O FEMINISMO NO COMBATE À VIOLÊNCIA DE GÊNERO: UM OLHAR SOBRE A CONTRIBUIÇÃO DO MOVIMENTO FEMINISTA NA IMPLANTAÇÃO DAS DELEGACIAS DA MULHER

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O FEMINISMO NO COMBATE À VIOLÊNCIA DE GÊNERO: UM OLHAR SOBRE A CONTRIBUIÇÃO DO MOVIMENTO FEMINISTA NA IMPLANTAÇÃO DAS DELEGACIAS DA MULHER INEZ SAMPAIO NERY /UFPI Email: ineznery.ufpi@gmail.com TATIANNE BANDEIRA DE VASCONCELOS /UFPI) Email: tatiannebv@bol.com.br RESUMO Desde que o Brasil iniciou um processo de abertura política, em 1985, ocasionada pelo enfraquecimento do regime militar, ressurgiram os movimentos de luta pela hegemonia nacional, buscando a igualdade de direitos entre os vários grupos sociais. Neste universo, o movimento feminista ocupou espaços mais efetivos de atuação, reivindicando direitos e proteção às mulheres, dentre eles, medidas de combate à violência de gênero. A violência de gênero consiste em qualquer ato que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher. Representa um grave problema social vivenciado por inúmeras mulheres. Assim, objetivou-se analisar a contribuição do movimento feminista no combate à violência de gênero, em especial, na criação das Delegacias da Mulher no Brasil. Desta forma, realizou-se um estudo de revisão bibliográfica. Os resultados desta pesquisa revelaram que ao longo das lutas das mulheres por uma sociedade menos injusta, foram suscitadas políticas públicas de combate à violência de gênero, entre elas, a implantação de Delegacias da Mulher. Concluiu-se que o movimento feminista, apesar de suas dificuldades, apresenta um papel importante no combate à violência de gênero, contribuindo na criação das Delegacias da Mulher e na consolidação da cidadania feminina. Palavras-chave: Feminismo. Violência de gênero. Delegacias da Mulher. 1 INTRODUÇÃO A violência é um grave problema social vivenciado por um grande número de mulheres no mundo inteiro, independentemente da classe social, etnia, cor, faixa etária, grau de instrução ou orientação sexual, que provoca sérias sequelas para as vítimas, como dano físico e/ou moral, insegurança, medo, perda da auto-estima e depressão. Diante desta situação, o movimento feminista, enquanto movimento social que defende a igualdade de gênero e de direitos, trouxe à tona a questão da violência contra a mulher, exigindo por parte do Estado políticas públicas de enfrentamento a esse tipo de

2 violência. Dentre as políticas públicas, encontram-se as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher, sendo consideradas como uma das principais portas de entrada das mulheres na rede de serviços de combate à violência, além de exercer a função de prevenção, orientação e esclarecimento dos direitos às mulheres. Devido à relevância das conquistas do movimento feminista, realizou-se uma pesquisa bibliográfica, objetivando analisar a contribuição do feminismo no combate à violência de gênero, em especial, na criação das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher no Brasil. Dessa forma, o presente estudo destina-se inicialmente a discorrer sobre a violência de gênero, destacando o entendimento de vários autores sobre o tema. Em seguida, trata do movimento feminista e suas contribuições diante desta problemática, dando ênfase as políticas públicas de enfrentamento à violência de gênero, principalmente a implantação das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher. Por fim, é ressaltada a importância dessas unidades policiais no combate e na prevenção à violência contra a mulher. 2 VIOLÊNCIA DE GÊNERO Na definição da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), a violência contra a mulher é tida como qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 1994). Assim, para analisar a violência contra mulheres, é necessário o entendimento do conceito de gênero. Este termo refere-se a um sistema de relações entre mulher e homem, determinado por contextos políticos, econômicos, culturais e sociais e não por uma determinação biológica ou natural. Relações de gênero são construídas através de um processo no qual os indivíduos nascem biologicamente fêmea ou macho e são transformados dentro da sociedade, passando a categorias sociais de mulher e homem. Segundo Chauí (1985, p. 35), a violência pode ser considerada não apenas como violação ou transgressão de normas, regras e leis, mas sob dois ângulos: Em primeiro lugar, como conversão de uma diferença e de uma assimetria numa relação hierárquica de desigualdade, com fins de dominação, de exploração e opressão. Em segundo lugar, como a ação que trata um ser humano não como sujeito, mas como coisa. Esta se

