PERSPECTIVAS ATUAIS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS: a solidariedade e o Terceiro Setor no enfrentamento da questão social

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PERSPECTIVAS ATUAIS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS: a solidariedade e o Terceiro Setor no enfrentamento da questão social Mariela Costa Carvalho 1 Andréia Carla Santana Everton 2 Paula Katiana da Silva Carreiro 3 Resumo: O artigo aponta elementos para uma problematização sobre a substituição das ações do setor público pelo chamado Terceiro Setor, tendo como referência o apelo à solidariedade. Nesse contexto, serão observados os impactos desta substituição para as políticas públicas e, em especial, para a organização da classe trabalhadora. Palavras-chave: Solidariedade, Terceiro Setor, Políticas Públicas. Abstract: The article points out elements to an inquiry about the replacement of the shares of the public sector by the socalled Third Sector, with reference to the call for solidarity. In this context, the impacts will be observed from this replacement for public policies and, in particular, for the organization of the working class. Key words: Solidarity, Third Sector, Public Policies. 1 Estudante de Pós-Graduação. Universidade Federal do Maranhão (UFMA). E-mail: marielacarvalho@uol.com.br 2 Estudante de Pós-Graduação. Universidade Federal do Maranhão (UFMA). E-mail: andreiaeverton1@hotmail.com 3 Estudante de Pós-Graduação. Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

1 INTRODUÇÃO O presente ensaio visa uma análise crítica acerca dos redimensionamentos das políticas públicas no marco do projeto neoliberal, onde se destaca a minimização do Estado ou sua total ausência em face da convocação para que as respostas por meio das políticas públicas sejam dadas por outro ente, o chamado Terceiro Setor, o qual será abordado ao longo do texto a partir da concepção de Carlos Montaño. A seguir apontaremos alguns elementos que merecem nossa análise sobre o discurso oficial que permeia esta substituição de papéis entre Estado e sociedade civil. Iniciaremos apresentando a convocação da sociedade civil, erroneamente entendida como Terceiro Setor, através do apelo a solidariedade, como nos aponta Mészáros (2004) para assumir as frentes estatais, bem como as implicações desta substituição. No segundo momento caracterizaremos esta substituição por meio da discussão mais detalhada sobre Terceiro Setor, sua natureza e seus desdobramentos, em especial na materialização do seu exercício por meio das diferentes políticas públicas. 2 O APELO À SOLIDARIEDADE: SUAS IMPLICAÇÕES PARA A ORGANIZAÇÃO DA CLASSE TRABALHADORA Pensar em solidariedade na atual conjuntura exige nos despojarmos do senso comum e da idéia de bem coletivo, altruísmo e de percebermos a ótica mistificadora que este fenômeno apresenta, pois conforme aponta Abreu (2005, p. 2): Na atualidade, nos marcos das estratégias neoliberais de enfrentamento da crise do capital a temática da solidariedade passa a ser realçada no discurso dominante na base dos processos participativos a partir dos redimensionamentos da produção e da reprodução social. Em relação à produção, a solidariedade apresenta-se como uma condição ideológica dos processos de reestruturação tecno-organizacional do trabalho que fundamenta estratégias de descentralização, cooperação e colaboração nas relações de trabalho,em que as inovações técnicoorganizacionais introduzidas a partir do toyotismo/ohnismo são exemplares. Abreu (2005) destaca, ainda, que o processo no âmbito da reprodução social caracteriza-se como sendo o deslocamento do conceito de solidariedade para a solidariedade social. Trata-se da solidariedade entre classes, que tem a pseudo organização intermediada pelo Estado por meio dos diferentes padrões de proteção social.

