ESCOLAS LITERÁRIAS / ESTILOS DE ÉPOCA UMA INTRODUÇÃO 1 TROVADORISMO [séculos XII XV] Cantiga da Ribeirinha (1189-1198) (ou Cantiga da Guarvaia) Paio Soares de Taveirós (século XII) No mundo non me sei pareiha, Mentre me for como me vai, Ca já moiro por vós e ai! Mia senhor branca e vermelha, Queredes que vos retraia Quando vos eu vi em saia! Mau dia me levantei, Que vos enton non vi fea! No mundo não conheço quem se compare A mim enquanto eu viver como vivo, Pois eu moro por vós ai! Pálida senhora de face rosada, Quereis que eu vos retrate Quando eu vos vi sem manto! Infeliz o dia em que acordei, Que então eu vos vi linda! E, mia senhor, dês aquel di, ai! Me foi a mim mui mal, E vós, filha de don Paai Moniz, e bem vos semelha D haver eu por vós guarvaia, Pois, eu, mia senhor, d alfaia Nunca de vós houve nen hei Valia d ua Correa. E, minha senhora, desde aquele dia, ai! As coisas ficaram mal para mim, E vós, filha de Dom Paio Moniz, tendes a impressão de Que eu possuo roupa luxuosa para vós, Pois, eu, minha senhora, de presente Nunca tive de vós nem terei O mimo de uma correia.
Amar você é coisa de minutos... Paulo Leminski (1944-1989) Amar você é coisa de minutos A morte é menos que teu beijo Tão bom ser teu que sou Eu a teus pés derramado Pouco resta do que fui De ti depende ser bom ou ruim Serei o que achares conveniente Serei para ti mais que um cão Uma sombra que te aquece Um deus que não esquece Um servo que não diz não Morto teu pai serei teu irmão Direi os versos que quiseres Esquecerei todas as mulheres Serei tanto e tudo e todos Vais ter nojo de eu ser isso E estarei a teu serviço Enquanto durar meu corpo Enquanto me correr nas veias O rio vermelho que se inflama Ao ver teu rosto feito tocha Serei teu rei teu pão tua coisa tua rocha Sim, eu estarei aqui Uma vida é pouca para tantos joelhos. Amor cortês Maria Lúcia Alvim (1932-)
Ondas do mar de vigo Martin Codax (meados do século XIII - início do XIV) Ondas do mar de Vigo, se vistes meu amigo! E ai Deus, se verrá cedo! Ondas do mar de Vigo, se vistes meu namorado! Ondas do mar levado, se vistes meu amado! E ai Deus, se verrá i cedo! Ondas do mar revolto, se vistes meu amado Se vistes meu amigo, o por que eu sospiro! E ai Deus, se verrá i cedo! Se vistes meu namorado, aquele por quem eu suspiro! Se vistes meu amado por que hei gran cuidado! E ai Deus, se verrá cedo! Se vistes meu amado por quem tenho grande temor! Olhos Nos Olhos Chico Buarque (1944) Quando você me deixou, meu bem Me disse pra ser feliz e passar bem Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci Mas depois, como era de costume, obedeci Quando você me quiser rever Já vai me encontrar refeita, pode crer Olhos nos olhos Quero ver o que você faz Ao sentir que sem você eu passo bem demais E que venho até remoçando Me pego cantando, sem mais, nem por quê Tantas águas rolaram Quantos homens me amaram Bem mais e melhor que você Quando talvez precisar de mim Cê sabe que a casa é sempre sua, venha sim Olhos nos olhos Quero ver o que você diz Quero ver como suporta me ver tão feliz.
Ai dona fea! Don Joan Garcia de Guilhade (século XIII) Ai dona fea! Fostes-vos queixar Porque vos nunca louv' en meu trobar Mais ora quero fazer un cantar En que vos loarei toda via; E vedes como vos quero loar: Dona fea, velha e sandia! Ai, dona feia, fostes vos queixar que nunca vos louvo em meu cantar; mas agora quero fazer um cantar em que vos louvarei de qualquer modo; e vede como quero vos louvar dona feia, velha e maluca! Dona fea! Se Deus me pardon! E pois avedes tan gran coraçon Que vos eu loe, en esta razon, Vos quero ja loar toda via; E vedes qual será a loaçon: Dona fea, velha e sandia! Dona feia, que Deus me perdoe, pois tendes tão grande desejo de que eu vos louve, por este motivo quero vos louvar já de qualquer modo; e vede qual será a louvação: dona feia, velha e maluca! Dona fea, nunca vos eu loei En meu trobar, pero muito trobei; Mais ora ja un bon cantar farei En que vos loarei toda via; E direi-vos como vos loarei: Dona fea, velha e sandia! Dona feia, eu nunca vos louvei em meu trovar, embora tenha trovado muito; mas agora já farei um bom cantar; em que vos louvarei de qualquer modo; e vos direi como vos louvarei: dona feia, velha e maluca!
