Aspectos sócio-econômicos do comércio de plantas e animais medicinais em área metropolitanas do Norte e Nordeste do Brasil



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REVISTA DE BIOLOGIA E CIÊNCIAS DA TERRA ISSN 1519-5228 Volume 8 Número 1 1 Semestre 2008 Aspectos sócio-econômicos do comércio de plantas e animais medicinais em área metropolitanas do Norte e Nordeste do Brasil Rômulo Romeu da Nóbrega Alves 1, Carla Calixto da Silva 2, Humberto da Nóbrega Alves 3 RESUMO O uso e comércio de animais e plantas medicinais é frequente em diferentes cidades brasileiras, e representa uma atividade importante do ponto de vista social, econômico, cultural e ecológico. O presente trabalho teve como objetivo obter informações relativas ao comércio de animais e plantas para fins medicinais em cinco cidades no Nordeste (São Luís, Teresina, João Pessoa e Campina Grande) e Norte (Belém) do Brasil. As informações foram obtidas através de questionários semi-estruturados aplicados a 79 comerciantes. Os resultados evidenciam a existência de uma rede comercial dos recursos medicinais e a importância da atividade como fonte de renda dos comerciantes. A situação social e o conhecimento dos comerciantes são fatores importantes que devem ser considerados no estabelecimento de politicas publicas visando a sustentabilidade dos recursos biológicos explorados e da atividade comercial de erveiros. Palavras-chave: Medicina Tradicional, Plantas Medicinais, Animais Medicinais, Conservação Socio-economic aspects of medicinal plants and animal trading in metropolitan area of North and Northeastern Brazil ABSTRACT The use and trade of medicinal animals and plants is frequent in different Brazilian cities, and represents an important activity in social, economical, cultural and ecological perspectives. This work aimed to obtain information on the socioeconomic aspects of the trade of animals and plants for medicinal purposes in five cities of Northeastern (São Luís, Teresina, João Pessoa and Campina Grande) and North (Belém) from Brazil. The informations were obtained through semi-structured questionnaires applied to 79 traders. The results evidenciated the existence of a multi-state trade network of medicinal resources and the importance of the activity like a source of income to traders. The social situation and the knowledge of traders are important factors that should be considered in the implementation of police public aiming the sustainability of the biological resources and of the commercial activity of herbalists. Keywords: Traditional Medicine, Medicinal plants, Medicinal animals, Conservation 181