As discussões em torno do entendimento mais amplo de solidariedade e seus impactos para a organização da classe trabalhadora exige a desmistificação do discurso oficial e sedutor de que há possibilidade de existir a solidariedade entre classes, ignorando a relação capital X trabalho. Ao mesmo tempo o apelo a solidariedade comparece nos processos organizativos e lutas sociais da classe trabalhadora (solidariedade intra-classe), seja repondo a como elemento de unidade e fortalecimento dessa classe no enfrentamento e superação da exploração e dominação capitalista, isto é como fundamento de alternativas de produção e de trabalho e reprodução social, contraposta às relações de exploração e dominação que marcam os processos produtivos e a distribuição da riqueza social sob o capital (ABREU, 2005, p. 2). É esta nova roupagem que a solidariedade adquire nos discursos oficiais e, em especial, no que permeia o fortalecimento do Terceiro Setor é que Meszáros (2004) chama de apelo à solidariedade, o qual mascara a luta de classe. Lukács citado por Meszáros (2004, p. 436) afirma que a crise ideológica do proletariado deve ser resolvida antes que possa ser encontrada uma solução prática para a crise econômica mundial. A organização dos trabalhadores enquanto classe reforça o que chamamos de solidariedade intra-classe, que é pautada na construção de lutas coletivas, que tem sido constantemente diluídas através do pseudo pacto solidário entre classes, o que mistifica que em terrenos tão antagônicos na relação capital X trabalho seja possível haver convergência e, ainda, que estas relações sejam intituladas de solidariedade voluntária ou solidariedade entre classe. Esse pensamento está em consonância com Meszáros (2004, p. 438), que entende a constituição da solidariedade pela classe trabalhadora como um elemento inerente à sua organização como classe, em que pesem as dificuldades e equívocos do processo de sua constituição no interior da classe. O mesmo autor afirma, também, que a reconstituição da solidariedade internacional de acordo com sua base material fundamentalmente alterada é um dos maiores desafios que o movimento socialista enfrenta por toda parte (MESZÁROS, 2004, p. 436). Assim, nos ateremos a elementos primordiais apontados por Meszáros, os quais nos fazem elucidar a solidariedade apontada como forma unificadora dos interesses de trabalhadores e capitalistas. A perversa universalidade do capital pode contradizer e abalar diretamente a solidariedade dos explorados e oprimidos, evitando assim o surgimento

da universalidade rival do internacionalismo socialista, necessariamente oposta aos interesses do capital (MESZÁROS, 2004, p. 439). O cenário em questão favorece aos refluxos dos movimentos organizativos da classe trabalhadora e faz com que as respostas às demandas dos trabalhadores desloquem-se da esfera estatal e passem a ser atendidas pelo chamado Terceiro Setor, por meio das Organizações não Governamentais (ONG s), caracterizando-se como Filantropia Estatal. Por outro lado, a luta da classe trabalhadora norteada pelos ideais emancipatórios da sociedade, repõe a participação como estratégia de politização das relações sociais e de intervenção crítica dessa classe no movimento histórico; isto é como principal eixo do processo concreto de constituição da classe como força contraposta à ordem do capital, na medida em que este processo impõe a criação/recriação de mediações de organização e luta na perspectiva de construção de alternativas à sociedade capitalista (MÉSZÁROS apud ABREU, 2005, p. 7). A avaliação que se faz sobre o apelo à solidariedade refere-se diretamente a convocação da participação do Terceiro Setor para as respostas de âmbito estatal. Essa temática será aprofundada nos itens seguintes deste texto. 3 TERCEIRO SETOR E ENFRENTAMENTO DA QUESTÃO SOCIAL? As relações estabelecidas entre o público e o privado têm sido redimensionadas e, nos últimos anos, acompanha-se a uma discussão de uma nova modalidade de proteção social financiada pelo setor privado, quer seja na forma de bens, quer seja na forma de serviços, voltadas para o público. Segundo Montaño (2002), trata-se do tema do Terceiro Setor 4 do qual vem ganhando espaço no Brasil desde os anos 1990, como setor que tem sua base de sustentação funcional e ocupacional na execução das políticas sociais. A emergência desse fenômeno ocorre em meio a um contexto de mudanças no mundo capitalista, orientadas sob a ótica do projeto neoliberal, da qual ocorrem também alterações nas políticas sociais, alterações estas que incidem na sua orientação e no seu direcionamento, provocando uma redefinição dessas. As classes subalternizadas sofrem diretamente os impactos das transformações no quadro societário, uma vez que o Estado, 4 Também são utilizados outros conceitos para o fenômeno, tais como: Filantropia Empresarial, Políticas Sociais Empresariais, Cidadania Empresarial Responsabilidade Social, Ações em Fins Lucrativos, Voluntariado, dentre outros.