3 caracteriza pela inércia, pela passividade e pelo silêncio de modo que, quando a atividade e a falta de outrem são impedidas ou anuladas, há violência. É justamente essa relação hierárquica de desigualdade, de dominação e de opressão que está vinculada ao termo gênero, pois este é utilizado para: Demonstrar e sistematizar as desigualdades socioculturais existentes entre mulheres e homens, que repercutem na esfera da vida pública e privada de ambos os sexos, impondo a eles papéis sociais diferenciados que foram construídos historicamente, e criaram pólos de dominação e submissão. Impõe-se o poder masculino em detrimento dos direitos das mulheres, subordinando-as às necessidades pessoais e políticas dos homens, tornando-as dependentes (TELES; MELO, 2003, p. 16). Gênero não diz respeito às diferenças sexuais que atribui status diferente ao homem e mulher, mas representa um conceito cultural, referindo-se à forma social da sexualidade humana. Segundo Scott (1995, p. 86), gênero é entendido como elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e uma forma primária de dar significado as relações de poder. Para Bourdieu (1999), as diferenças de sexo e gênero são produto de um longo trabalho coletivo de socialização do biológico, o que vem confirmar com o pensamento de Saffioti (1987, p.10), ao dizer que a identidade social é, portanto, socialmente construída. Ao definir a submissão imposta às mulheres como uma violência, Chartier (1995, p. 42), comenta que a relação de dominação, que é uma relação histórica, cultural e lingüisticamente construída, é sempre afirmada como uma diferença de ordem natural, radical, irredutível, universal. Soihet (1989) também explicita a violência como uma questão de classe social e de gênero e ressalta a existência de uma situação de opressão das mulheres frente à dominação masculina. Neste sentido, Saffioti (1999) entende que as relações sociais são baseadas em relações hierárquicas relacionadas às formas de dominação e exploração das mulheres pelos homens. Essa autora destaca o patriarcado como um sistema masculino de opressão às mulheres que se expressa na forma de poder enraizado fundamentalmente nas relações sociais de gênero. Ao falar sobre esta temática, Butler (2003) destaca que a divisão sexo/gênero representa a base da política feminista, tendo o sexo como natural e o gênero como socialmente construído. Assim, o conceito de gênero como culturalmente construído e o de sexo como naturalmente adquirido, formam o par no qual as teorias feministas se fundamentam para tentar eliminar a associação do feminino com fragilidade ou submissão.

4 Portanto, a violência de gênero representa uma questão complexa, cujas origens encontram-se na organização social, nas estruturas econômicas e nas relações de poder, sendo necessárias políticas públicas voltadas para o respeito e a igualdade nas relações de gênero. 3 O MOVIMENTO FEMINISTA NO COMBATE À VIOLÊNCIA DE GÊNERO Após anos de marginalização, a mulher passa gradativamente a ocupar espaço numa sociedade machista e patriarcal, impulsionada pelo movimento feminista. O feminismo, enquanto movimento social, está vinculado às idéias iluministas das Revoluções Francesa e Americana (BASTOS, 2011). O feminismo parte do reconhecimento da hierarquia social entre homens e mulheres, que a considera historicamente determinada e injusta, e busca eliminá-la (LLANOS, 2000). Assim, passa a reivindicar a igualdade de gênero e buscar a consolidação da cidadania feminina. Desta forma, o movimento feminista está inserido no processo de construção da cidadania. A busca pela cidadania das mulheres e a igualdade de gênero é um processo complexo e árduo. Segundo Rodrigues (2003, p. 1), a noção de cidadania alude não apenas à conquista de direitos, mas, sobretudo, a manutenção e ao aprofundamento de direitos conquistados e acumulados historicamente. A luta pelo direito ao voto da mulher iniciou-se, no Brasil, em 1910, com a fundação do Partido Republicano Feminino, no Rio de Janeiro, por Deolinda Daltro, assim como, em 1919, com a criação da Liga pela Emancipação Intelectual da Mulher, por Bertha Lutz, a qual foi transformada, em 1922, na Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. O direito ao voto apenas foi contemplado pela Constituição Brasileira de 1934. Com o passar dos anos, o feminismo foi mudando suas características e deixou de ser um movimento meramente sufragista, passando a se preocupar com outras questões do universo feminino (BASTOS, 2011, p. 62). Essa nova posição intensificou-se a partir do final dos anos 1970 com a denúncia de casos sobre a violência doméstica e familiar contra mulheres. Essas denúncias estavam voltadas no sentido de retirar a discussão sobre violência do âmbito privado, colocando a problemática para a sociedade e exigindo do Estado ações capazes de combater a violência contra a mulher. Desta forma, o movimento

