese (ou formação do esmalte) está imperfeita ou incompleta. Esse quadro clínico é conhecido como Amelogênese Imperfeita Hereditária. Quando nos referirmos à hipoplasia do esmalte de natureza hereditária, devemos fazê-lo de forma completa, usando o termo Amelogênese Imperfeita Hereditária. Usar o termo Amelogênese Imperfeita sem acrescentar o adjetivo Hereditária pode gerar confusões, pois a Hipoplasia do Esmalte de causa adquirida, local ou sistêmica, também representa um quadro de formação incompleta ou imperfeita do esmalte, ou seja, de amelogênese imperfeita. Os distúrbios do desenvolvimento podem ser induzidos por causas adquiridas como traumatismos, drogas, infecções e outras, assim como podem ser resultado de defeitos ou mutações nos genes e/ou nos cromossomos. Esses defeitos nos genes e/ou nos cromossomos podem ser repassados para os filhos ou não; quando o forem, esses distúrbios do desenvolvimento serão considerados hereditários. As causas locais da Hipoplasia do Esmalte Adquirida A Hipoplasia do Esmalte pode afetar apenas um dente (Fig. 1, 2, 3) ou, ainda, apenas uma pequena área da face vestibular, como por exemplo nas Figuras 1 e 2. No local, o esmalte pode estar socavado, deprimido ou irregular em sua superfície, e a cor pode variar de normal a branca ou amarelada. Uma causa local deve ter provocado um distúrbio, na deposição e mineralização das últimas camadas do esmalte, quando a superfície estava sendo definida. Se a causa local foi mais duradoura ou intensa, uma área maior da coroa pode ter sido comprometida e o esmalte se apresentar mais severamente comprometido, como na Figura 3. Em outros casos, a superfície da Hipoplasia do Esmalte pode estar normalmente lisa, mas com uma mancha de cor branca opaca, amarelada ou mista 2 ; por transparência, nota-se um padrão organizacional subsuperficial irregular (Fig. 1, 2). A causa local atuou nas fases iniciais de deposição das camadas do esmalte e houve tempo para que, uma vez eliminada a causa, novas camadas normais de esmalte fossem depositadas sobre a área hipoplásica, estabelecendo- -se uma superfície normal. Os ameloblastos fazem parte do epitélio interno do órgão do esmalte e, como todo epitélio, têm grande capacidade de proliferação e regeneração quando lesados focalmente. Uma das principais causas locais da hipoplasia do esmalte é o traumatismo dentário pela intrusão de dentes decíduos (Fig. 2A), promovendo o contato de sua raiz com os germes dentários durante a fase coronária de sua formação. Esse contato desorganiza e/ou paralisa temporariamente a síntese dos ameloblastos, assim como modifica a matriz ainda não mineralizada recém-depositada no local. Outra causa local muito comum da Hipoplasia do Esmalte são as doenças inflamatórias no periápice (Fig. 2B) e nas bifurcações das raízes dos dentes decíduos (Fig. 3). Nessas áreas localizam-se os germes dos dentes permanentes e essas lesões decíduas podem desorganizar o órgão do esmalte e paralisar temporariamente a deposição de matriz pelos ameloblastos. A matriz adamantina no local e o seu padrão de mineralização ficam alterados, ainda que temporariamente, resultando em manchas brancacentas ou amareladas irregulares, com ou sem superfície lisa, a serem detectadas no aparecimento do Rev Dental Press Estét. 2011 jul-set;8(3):126-34 131

Hipoplasia do esmalte: fundamentos para nomenclatura e identificação dos tipos e causas dente na boca. Esse tipo de hipoplasia do esmalte geralmente é referido como Dente de Turner e ocorre principalmente nos incisivos centrais superiores e nos pré-molares (Fig. 3). Em alguns casos clínicos, o esmalte dentário pode apresentar-se com manchas isoladas, discretas e geralmente brancas, conhecidas como Opacidades do Esmalte, e provavelmente representam hipoplasias focais do esmalte, com causas muito discretas e localizadas (Fig. 1). São manifestações discretas e isoladas, com superfície de esmalte preservada; as causas relacionadas não são possíveis de ser resgatadas pelo paciente, sendo