caracterizado hoje como Estado Mínimo de Provisão Social, relega as políticas sociais à precariedade e ao abandono. Além de que, a redução nos gastos públicos, identificada como estratégia neoliberal, repercute negativamente nestas classes, posto que estas são as que mais necessitam de políticas sociais básicas. Porto (2001) caracteriza as políticas sociais atuais como focalizadas, desconcentradas e precarizadas, o que faz com que apresentem um baixo grau de efetividade, não dando conta de combater a pobreza e diminuir as desigualdades sociais. O que se verifica, portanto, é que há uma nova roupagem exercida pela proteção social brasileira, na qual se configura de um lado, a remercantilização dos serviços sociais, e por outro lado, a refilantropização das respostas à questão social. Trata-se da redução do precário aparato estatal, da desestatização de organismos públicos e do repasse da responsabilidade estatal para a sociedade civil. Nesse cenário, é que se tem um forte apelo à solidariedade apresentada pelos governantes e assimilada pelas organizações públicas não-estatais e/ou pela própria sociedade civil. De acordo com Mestriner (2001), o que se percebe é uma tentativa de legitimar [...] novas formas privadas de provisão de atenções sociais, por meio de velhas formas de solidariedade familiar comunitária e beneficente (MESTRINER, 2001, p. 28). Assim, é nesse sentido que o Terceiro Setor está inserido no processo de reforma neoliberal do Estado e das relações capital X trabalho, em respostas às sequelas da questão social. De acordo com Montaño (2002), o debate acerca do Terceiro Setor surgiu nos Estados Unidos, na década de 1970, atrelado ao discurso do associativismo e do voluntariado no contexto do paradigma do individualismo liberal. No Brasil, este conceito foi cunhado a partir de 1996 no III Encontro Ibero-Americano do Terceiro Setor. Contudo, foi amplamente difundido em 1997, conjugado à Reforma do Aparelho do Estado Brasileiro. Montaño (2002) afirma, ainda, que há um debate dominante com tendências mistificadoras acerca do Terceiro Setor, na qual se manifesta a aparência e encobre a essência do fenômeno. Nesta perspectiva, o que se observa é que há uma fragmentação inerente ao Terceiro Setor, cuja fundamentação se dá a partir do recorte do social em esferas, sendo que, analisadas de forma desarticulada da totalidade social, correspondem ao Estado o primeiro setor (político, estruturado pela propriedade pública estatal), ao mercado o segundo (econômico, assentado nas propriedades voltadas para o lucro ou para o consumo privado familiar), e a sociedade civil ao terceiro setor (social, fundado em propriedades publicas não-estatais ou corporativas, sem fins lucrativos). Este termo,

diretamente ligado ao conceito de filantropia, é utilizado para designar fundações, organizações não governamentais, associações comunitárias, instituições religiosas, movimentos sociais dentre outros. Ainda em conformidade com o referido autor, ao ser repassada a responsabilidade do social para a sociedade civil, esta se torna despolitizada e desistoricizada, perdendo, inclusive, o seu conteúdo de luta de classes. Além disso, as respostas dadas à questão social passa a ser seguida dos valores de solidariedade, voluntariedade local e auto-ajuda. Simionatto (p. 08) afirma que a sociedade civil tomada em sentido transclassista, é convocada, em nome da cidadania, a realizar parcerias de toda ordem, sendo exemplares os projetos de refilantropização das formas de assistência como o Comunidade Solidária e instituições do gênero. A sociedade civil aqui aparece pela ótica do capital, sem estabelecer uma correlação de forças com o Estado. A participação é centrada mais a nível individual do que coletivo, trata-se de uma perspectiva de indivíduos mais cooperativos do que conflituosos. Com o surgimento do Terceiro Setor o cenário que se delineia é o de entrega dos direitos à racionalidade do mercado (TELLES apud NOGUEIRA, 2005, p. 66). Nesse sentido, concordamos com Montaño (2002), quando afirma que, na verdade, ao perceber o fenômeno do Terceiro Setor, o que se tem é uma nova roupagem (mas com velhas formas de enfrentamento) de trato da questão social, na qual a responsabilidade do Estado é suprimida no que tange ao seu papel de gestor de políticas sociais, transferindo essa função para a sociedade. Ademais, através da transferência de responsabilidade do enfrentamento da questão social, verifica-se o caráter mistificador político e ideológico desse fenômeno, pois ao reduzir a ideia de direito é introduzida na sociedade a cultura de auto-culpabilização do indivíduo. A sociedade passar a ter um objetivo comum: servir a comunidade sem ter nenhum tipo de lucro, motivados apenas pela solidariedade. No entanto, o que se percebe é que tal solidariedade serve ao capitalismo, pois objetiva a manutenção da propriedade privada, uma vez que se apresenta como aclassista e despolitizada, reiterando apenas os preceitos liberais com a propagação de um Estado Mínimo e não um Estado de Proteção Social provedor de bens e serviços sociais para promover a equidade social.