5 feminista ocupou espaços mais efetivos de atuação, reivindicando direitos e proteção às mulheres, dentre eles, medidas de combate à violência de gênero. Um dos casos de maior repercussão nacional foi o assassinato de Ângela Diniz em 30 de dezembro de 1976 por seu namorado Doca Street, após uma discussão motivada por ciúme. No seu julgamento no ano de 1979, ele foi absolvido pela tese de legítima defesa da honra, o que chocou toda a sociedade. Assim, o movimento feminista foi às ruas reivindicar o fim da violência contra a mulher, através de uma campanha com o slogan quem ama não mata, contrapondo-se a frase dita por Doca Street matei por amor. A acusação recorreu e em um segundo julgamento, no ano de 1981, Doca Street foi condenado a quinze anos de prisão. A discussão sobre a violência contra a mulher no Brasil pelo movimento feminista também foi intensificada com o processo de abertura política, em 1985, ocasionada pelo enfraquecimento do regime militar e a redemocratização do Estado brasileiro. Com isso, ocorreu a criação de novas instituições e leis que pudessem corresponder a um Estado de Direito democrático e ao reconhecimento dos direitos de cidadania plena para todo(s) os(as) brasileiros(as) (PASINATO; SANTOS, 2008, p. 9). O movimento feminista tem um importante papel em impulsionar uma agenda política favorável às mulheres. Neste aspecto, Godinho (2000, p. 35) destaca que: Foi uma conquista do movimento de mulheres, como parte do reconhecimento destas como sujeitos sociais, como sujeitos de reivindicação, colocar-se como uma questão legítima as instituições políticas, os governos, os Estados se obrigarem a reconhecê-las na construção de políticas. Isso foi construído nesses 25, 30 anos, em alguns países 40 anos de organização política e social de mulheres, de um crescimento nosso enquanto um sujeito social coletivo, que faz com que as instituições e a sociedade não possam nos ignorar nem deixar de falar em políticas de gênero, políticas dirigidas às mulheres. O movimento feminista diante da problemática da violência de gênero passa a exigir políticas públicas de enfrentamento a este tipo de violência. De acordo com Rodrigues (2003), o movimento de mulheres, comparativamente a outros movimentos sociais, tem sido um dos movimentos que alcançaram resultados mais frutíferos no campo das políticas públicas, em decorrência, principalmente da dimensão propositiva do movimento e da sua disposição para uma interlocução com o Estado. A criação de políticas públicas é essencial para a equidade nas relações de gênero e a consequente consolidação da cidadania. A Delegacia Especializada de Atendimento à