1 INTRODUÇÃO A vasta maioria da diversidade biológica do mundo, como também as mais ricas fontes de conhecimento tradicional sobre uso de plantas e animais são encontradas em países considerados subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. Entre estes, o Brasil destaca-se tanto por sua riqueza de recursos genéticos quanto pela sua complexa diversidade cultural (Elisabetsky & Wannmacher, 1993). A adaptação dos vários grupos humanos a riqueza biológica do país gerou um inestimável sistema de conhecimento local que inclui uma extensa fonte de informações sobre o uso de plantas e animais utilizados para fins medicinais. Diversas espécies têm sido utilizadas para fins terapêuticos por comunidades tradicionais em áreas rurais, o que vem se perpetuando através da medicina tradicional brasileira. Mas esse uso não se restringe às áreas rurais, sendo também amplamente disseminado em áreas urbanas do país. Muitas espécies são comercializadas por erveiros em mercados e feiras livres em cidades de todo país (Freire, 1996; Costa-Neto, 1999; Almeida & Albuquerque, 2002; Silva et al., 2001; Silva et al., 2004. Alves & Pereira-Filho, 2007; Alves & Rosa, 2007a, 2008; Alves et al., 2007, 2008). Esses recursos representam uma alternativa aos medicamentos alopáticos e seus usos são impulsionados pela diversidade biológica e aspectos sócio-econômicos e culturais. Do ponto de vista sócio-econômico, a venda de animais e plantas medicinais constitui uma importante fonte de renda para os coletores e comerciantes. Por outro lado, conservação dos recursos de importância medicinal usados popularmente gera questões relevantes com respeito à sustentabilidade do comércio formado em torno destes. Algumas das espécies usadas na medicina popular encontram-se ameaçadas de extinção (Silva et al., 2001; Almeida & Albuquerque, 2002; Alves & Rosa, 2005; Alves & Rosa, 2006, 2007a,b; Alves & Pereira-Filho, 2007). Um maior entendimento acerca dos processos e atores envolvidos na exploração comercial de animais e plantas medicinais é importante para o estabelecimento de medidas conservacionistas. Desse modo, são preementes estudos que visem analisar o contexto sócioeconômico em que ocorre a comercialização de recursos medicinais nas áreas urbanas. Neste sentido, o presente trabalho teve como objetivo analisar os aspectos sócio-econômicos associados ao comércio de plantas e animais medicinais em áreas metropolitanas do Norte (Belém, PA) e Nordeste do Brasil (João Pessoa, Campina Grande, Teresina e São Luís). Esperase que os resultados possam fornecer subsídios para o estabelecimento de medidas de conservação dos recursos explorados e políticas públicas voltadas para as pessoas envolvidas nessa atividade econômica. 2 MATERIAL E MÉTODOS O trabalho de campo foi realizado entre janeiro de 2004 e novembro de 2005. Visitas foram feitas aos principais mercados públicos e feiras livres, onde produtos derivados de plantas e animais medicinais são freqüentemente comercializados. As informações foram obtidas através de entrevistas com 79 comerciantes, que se distribuíram nas seguintes cidades: Belém (23), São Luís (21), Teresina (21), João Pessoa (10) e Campina Grande (4). Dezesseis mercados públicos foram visitados: Mercado Ver-o-Peso, Mercado São Braz e Mercado do Guamar (em Belém); Mercado Central, Mercado Reviver (Praia Grande), Mercado da COHAB, Mercado João Paulo e Mercado da Liberdade (em São Luís); Mercado Central e Mercado do Parque Piauí (em Teresina); Mercado Central, Mercado do Oitizeiro e Shooping Terceirão (em João Pessoa) e Mercado da Prata, Feira da Galinha e Feira da Arca Titão (em Campina Grande). Para coleta de dados foram utilizados formulários semi-estruturados (Bernard, 1994), complementados por entrevistas livres e conversas informais (Mello, 1995; Chizzoti, 2000; Albuquerque & Lucena, 2004). A amostragem foi não-aleatória intencional, na qual foram pré-definidos os entrevistados (Albuquerque & Lucena, 2004), que consistiram de comerciantes de plantas e animais medicinais. Os questionários continham questões sobre aspectos sócio-econômicos como renda, escolaridade e tempo de trabalho com comércio de animais e plantas medicinais, entre outras questões. 182

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO No Brasil, como em outros países, comunidades rurais desenvolveram um acurado saber acerca das propriedades terapêuticas e medicinais dos animais e plantas. A existência do comércio de recursos biológicos medicinais em cidades evidencia que o uso tradicional da biodiversidade para fins terapêuticos tem sido incorporado pelas comunidades urbanas (Alves & Rosa, 2007b). Diversos produtos medicinais derivados de plantas e animais têm sido comercializados por erveiros nas cidades visitadas. Os vendedores de recursos medicinais têm presença freqüente nas ruas, em feiras livres e mercados. Nesses locais, comercializam plantas e animais (ou partes destes) ou preparados líquidos denominados garrafadas, que são utilizados para fins terapêuticos ou para uso mágico-religiosos. Como apontam Almeida & Albuquerque (2002), os mercados tradicionais, onde se instalam os vendedores de ervas, representam importantes pontos de aquisição de informações sobre a utilização da fauna e flora nativas ou exóticas de uma região, podendo fornecer informações úteis na elaboração de planos de conservação e manejo. O comércio informal de plantas e animais medicinais nas cidades visitadas envolve uma rede comercial que engloba coletores, intermediários (atravessadores) e erveiros. Segundo os entrevistados, a maioria dos recursos medicinais é fornecida por atravessadores responsáveis pelo abastecimento de feiras livres e mercados, entretanto alguns comerciantes relatam que eventualmente eles próprios se deslocam a grandes centros fornecedores. Belém foi apontada pelos entrevistados das outras cidades como um grande centro fornecedor de plantas e animais medicinais, informação que é corroborada pelos próprios comerciantes de Belém, que revelam que pessoas de outros Estados periodicamente procuram produtos animais na cidade. A diversidade biológica da região amazônica contribui para que a cidade de Belém seja um grande centro fornecedor. Além de Belém, outras cidades, sobretudo da Região Nordeste, tais como Fortaleza, Salvador e Recife foram citadas como importantes centros fornecedores. Os comerciantes entrevistados se autodenominam de erveiros ou raizeiros, e assim são conhecidos, uma vez que vendem plantas medicinais em uma maior escala que os produtos zooterápicos. No caso do comércio de animais medicinais, embora praticamente todos os entrevistados comercializem produtos zooterápicos, nem todos admitem. Esse comportamento se deve ao fato de que o comércio de animais silvestres é ilegal, representando uma atividade clandestina ou semiclandestina. Desse modo, animais inteiros ou partes derivadas destes, geralmente são guardados em compartimentos das barracas ou em sacos e recipientes de plástico fechados, sendo apresentados somente por ocasião da procura pelo cliente. Esse tipo de comportamento é adotado em virtude de possível fiscalização por parte dos órgãos ambientais e indica que os comerciantes são conscientes da ilegalidade da comercialização de animais silvestres. Freire (1996), em estudo realizado em mercados de Maceió-AL, observou procedimento similar entre comerciantes de recursos zooterápicos, relatando que os mesmos não gostam de dar informações nem expor todos os produtos que dispõem devido à fiscalização de órgãos governamentais que apreendem a mercadoria. De um ponto de vista social, os raizeiros desempenham um importante papel sócio-econômico nas cidades, pois a utilização de espécies medicinais reduz e, muitas vezes chegam a eliminar, os gastos com medicamentos farmacêuticos, que para algumas famílias brasileiras, especialmente aquelas que têm crianças e idosos, constitui um item pesado na renda doméstica. De acordo com os dados obtidos, observa-se que homens e mulheres estão envolvidos na atividade de comercialização informal de produtos medicinais. Nas cidades de São Luis/MA, Belém/PA e Teresina/PI observou-se o predomínio de homens, enquanto em João Pessoa constatou-se a prevalência de mulheres (67%). Em Campina Grande, não houve prevalência de sexo entre os entrevistados (50% eram homens e 50% mulheres) (Figura 1). Resultados similares foram obtidos por Dantas e Guimarães (2006), em Campina Grande-PB, onde observou-se que 51,2% dos erveiros entrevistados eram do sexo masculino e 48,8% do sexo feminino, ou seja, de acordo com os autores não há diferença percentual significativa, corroborando os dados obtidos nesse trabalho. 183