4 POLÍTICAS PÚBLICAS E TERCEIRO SETOR O fortalecimento do Terceiro Setor ocorreu com a reforma do Estado, em que a política neoliberal defendeu que em função da crise econômica o Estado deveria adotar medidas que incluía, entre outras, uma forte política de privatização das estatais. Era necessário, também, diminuir os custos e tornar o Brasil mais competitivo globalmente. Para isso, o país deveria se adaptar à nova realidade mundial, flexibilizando as relações de trabalho e reduzindo os gastos das políticas públicas sociais. Além da questão do corte de custos, a atuação do Terceiro Setor ganhou força em razão de que a estrutura estatal era criticada por sua incapacidade de operacionalizar as políticas sociais, pois era lenta e ineficiente. A solução foi minimizar o papel do Estado, dando espaço para que outra esfera mais competente pudesse desempenhar essa função. Nesse sentido, o Terceiro Setor ocupou esse espaço com perfeição, pois foi apresentado como uma estrutura rápida, eficiente e comprometida com o bem estar social. Esse último aspecto fica evidenciado quando o seu discurso é analisado, pois o Terceiro Setor utiliza forte apelo sentimental, segundo o qual cada cidadão de bem deveria doar um pouco do seu tempo, do seu trabalho ou do seu dinheiro para ajudar os mais necessitados. O Terceiro Setor aparece, assim, como uma solução ideal para a política do Estado mínimo, conforme destaca Laura Tavares Soares (2002, p. 90): Mesmo em nosso país, onde jamais fomos capazes de construir um efetivo Estado de Bem-Estar Social, ao invés de evoluirmos para um conceito de política social como constitutiva do direito de cidadania, retrocedemos a uma concepção focalista, emergencial e parcial, em que a população pobre tem que dar conta dos seus próprios problemas. Essa concepção vem devidamente encoberta por nomes supostamente modernos como participação comunitária, autogestão, solidariedade, em que a solução dos problemas dos pobres se resume ao multirão. Dessa forma, o Estado adotou uma postura de fortalecimento das organizações do Terceiro Setor ao desenvolver, por exemplo, uma legislação específica 5 e implantar incentivos fiscais para essas entidades. O contraditório nessa postura do Estado é que mesmo argumentado que não tinha condições econômicas e estruturais de sustentar as políticas sociais, ele deu suporte e fortaleceu o Terceiro Setor. 5 Exemplos dessa legislação é a Lei 9.790, de 23 de março de 1999. Conhecida como a lei do Terceiro Setor, ela dispõe sobre a qualificação de pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), institui e disciplina o Termo de Parceria e dá outras providências.

