ARQUITETURA COMO OBRA DE ARTE: Considerações acerca das políticas de preservação patrimonial. FRANCO, PAMELA (1); AFONSO, ALCÍLIA. (2) 1. UFPI. Pós-Graduação em Artes, Patrimônio e Museologia Rua José Omatti, n 3313. Tersina-PI pamelarfranco@gmail.com 2. UFCG. Departamento de Arquitetura Rua Aprígio Veloso, n 882. Campina Grande-PB kakiafonso@hotmail.com RESUMO Por muito tempo a Arquitetura foi vinculada às artes visuais; os personagens artista-arquitetos se confundiam e as obras pintura, escultura e arquitetura eram indissociáveis. Esta noção perdurou por tempo suficiente para provocar uma série de interpretações equivocadas sobre a arquitetura, que estão presentes até hoje. Uma delas está relacionada à preservação patrimonial do bem material imóvel; entendido tal qual um patrimônio material móvel - exceto por sua mobilidade física - o patrimônio edificado, por muitos anos, foi alvo de políticas de preservação que não o contemplavam adequadamente. Nas restaurações preocupavam-se exaustivamente com a autenticidade de materiais e o contexto da origem desses edifícios, muitas vezes ignorando o que a arquitetura possui de mais relevante: a sua necessidade de servir a um determinado uso. Palavras-chave: Obra de Arte; Arquitetura; Patrimônio.
Arquitetura como obra de arte (?) Por muito tempo perdurou a noção de arquitetura como uma obra de arte tal qual uma pintura ou escultura; os personagens artista-arquitetos se confundiam - Brunelleschi, Michelangelo, Rafael e Aleijadinho (no Brasil) são exemplos desses personagens artistas que projetavam. Nem é preciso buscar em períodos tão longínquos, escolas como a Bauhaus (1919-1933) ou a Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro (até 1945) tinham por metodologia o ensino das artes indissociável ao da arquitetura, tornandose responsáveis pela formação de destaques da arquitetura moderna internacional e nacional, respectivamente. Assim, entende-se arquitetura como uma arte, contudo hão peculiaridades a serem consideradas. Questiona-se, então: o que diferencia a arquitetura das outras artes? Estética certamente não, pois é uma preocupação notável em ambas. Seria a estrutura? De fato, a preocupação com a estrutura está intrinsecamente ligada à arquitetura, mas, por esta característica, não a diferencia, por exemplo, da escultura, que também deve ter noções técnicas voltadas para o equilíbrio das forças. O que há, então, de peculiar nesta arte? A arquitetura é uma arte voltada para o uso, advindo necessariamente de uma solicitação de um determinado público (ARGAN, 2004). Um edifício sem uso, sem público, não passa de um monumento, uma obra escultórica, imutável, não arquitetônica. Monumentalização e preservação patrimonial Ao reportar à monumentalização da arquitetura associa-se, equivocadamente, a ações de preservação patrimonial; isso porque, no contexto brasileiro, com base na noção ocidental, o patrimônio cultural vem sido tratado a partir de dicotomias como individual X conjunto, natural X cultural e, principalmente, material X imaterial. De um lado, as artes plásticas, visuais, os monumentos - intocáveis e estáticos - ; e de outro, os saberes, modos de fazer, práticas tradicionais - ensinadas e reinventadas no passar das gerações. Entretanto, essa noção difundida até hoje, na contemporaneidade, não abarca a dinamicidade e pluralidade da cultura humana a qual se tem por objetivo o reconhecimento como patrimônio. Márcia Sant anna em seu artigo intitulado Patrimônio Material e Imaterial: dimensões de uma mesma ideia (2011) resgata o histórico da noção ocidentalizada de patrimônio cultural. Explica que a ideia de monumento histórico e de preservação que fundamentaram as práticas de proteção patrimonial brasileiras vieram da Europa,