6 Mulher foi tido como a primeira experiência de implementação de uma política pública de combate à violência contra as mulheres no Brasil (BRASIL, 2010, p. 4). 4 A IMPLANTAÇÃO DAS DELEGACIAS ESPECIALIZADAS DE ATENDIMENTO À MULHER Segundo Bastos (2011, p. 178), dois fatores contribuíram para o surgimento das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher no Brasil: Primeiro, a expansão dos movimentos feministas e de mulheres, com o surgimento da chamada segunda onda desses movimentos no início dos anos 1970; segundo, o processo de transição política do governo militar para o civil, com a decorrente redemocratização do Estado, ocorrida na primeira metade dos anos 1980. Portanto, a criação das Delegacias da Mulher foi motivada pelos movimentos feministas que denunciavam o descaso do sistema judicial em relação os crimes contra as mulheres, principalmente em relação aos homicídios passionais e a violência doméstica. Assim, a implantação das Delegacias da Mulher é o reconhecimento, por parte do Estado, que a violência contra a mulher não é um problema a ser abordado na esfera privada ou nas relações interpessoais, mas trata-se de uma questão social que requer um enfrentamento com ações públicas na área da segurança. Para Pasinato e Santos (2008, p.34), as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher constituem a principal política pública de enfrentamento à violência doméstica contra mulheres. Essas Delegacias são tidas como equipamentos vinculados às Secretarias Estaduais de Segurança Pública, às quais integram a Política Nacional de Prevenção, Enfrentamento e Erradicação da Violência contra a Mulher e representam uma resposta do Estado brasileiro à violência contra as mulheres (BRASIL, 2010, p. 31). Segundo Massuno (2002), a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher representa um órgão eminentemente voltado para reprimir a violência contra a mulher. A criação da primeira Delegacia da Mulher no Brasil ocorreu na cidade de São Paulo, em 6 de agosto de 1985, sob o Decreto nº 23.769, com base na idéia de que policiais mulheres seriam mais preparadas do que os homens para lidarem com a violência contra a mulher e que o ambiente das Delegacias comuns, geralmente compostas por homens, não era apropriado para que as mulheres denunciassem a violência.

7 Vale ressaltar que no processo de delimitação das atribuições e do modo de funcionamento desta primeira Delegacia da Mulher no Brasil estavam presentes além dos representantes do governo e da polícia civil, os grupos feministas e as integrantes do Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo (PASINATO; SANTOS, 2008). As Delegacias da Mulher foram implantadas na expectativa de funcionar como um local para melhor atendimento às mulheres vítimas de violência, como também ter a função educativa em relação aos direitos femininos, além de instaurar os procedimentos policiais que proporcionam a base para os processos judiciais criminais. Entretanto, convém lembrar que as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher enfrentam problemas estruturais. Neste ponto, Pasinato e Santos (2008), ao comentar sobre as condições de funcionamento das Delegacias da Mulher, ressaltam a carência de recursos humanos, material e financeiro. Debert, Gregori e Piscitelli (2006) alertam para o despreparo dos agentes que trabalham nas Delegacias da Mulher. Na maior parte dos casos, não é oferecida a estes profissionais uma qualificação específica para desempenhar suas funções numa Delegacia que recebe mulheres violentadas. A visão dos policiais, embora policiais mulheres, sobre a violência contra a mulher é construída dentro do modelo patriarcal de família, que constitui um modelo de relações de poder entre homens e mulheres. Esse modelo patriarcal de família continua a dificultar a efetiva criminalização da violência contra a mulher, pois legitima a dominação masculina e o sentimento de posse sobre o corpo feminino. Então, é necessário, que todos os profissionais que trabalham nas Delegacias da Mulher, mulheres ou não, sejam capacitados no sentido de conscientização sobre a importância do papel da mulher na sociedade, ressaltando a necessidade da igualdade de gênero. Um marco importante no combate à violência contra a mulher foi a promulgação da Lei nº 11.340, em 7 de agosto de 2006. Essa lei ficou conhecida como Lei Maria da Penha, em homenagem a uma das vítimas de violência masculina contra a mulher no Brasil, a farmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes, que se encontra paraplégica devido à tentativa de homicídio por seu ex-marido. A Lei Maria da Penha criou mecanismos para coibir a violência no âmbito doméstico e familiar contra a mulher, estabelecendo uma série de dispositivos protetivos e de assistência à mulher, além de relacionar as medidas integradas de prevenção à violência doméstica e familiar e prevê a forma de prestação da assistência à mulher vítima.