2 HUMANISMO [séculos XV XVI] Auto da Lusitânia (1531) Gil Vicente (c. 1465 c. 1536) Entra Todo o Mundo, homem vestido como rico mercador, e faz que anda buscando alguma cousa que se lhe perdeu; e logo após ele um homem, vestido como pobre. Este se chama Ninguém, e diz: - Que andas tu aí buscando? - Mil cousas ando a buscar: delas não posso achar, porém ando perfiando, por quão bom é perfiar. - Como hás nome, cavaleiro? - Eu hei nome Todo o Mundo, e meu tempo todo inteiro sempre é buscar dinheiro, e sempre nisto me fundo. - E eu hei nome Ninguém, e busco a consciência. - Esta é boa experiência! Dinato, escreve isto bem. Dinato: - Que escreverei, companheiro? Berzebu: - Que Ninguém busca consciência e Todo o Mundo dinheiro. (Ninguém para Todo o Mundo) - E agora que buscas lá? - Busco honra muito grande. - E eu virtude, que Deus mande que tope co ela já. - Outra adição nos acude: escreve aí, a fundo, que busca honra Todo o Mundo, e Ninguém busca virtude. - Buscas outro mor bem qu'esse? - Busco mais quem me louvasse tudo quanto eu fizesse. - E eu quem me repreendesse em cada cousa que errasse. - Escreve mais. Dinato: - Que tens sabido? Berzebu: - Que quer em extremo grado Todo o Mundo ser louvado, e Ninguém ser repreendido.(...) (Todo o Mundo para Ninguém) - E mais queria o paraíso, sem mo ninguém estorvar. - E eu ponho-me a pagar quanto devo pera isso. - Escreve com muito aviso. Dinato: - Que escreverei? Berzebu: - Escreve que Todo o Mundo quer paraíso, e Ninguém paga o que deve.
3 CLASSICISMO [século XVI] Perdigão perdeu a pena Luís Vaz de Camões [1524/1525? 1580] Perdigão perdeu a pena Não há mal que lhe não venha. Perdigão que o pensamento Subiu a um alto lugar, Perde a pena do voar, Ganha a pena do tormento. Não tem no ar nem no vento Asas com que se sustenha: Não há mal que lhe não venha. Quis voar a uma alta torre, Mas achou-se desasado; E, vendo-se depenado, De puro penado morre. Se a queixumes se socorre, Lança no fogo mais lenha: Não há mal que lhe não venha. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se o ser, muda-se a confiança; todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades. SONETOS Camões Amor é um fogo que arde sem se ver, é ferida que dói, e não se sente; é um contentamento descontente, é dor que desatina sem doer. Continuamente vemos novidades, diferentes em tudo da esperança; do mal ficam as mágoas na lembrança, e do bem se algum houve -, as saudades. É um não querer mais que bem querer; é um andar solitário entre a gente; é nunca contentar-se de contente; é um cuidar que ganha em se perder. O tempo cobre o chão de verde manto, que já coberto foi de neve fria, e enfim converte em choro o doce canto. É querer estar preso por vontade; é servir a quem vence o vencedor; é ter, com quem nos mata, lealdade. E, afora este mudar-se cada dia, outra mudança faz de mór espanto: que não se muda já como soía. Mas como causar pode seu favor nos corações humanos amizade, se tão contrário a si é o mesmo Amor?
Os Lusíadas [1578] Luís Vaz de Camões [1524/1525? 1580] As armas, e os barões assinalados Que, da Ocidental praia Lusitana, Por mares nunca dantes navegados, Passaram ainda além da Taprobana, Em perigos e guerras esforçados Mais do que prometia a força humana, E entre gente remota edificaram Novo Reino, que tanto sublimaram; E também as memórias gloriosas Daqueles Reis que foram dilatando A Fé, o Império, e as terras viciosas De África e de Ásia andaram devastando; E aqueles que por obras valorosas Se vão da lei da Morte libertando: Cantando espalharei por toda a parte, Se a tanto me ajudar o engenho e arte. Cessem do sábio Grego e do Troiano As navegações grandes que fizeram; de Alexandro e de Trajano A fama das vitórias que tiveram; Que eu canto o peito ilustre Lusitano, A quem Netuno e Marte obedeceram. Cesse tudo o que a Musa antiga canta, Que outro valor mais alto se alevanta.