geralmente classificadas como idiopáticas 7. Os procedimentos de remineralização não alteram em nada o seu aspecto. Algumas evidências sugerem que as Opacidades do Esmalte ocorram mais em áreas sem fluoretação e seriam resultantes de alterações na translucidez do esmalte, e não na sua estrutura e espessura 6. Algumas sugestões incluem as Opacidades do Esmalte como manifestações brandas ou benignas da Fluorose Dentária, que ocorre em 10% da população com uso contínuo de flúor a 1ppm na água potável. As causas sistêmicas da Hipoplasia do Esmalte Os ameloblastos são células muito sensíveis, do ponto de vista metabólico, e podem sofrer paralisação temporária na sua deposição de matriz adamantina quando alterações sistêmicas promovem severo comprometimento do metabolismo geral. Um desses exemplos pode ser as doenças da infância, como a varicela e o sarampo, assim como as internações por quadros patológicos febris e infecciosos 5. Nesse período de comprometimento severo do metabolismo da criança, os ameloblastos param de produzir matriz adamantina ou a produzem de forma defeituosa ou insuficiente, resultando em defeitos no esmalte em forma de faixas ou depressões com formato de sulcos e valas (Fig. 4). Uma vez superada essa fase, e recuperado o metabolismo, os ameloblastos voltam a produzir o esmalte, mas sem restabelecer a normalidade nas áreas comprometidas (Fig. 4). Os antibióticos não induzem hipoplasia do esmalte e não atrapalham a amelogênese. Quando administrados por causa de problemas sistêmicos que a criança é portadora, alguns antibióticos pela sua A B Figura 3 - Hipoplasia do Esmalte localizada, induzida pela lesão inflamatória crônica na bifurcação do decíduo, afetando o germe do permanente, por contiguidade. A amelogênese pode ser afetada e comprometer severamente a coroa do permanente, como em B. 132 Rev Dental Press Estét. 2011 jul-set;8(3):126-34

Consolaro A, Francischone LA, Consolaro RB A B C Figura 4 - Hipoplasias do Esmalte por causa sistêmica, comprometendo temporariamente a amelogênese. A severidade desse comprometimento depende da gravidade da causa sistêmica e da sua duração. Os dentes e locais afetados dependem da idade de comprometimento do paciente, podendo envolver os decíduos, como em C. forte ligação química com o cálcio podem ser incorporados nos tecidos mineralizados naquele período e, se forem coloridos, podem mudar a coloração dos dentes e ossos, como no caso da tetraciclina. Porém, a presença das moléculas da tetraciclina nos tecidos duros não altera suas propriedades físico- -químicas normais, apenas a cor fica alterada. Se, além do quadro de alteração de cor, for observada também a malformação do esmalte, deve-se tratar de uma hipoplasia do esmalte de causa sistêmica, para a qual o antibiótico em questão foi prescrito. Quando causas sistêmicas atuam sobre a formação do esmalte, ou amelogênese, o comprometimento dos dentes é bilateral e concomitante em todos os dentes superiores e inferiores em formação naquele momento em que o estado sistêmico esteve atuando, justificando novamente os defeitos hipoplásicos em forma de faixas, em bandas, sulcos e valas na superfície coronária. Quando quadros clínicos assim são diagnosticados, a terminologia diagnóstica a ser utilizada deve ser Hipoplasia do Esmalte por causa sistêmica, sem que haja um nome específico para identificá-la (Fig. 4). Porém, em duas situações a Hipoplasia do Esmalte por causa sistêmica pode receber nomes especiais, pelo fato de suas causas serem muito específicas: na Fluorose Dentária e na Amelogênese Imperfeita Hereditária. A Fluorose Dentária representa uma Hipoplasia do Esmalte caracterizada pela hipomineralização difusa, com aumento da porosidade abaixo da superfície do esmalte. Nessas áreas o conteúdo orgânico é maior, com menor concentração de minerais. Os cristais de apatita são menores e distribuídos aleatoriamente em espaços vazios, indicando desorganização e falhas na produção do esmalte, mais especificamente em sua matriz