Figura 1 Distribuição Percentual (%) dos comerciantes de plantas e animais medicinais entrevistados por gênero. Quanto à faixa etária, constatou-se que a maioria dos erveiros possui idade superior a 40 anos (Figura 2). Essa constatação coincide com o resultado obtido por Araújo et al. (2003) em Natal-RN, onde há maior proporção de indivíduos com idade superior a 51 anos e onde não há predominância significativa entre os sexos das pessoas que desempenham a função de erveiro. Um maior número de comerciantes de faixas etárias mais elevadas é esperado, visto que as pessoas mais velhas tendem a concentrar um maior conhecimento acerca das propriedades terapêuticas de plantas e animais. Conforme aponta Matos (1989), os melhores informantes, seja como receitadores ou usuários, são as pessoas mais velhas, detentoras de um percentual maior de conhecimentos tradicionais. Figura 2 Distribuição percentual (%) dos comerciantes de plantas e animais medicinais entrevistados de acordo com a faixa etária. 184

No que diz respeito ao estado civil dos comerciantes entrevistados, a maioria é casada no civil e/ou no religioso ou através de união consensual (Figura 3). Figura 3 Distribuição percentual (%) dos comerciantes de plantas e animais medicinais entrevistados de acordo com o estado civil. Em relação ao grau de escolaridade, a maioria dos entrevistados cursou apenas as primeiras séries do ensino fundamental ou é analfabeta (Figura 4). Situação semelhante foi observada por Dourado et al. (2005), em Anapólis, GO, e Dantas & Guimarães (2006), em Campina Grande, PB, onde se constatou que raizeiros geralmente possuem baixo grau de escolaridade. Conforme aponta Carvalho (2004), o baixo grau de escolaridade entre os comerciantes de plantas (e animais) medicinais evidencia a importância dessa atividade econômica, uma vez que esta constitui sua principal fonte de renda, não dependendo da instrução formal, mas sim do conhecimento popular acerca dos recursos medicinais que comercializam. Figura 4 Distribuição percentual (%) dos comerciantes de plantas e animais medicinais entrevistados de acordo com o grau de escolaridade. 185