inauguradas no Renascimento, quando a noção de monumento era vinculada tão somente à arte e a história, a saber: [...] o monumento histórico resulta da atribuição de valor histórico, artístico ou memorial, a algo cuja função original era atender uma necessidade humana qualquer, simbólica ou não. Resulta da colocação de um produto da ação humana em perspectiva histórica ou estética, colocando-o em relevo e separando-o dos demais. O monumento histórico supõe uma operação de seleção que é um ato tão político quanto a construção de um monumento. (SANT ANNA, 2011, p.193) A monumentalização, tal qual descrita pela autora, é característica ocidental, onde a preservação é entendida como a manutenção da matéria original do bem, sob uma ideia rigorosa de autenticidade; diferenciando-se da prática oriental de valorização da transmissão dos saberes vinculados às suas práticas tradicionais em detrimento dos objetos produzidos. Esta prática oriental se aproxima da recente política de registro do patrimônio imaterial no Brasil que, apesar de já contemplada no projeto que Mário de Andrade elaborou para o Serviço do Patrimônio Artístico e Nacional, em 1936, somente fora posta em prática a partir da década de 1980. A prática de preservação aplicada aos patrimônios imateriais se difere daquela aplicada aos ditos materiais, pois se entende que a transmissão entre gerações depende da sua possibilidade de atualização, de recriação, como estabeleceu a Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, aprovada pela Unesco em 2003. A preservação do bem imaterial é compreendida como forma de documentá-lo e conhecê-lo, não de forma imutável, mas de forma a promover e apoiar condições espaciais e sociais que propiciem sua continuidade. Entendidas de forma controversa, as práticas de proteção dos patrimônios imateriais e materiais - em especial os imóveis - têm reflexos nas interpretações dadas pelo senso comum. Enquanto o Tombamento é visto pelos proprietários privados como uma forma de desvalorização e inutilização de seu bem; o Registro do patrimônio imaterial é considerado uma premiação cedida, uma valorização da cultura; a começar da solicitação de Registro, que deve ser feita pelos detentores de dado patrimônio imaterial, gera uma responsabilidade de preservação e zelo pelo bem. Já a solicitação de Tombamento ocasionalmente é associada, pelo senso comum, à desapropriação. Entretanto, essas noções antagônicas vêm sido reavaliadas atualmente. Como esclarece Márcia Sant anna, :
a prática ocidental de preservação, fundada na conservação do objeto, na sua autenticidade e numa codificação legal baseada na limitação do direito de propriedade, não dá conta da noção expandida de patrimônio cultural que ganhou corpo em todo o mundo, mediante a incorporação dos aspectos imateriais ou processuais da cultura. Percebeu-se que declarar um objeto patrimônio e conservá-lo em sua forma e substancia não abrange todas as situações sociais em que é possível reconhecer um valor e preservá-lo. Não faz sentido, por exemplo, nos casos em que o que tem valor não é o objeto, inúmeras vezes rapidamente perceptível ou consumível, mas o saber que permite fazê-lo. Não faz sentido, igualmente, nos casos em que nem há objetos, mas apenas palavras, sons, gestos e ideias. (SANT ANNA, 2011, p.195-196) Adiante, apresenta-se o exemplo da Casa Dôta, em Teresina, capital do Piauí; a necessidade de pensar esta edificação como um documento histórico ocorre devido à representatividade física do conflito entre bônus e ônus do tombamento, preservação e desenvolvimento econômico, memória e contemporaneidade. Devendo ser reconhecida na sua condição documental enquanto agente transformador. Estudo de caso: Casa Dôta (Teresina-PI) A Casa Dôta foi contruída em 1901, característica de uma arquitetura de traços coloniais, sob influência da morada e meia, típica da arquitetura maranhense, e que abrigava, simultaneamente, residência e um comércio de grande relevância para a época, quando se faziam uso da navegabilidade do rio Parnaíba para transporte de mercadorias. Na Casa Dôta respeitou-se as características internas e externas por um longo período, preservando mobiliários, planta baixa, cobertura e fachadas, adaptando-se bem ao desenvolvimento comercial da área central da cidade - por ser construída para abrigar além da residência o comércio - que na época do processo de tombamento era um campo de crescimento rápido e desordenado; o que era constituído essencialmente por residências, ao longo do século XX tornou-se uma área eminentemente comercial (FUNDAC, 1986).