Ao longo do tempo, o Terceiro Setor fortaleceu a imagem de promover a corrente do bem e de permitir o exercício da cidadania e sua relevância foi crescendo à medida que seus projetos diversificaram-se. Foram criadas redes, premiações e publicações especializadas sobre o Terceiro Setor. Assim, passou-se a falar na divisão da responsabilidade entre o Estado e o Terceiro Setor na execução das políticas públicas, dando a idéia de parceria entre o governo e o cidadão. Assim, [...] seriam atingidos três dos objetivos neoliberais: remercantilizar os bens sociais, reduzir o gasto social público e suprimir a noção de direitos sociais (LAURELL apud MONTAÑO, 1999, p. 74). No caso do Brasil, a redução dos investimentos por parte do Estado gerou uma nova tendência no desenvolvimento das políticas sociais. As políticas passaram a ser implementadas de modo focalista. Nesse sentido, a política social nasce e se articula umbilicalmente às reformas liberais e tem por função compensar parcial, e muito limitadamente, os estragos socioeconômicos promovidos pelo modelo liberal periférico e suas políticas econômicas (DRUCK; FILGUEIRAS, 2007, p. 26). A proposta das políticas focalizadas é atender a parte mais vulnerável da população. Elas são pensadas a partir da seleção das áreas de risco social, visando atender às necessidades específicas de cada região e de das classes menos favorecidas. Essa prática de política pública de natureza seletiva é bem evidente na área da saúde. A ideia de que o Sistema Único de Saúde (SUS) é uma política universal fica cada vez mais frágil na proporção em que alguns de seus programas são focados para os setores que estão em situação de risco social. Entretanto, é importante termos em vista a qualidade dessas políticas, pois a concepção do corte de gastos está no cerne de suas formulações. Nesse sentido, é comum o uso das políticas sociais como ações compensatórias por parte do Estado para que a população vulnerável sinta em menor proporção os impactos da política neoliberal, tais como o desemprego, a falta de moradia e a precariedade de políticas básicas como a saúde e a educação. 5 CONCLUSÃO Face aos redimensionamentos no mundo trabalho, que tem alterado as relações de produção e as condições político ideológicas da participação da classe trabalhadora,

presencia-se a materialização mistificadora da solidariedade entre classes em detrimento da solidariedade intra classe. Em meio a substituição do real sentido da solidariedade e apelo ao Terceiro Setor, identifica-se a transferência de atividades de um setor estatal visto com sendo ineficiente e burocrático para um Terceiro Setor eficiente, eficaz e democrático. Desta forma, o que tem sido chamado de Terceiro Setor, refere-se a um fenômeno mistificador utilizado para legitimar esse deslocamento das responsabilidades do Estado, bem como o produto das transformações. Com a substituição da regulação estatal sobre a economia e a sociedade pela regulação do mercado, tem-se um processo denominado por Francisco de Oliveira, como a privatização do público, com a difusão de uma ideologia que coloca a pouca importância do público. Frente a esse processo faz-se necessário a continuidade do debate critico sobre a relação público, privado e Terceiro Setor e os seus desafios para construção de uma esfera pública democrática, mesmo nos limites de um Estado burguês. REFERÊNCIAS ABREU, Marina M. Solidariedade e participação no contexto da atual reestruturação capitalista: aspectos conceituais e questões pertinentes à classe trabalhadora. In: Jornada Internacional de Políticas Públicas, 2, São Luís, MA, 2005. Anais... São Luis: UFMA, 2005. Disponível em: <http://www. www.joinp.com.br>. Acesso em: 12 mar. 2013. DRUCK, Graça e FILGUEIRAS, Luiz. Política Social Focalizada e Ajuste Fiscal: as duas faces do governo Lula. Revista Katál. Florianópolois. V.10, 2007. MESTRINER, Maria Luiza. O Estado entre a Filantropia e a Assistencia Social. São Paulo: Cortez, 2001. MÉSZAROS, Istvan. O Poder da ideologia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004. MONTAÑO, Carlos. Das lógicas do Estado às lógicas da sociedade civil : Estado e terceiro setor em questão. Serviço social & sociedade, São Paulo, ano XX, n. 59, p. 47-80, mar. 1999. MONTAÑO, Carlos. Terceiro Setor e Questão Social: critica ao padrão emergente de intervenção social. São Paulo: Cortez, 2002.

NOGUEIRA, Marco Aurélio. Um Estado para a Sociedade Civil: Temas Éticos e Políticos da Gestão Democrática. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2005. PORTO, Maria Célia da Silva. Cidaddania e "(des)proteção social: uma inversão do Estado Brasileiro? Revista Serviço Social e Sociedade, n 68. São Paulo: Cortez, 2001, p.17-33. SIMIONATTO, Ivete. Reforma do Estado e Políticas Públicas: Implicações para a Sociedade Civil e para a profissão. Disponível em <http://www.portalsocial.ufsc.br/crise_estado.pdf>. Acesso em: 09 de março de 2013. SOARES, Laura Tavares. Os custos sociais do ajuste neoliberal na América Latina. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2002.