Vale ressaltar ainda, que o grau de escolaridade representa um importante aspecto na comercialização de animais e plantas medicinais, exercendo influência direta no ingresso e novos comerciantes a atividade, devendo ser, portanto consideradas no tocante ao estabelecimento de políticas publicas para esse importante setor da economia informal. O grau de escolaridade, por exemplo, restringe as oportunidades de emprego e, conseqüentemente, estimula a inserção de novas pessoas no comércio de animais e plantas medicinais, que não exige educação formal. Espera-se que a melhoria no nível de escolaridade, em associação com trabalhos de educação ambiental, possa levar a um melhor entendimento sobre a necessidade de conservação de algumas plantas e animais de importância econômica usadas popularmente que estão vulneráveis pela perseguição sistemática. A maioria dos erveiros exerce essa atividade comercial há mais de 10 anos, evidenciando a importância da mesma como geradora de emprego e renda. Resultados semelhantes foram obtidos por Dantas & Guimarães (2006), no município de Campina Grande, que constatou que a média de tempo de pessoas que comercializam plantas medicinais é de 17 anos. Figura 5 Distribuição percentual (%) dos comerciantes de plantas e animais medicinais entrevistados por tempo de comércio. A comercialização de recursos biológicos para fins medicinais representa a principal fonte de renda dos entrevistados. Verificou-se a prevalência de renda entre 1 e 2 salários mínimos entre os entrevistados em todas as cidades visitadas (Figura 6). O baixo nível de renda entre erveiros também tem sido observado em outros estudos (Dantas & Guimarães, 2006; Araújo et al., 2003; Dourado et al., 2005). Entretanto, nas cidades de São Luís e Belém, parte dos entrevistados alcançam rendimentos entre 4 e 5 salários mínimos e alguns até mais de 5 salários, evidenciando a grande popularidade do uso de animais e plantas nessas cidades, refletida no grande número de mercados e erveiros que existem nas mesmas. 186

Figura 6 Distribuição em percentual (%) do perfil dos comerciantes de plantas e animais medicinais entrevistados de acordo com o nível de renda. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Nossos resultados evidenciam que a atividade de comercialização de recursos biológicos para uso da medicina tradicional reveste-se de extrema importância, não somente por representarem uma alternativa terapêutica aos medicamentos alopáticos, mas também pelos aspectos culturais, socio-econômicos e ecológicos associados à atividade. Adicionalmente, o comércio de animais e plantas medicinais constitui um importante aspecto no que diz respeito à saúde pública, uma vez que os produtos medicinais disponíveis em feiras livres ou em barracas de erveiros não estão submetidos à fiscalização quanto à procedência, forma de armazenamento, exposição ao sol, à luz ou à umidade, condições de higiene na manipulação. Nesse sentido, o uso de animais e plantas deve ser considerado dentro de programas de saúde publica, visando evitar utilização de produtos contaminados. Medidas que visem o monitoramento do comércio informal de plantas e animais medicinais se fazem necessárias, tendo em vista as implicações ecológicas associados a essa modalidade de uso da biodiversidade. Ressaltase, porém, que essas medidas devem considerar a realidade local dos comerciantes, buscando assim identificar as intervenções que podem promover a sustentabilidade dos recursos medicinais exploradas, a eficiência de medidas de manejo e os benefícios econômicos associados a atividade. O estabelecimento de medidas conservacionistas voltadas para esse tipo de uso deve, também, considerar a dimensão cultural associada a tais usos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBUQUERQUE, U.P. & LUCENA, R.F.P. Métodos e técnicas para coleta de dados. In: Albuquerque, U.P.; Lucena, R.F.P. Métodos e técnicas na pesquisa etnobotânica. Recife: NUPEEA/Livro Rápido, 2004. p. 37-62. ALMEIDA,C.F.C.B.R. & ALBUQUERQUE, U.P. Uso de plantas e animais medicinais no estado de Pernambuco (Nordeste do Brasil): Um estudo de caso. Interciencia, v. 27 (6), 2002, p. 276-284. ALVES, R. R. N. & PEREIRA-FILHO, G. A. Commercialization and use of snakes on North and Northeastern Brazil: implications for conservation and management. Biodiversity and Conservation, v. 16, 2007, p. 969-985. ALVES, R.R.N. & ROSA, I.L. Why study the use of animal products in traditional medicines?. Journal of Ethnobiology and Ethnomedicine, v.1, 2005, p. 1-5. 187

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Endereço Postal: Residência Universitária, Campus I, Bloco B AP 218. CEP 58051-900, João Pessoa PB. Email: carla_calixto.s@hotmail.com. [3] Mestre em Ciências da Nutrição pela Universidade Federal da Paraíba, Professor de Qualificação Profissional e Coordenador do Arco de Educação do Projovem/JP. E-mail: humbertonobrega@yahoo.com.br 189