8 Essa Lei direciona o trabalho das Delegacias da Mulher, em virtude do seu alto grau de especialização no combate da violência doméstica e familiar contra a mulher. Mas, o grande desafio da Lei Maria da Penha, além de discutir sobre a questão da violência de gênero, é fazer-se como mecanismo válido de repressão a esse tipo de violência. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A violência contra a mulher representa um grave problema social enraizado na tradição cultural, na organização social, nas estruturas econômicas e nas relações de poder. Assim, são necessárias políticas públicas no sentido de respeitar a igualdade nas relações de gênero e consolidar a cidadania feminina, com ações que assegurem um local de atendimento, denúncia e proteção à mulher vítima de violência. Ao analisar a trajetória do movimento feminista, pode-se verificar que as políticas públicas voltadas para a equidade de gênero são resultantes da luta incansável das próprias mulheres. Dentre essas políticas públicas, destaca-se a criação das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher, o que significa uma conquista do movimento feminista numa sociedade patriarcal e representa um importante papel no processo de fortalecimento e ampliação dos direitos da mulher. As Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher surgiram como uma resposta à questão da violência de gênero, oferecendo um espaço de apoio e proteção à mulher vítima de violência, de punição para homens agressores e de divulgação da violência contra a mulher como um problema social. Dessa forma, o reconhecimento, por parte do Estado, da especificidade da condição feminina e da necessidade de políticas públicas para a igualdade de gênero está diretamente ligado ao fortalecimento das organizações de mulheres. Portanto, pode-se afirmar que as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher foram implantadas em resposta às demandas feministas. Ressalta-se que as Delegacias da Mulher possuem problemas estruturais, como a falta de recursos financeiros, a insuficiência de recursos humanos devidamente treinados e a fragmentação dos serviços entre essas Delegacias e os demais órgãos públicos. Assim, é preciso maiores investimentos para a criação e manutenção dessas Delegacias, além de capacitação dos profissionais que trabalham nesta área e uma maior articulação entre os setores que promovem a assistência à mulher vítima de violência.

9 Embora com essas fragilidades, as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher representam um grande avanço na luta do movimento feminista, constituindo uma resposta eficaz à violência de gênero e contribuindo na consolidação da cidadania feminina. REFERÊNCIAS BASTOS, Tatiana Barreira. Violência doméstica e familiar contra a mulher: análise da Lei Maria da Penha. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2011 BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Brasília, 2006. BRASIL. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Norma técnica de padronização das delegacias especializadas de atendimento às mulheres. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2010. BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. CHAUÍ, Marilena. Participando do debate sobre a mulher e violência. In: FRANCHETTO, Bruna; CAVALCANTI, Maria Laura; HEILBORN, Maria Luiza (Orgs.). Perspectivas antropológicas da mulher. Rio Janeiro: Zahar, 1985, p. 23-62. CHARTIER, Roger. Diferenças entre os sexos e dominação simbólica. Cadernos Pagu. Campinas: Núcleo de Estudos de Gênero - Pagu/Unicamp, 1995. DEBERT, Guita Grin; GREGORI, Maria Filomena; PISCITELLI, Adriana Garcia. (Orgs.). Gênero e distribuição da justiça: as delegacias de defesa da mulher e a construção das diferenças. Campinas: Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2006. GODINHO, Tatau. A ação feminista diante do estado: as mulheres e a elaboração de políticas públicas. In: FARIA, Nalu; SILVEIRA, Maria Lúcia; NOBRE, Míriam. (Orgs.). Gênero nas Políticas Públicas: impasses e perspectivas para ação feminista. Cadernos Sempreviva. São Paulo: SOF, 2000, p. 26-37. LLANOS, Gabriela Castellanos. De la concientización al empoderamento: trayectoria del pensamiento feminista en los estudios de género en Colombia. Centro de Estudios de Género, Mujer y Sociedad. Santiago de Cali: Universidad del Valle, 2000. MASSUNO, Elizabeth. Delegacia de defesa da mulher: uma resposta a violência de gênero. In: BLAY, Eva Alterman (Org.). Igualdade de oportunidades para as mulheres. São Paulo: Humanitas, 2002, p. 25-55.

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