Figura 1: Fachada principal da Casa Dôta. Fonte: Fundação Cultural do Piauí, sd. Em junho de 1986 a Fundação Cultural do Piauí detectou a importância da edificação e iniciou o processo de tombamento por meio do inventário, buscando informações junto aos familiares. No período em que essa ação tramitaria junto ao Conselho Estadual de Cultura para iniciar o processo de tombamento, os proprietários, ilicitamente, alteraram a fachada (Figura 2), trocando suas características janelas de arco pleno por esquadrias em vergas retas de ferro, no intuito de paralisar o processo, pois uma vez alterada suas características, o prédio perdia sua possibilidade de tombamento, deixando os proprietários livres para negociarem o imóvel da forma mais rentável.
Figura 2: Fachada com janelas alteradas. Fonte: Fundação Cultural do Piauí, 1986. Percebeu-se que esta atitude extrema dos proprietários diante do temor ao tombamento é resultado da interpretação que se tinha a respeito desse tipo de proteção, como de uma desvalorização econômica e imobilização do bem dito patrimônio histórico e cultural. Atualmente a Casa Dôta é ponto totalmente comercial, a poluição visual não permite perceber em sua fachada qualquer característica arquitetônica original do edifício (Figura 3). De forma geral há um grande conflito entre a legislação de proteção do patrimônio e os interesses pessoais, o que precisa ser atenuado.
Figura 3: Fachada em estado atual. Foto: Pamela Franco, 2015. Flávio Carsalade, em seu artigo A preservação do patrimônio como construção cultural, discute o porquê dessa noção arraigada de patrimônio material imóvel ser associado a algo intocado, sem uso, sem valor comercial e, portanto, visto com receio pelos proprietários de edifícios históricos. Tal noção, segundo o autor, está associada à ideia de que arquitetura é uma obra de arte visual e como tal está sujeita as mesmas práticas de preservação e restauração aplicadas a uma escultura, por exemplo. Assim, explica: Profundamente influenciadas pela noção de restauro da obra de arte, as questões de restauro arquitetônico foram trabalhadas como se a Arquitetura fosse uma arte visual e desde um ponto de vista relativo a um conceito de integridade visual, onde a obra seria um todo fechado do qual nada se poderia retirar ou acrescentar, o que para a sobrevivência dos artefatos arquitetônicos seria uma tarefa impossível. (CARSALADE, 2011, p.01) Arquitetura é uma arte produzida e modificada em função do uso, devendo sempre atender a necessidades de uma sociedade. Portanto, a permanência de uma edificação no correr do tempo está intimamente ligada à sua capacidade de atender à função solicitada por um dado público. Aldo Rossi (2001) ajuda a esclarecer a aproximação da arquitetura às obras de arte, quanto à criação, técnica, sentidos e significados atribuídos, mas que, no entanto, se distancia das outras artes visuais quanto à sua função no espaço e no tempo, em permanente estado de transformação. Assim, entende-se que as intervenções de preservação e restauro de bens patrimoniais ditos imóveis, ou seja, de arquitetura, devem ser reavaliadas, ponderando esta sua característica peculiar, que os diferencia das artes visuais. Considerar a mutabilidade da obra arquitetônica não a faz menos digna do reconhecimento como patrimônio; [...] se por