orgânica. Essas observações sugerem que o flúor interfere na função dos ameloblastos durante a amelogênese, induzindo a formação de grânulos intracitoplasmáticos e desorganizando-os na sua disposição colunar. Quando o flúor estiver excessivo em todas as fases da amelogênese de todos os dentes, praticamente todos terão o esmalte defeituoso caracterizado por manchas brancas, amareladas, acastanhadas e associadas ou não a sulcos, depressões ou perdas irregulares de esmalte. No entanto, o flúor excessivo pode ter estado presente apenas em uma fase da amelogênese ou da vida do paciente e, nesses casos, ter-se-á faixas, bandas ou sulcos no esmalte que estava em formação nessa fase. Se esse excesso de flúor tiver sido irregular no tempo e comprometido Rev Dental Press Estét. 2011 jul-set;8(3):126-34 133

Hipoplasia do esmalte: fundamentos para nomenclatura e identificação dos tipos e causas irregularmente, em fases diferentes, a formação do esmalte e, ainda, com dosagens não homogêneas, as manchas e defeitos serão irregulares e de gravidade variável nas coroas dentárias. Em algumas famílias, a Hipoplasia do Esmalte ocorre por erros nos genes que comandam a produção do esmalte, sendo de natureza hereditária; nesses casos, a Hipoplasia do Esmalte recebe o nome específi co de Amelogênese Imperfeita Hereditária. Esses erros ou defeitos genéticos podem afetar: (a) a formação e deposição da matriz adamantina; (b) os mecanismos de deposição mineral; e, eventualmente, (c) os mecanismos de maturação do esmalte pelos quais ocorre a reabsorção fi nal das proteínas do esmalte para lhe dar o padrão altamente cristalino que o caracteriza. A Amelogênese Imperfeita Hereditária pode, assim, ser classifi cada como do tipo hipoplásico, hipocalcifi cado ou hipomaduro. CONSIDERAÇõES FINAIS A Hipoplasia do Esmalte representa um distúrbio durante a amelogênese que pode ser induzido por causas locais comprometendo isoladamente um dos dentes (Fig. 1, 2, 3) ou sistêmicas, afetando bilateralmente vários dentes superiores e inferiores nas áreas que estavam sendo formadas no seu momento de atuação (Fig. 4). A Hipoplasia do Esmalte pode receber nomes especiais em quatro situações muito específi cas, como: (1) Dente de Turner, quando em um dente permanente associado a lesão infl amatória periapical ou na bifurcação do dente decíduo relacionado; (2) Opacidades do Esmalte, quando muito focal e isolada, com causa aparentemente desconhecida e não resgatada pelo paciente e profi ssional; (3) Fluorose Dentária, quando induzida por ingestão excessiva de fl úor; e (4) Amelogênese Imperfeita Hereditária, cuja causa são defeitos genéticos transmitidos dos pais para os fi lhos. REFERêNCIAS 1. Consolaro A. Mancha branca no esmalte: como fundamentar seu diagnóstico clínico. Rev Dental Press Estét. 2006;3(1):126-33. 2. Consolaro A. Manchas brancas não cariosas do esmalte. Rev Dental Press Estét. 2006;3(2):128-35. 3. Consolaro A. Lesões cariosas incipientes e formação de cavidades durante o tratamento ortodôntico. Rev Clín Ortod Dental Press. 2006;5(4):104-11. 4. Consolaro A. Distúrbios do desenvolvimento: a precisão dos termos é essencial. Rev Clín Ortod Dental Press. 2009;8(5):107-13. 5. Ford D, Seow WK, Kazoullis S, Holcombe T, Newman B. A controlled study of risk factors for enamel hypoplasia in the permanent dentition. Pediatr Dent. 2009;31(5):382-8. 6. Suckling GW, Nelson DGA, Patel MJ. Macroscopic and scanning electron microscopic appearance and hardness values of developmental defects in human permanent tooth enamel. Adv Dent Res. 1989;3(2):219-33. 7. Taji SS, Seow WK, Townsend GC, Holcombe T. Enamel hypoplasia in the primary dentition of monozygotic and dizygotic twins compared with singleton controls. Int J Paediatr Dent. 2011;21(3):175-84. Enviado em: 27/06/2010 Revisado e aceito: 1/07/2011 Endereço para correspondência Alberto Consolaro E-mail: consolaro@uol.com.br 134 Rev Dental Press Estét. 2011 jul-set;8(3):126-34

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