um lado é clara a função identitária da cultura e a importância da preservação de seus valores para a coesão dos povos, por outro lado, isso não significa que a cultura seja imutável e que a identidade seja fixa (CARSALADE, 2011:01). Diferente da prática de restauro de uma obra de arte visual, como uma escultura, por exemplo, que deve trazer fidelidade aos materiais e técnicas usados, ponderando sempre a autenticidade da obra; a restauração de uma obra arquitetônica não deve considerar apenas uma conservação estilística, mas sua adequação à vida moderna, caso contrário pode causar efeito reverso, provocando sua deterioração por perda de uso e, consequentemente, de significado, já que a identidade de um bem arquitetônico está diretamente ligada à sua função. De acordo com Carsalade (2011), o contexto não deve ser supervalorizado em detrimento do texto ; a saber, não se deve entender o bem patrimonial tal como era e qual seu uso no contexto em que surgiu, mas sim como ele se apresenta hoje a nós; se seu uso e seus significados foram reinventados ao longo do tempo, devem ser respeitados. Não há como desassociar o bem material do seu valor imaterial; reconhecer estas transformações não lhe provoca perda do significado, mas o reforçam. Entender o bem patrimonial material a partir da dicotomia material X imaterial : [...] é o perigo que conduz ao embalsamento e a mumificação do bem e que também conduz a sua apropriação excessivamente setorial (geralmente pela indústria do turismo) e que, ao tentar lhe recuperar a verdade do significado, acaba por lhe retirar quase todo ele. (CARSALADE, 2011, p.01) Cabe exemplificar os conceitos aplicados na revitalização do centro de Bologna, posteriormente discutidos e documentados na carta de Amsterdã, em 1975. Nela, indicações como A recuperação de áreas urbanas degradadas deve ser realizada sem modificações substanciais da composição social dos residentes nas áreas reablilitadas e Deve ser encorajada a construção de novas obras arquitetônicas de alta qualidade, pois serão o patrimônio de hoje para o futuro (LACERDA; ZANCHETT, 2012:21), mostram uma nova visão de preservação patrimonial que eventualmente insiste em ser ignorada. Considerações finais É preciso entender a noção de patrimônio cultural distante da dicotomia material X imaterial. O patrimônio material edificado, notadamente a arquitetura, precisa ser compreendida não como uma arte visual, mas como detentora de um estatuto próprio, o que
a aproxima das políticas de preservação das paisagens culturais, a saber, a chancela, que relaciona o espaço com as práticas sociais. Para Carsalade, a questão da preservação se centra: [...] no conceito de transformação, ou seja, como manejar essa transformação de forma que não se rompa a delicada tessitura entre a tradição e a contemporaneidade, pois, ao intervir no bem patrimonial nós o estamos modificando, sempre, afinal pela tradição ele já nos chega alterado, pela cultura ele nos chega tematizado e, pelo tempo, com sua significação original perdida. (CARSALADE, 2011, p.01) Entende-se aqui que o que deve ser alvo da preservação é a identidade líquida, em permanente estado de transformação, e não a imutabilidade do bem patrimonial, pelo contrário, este deve ser capaz de mudar em paralelo às transformações sócio-cultuais que são incontestáveis. Referências ARGAN, Giulio Carlo. Arquitetura e arte não figurativa. In: Projeto e Destino. São Paulo: Ática, 2004. p.137-148. CARSALADE, Flávio. A preservação do patrimônio como construção cultural. Arquitextos, São Paulo, ano 12, n. 139.03, Vitruvius, dez. 2011 http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/12.139/4166 FUNDAC. Proposta de tombamento da casa Dôta. Teresina: Fundac, 1986. LACERDA, Norma; ZANCHETT, Sílvio. Gestão da conservação urbana: conceitos e métodos. Olinda: CECI, 2012. ROSSI, Aldo. Arquitetura da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 2001. SANT ANNA, Márcia. Patrimônio Material e Imaterial: dimensões de uma mesma ideia. In: GOMES, Marco Aurélio; CORRÊA, Elyane. Org. Reconceituações contemporâneas do patrimônio. Salvador: EDUFBA, 2011.