Apontamentos sobre a modernidade e seus reflexos para o Brasil do século XX *



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Transcrição:

Apontamentos sobre a modernidade e seus reflexos para o Brasil do século XX * Thiago Cavaliere Mourelle ** O advento da modernidade resultou em uma série de mudanças para o homem ocidental europeu. Teve início uma nova forma de se compreender o tempo. Concomitantemente, se pretendeu fundar um novo Estado de Direito, rompendo com a tradição política e jurídica existente até então. Max Weber traduziu o mundo moderno europeu ocidental como sendo, mais do que uma nova forma de acumulação de riquezas diante do advento do capitalismo industrial, um novo espírito (WEBER, 2004). Hannah Arendt (1988, p. 22) mostrou o surgimento da noção de mudança no rumo da história, como algo inteiramente novo que rompe com o passado. Isso pode ser percebido através da nova noção de revolução, que significa rompimento ao invés de retorno. Outro exemplo é a aplicação de calendários revolucionários para marcar um reinício do tempo, como ocorreu durante Revolução Francesa. Na modernidade, a chamada questão social se misturou com a política, dando a esta uma missão primordialmente ligada à manutenção e proteção da vida humana. Para Arendt (1988), a interferência do Estado moderno, por meio da política moderna, na vida individual de cada um dos seus membros, seria sinal da decadência da política isto é, uma mistura da bíos com a zoé, para utilizar os termos de Aristóteles (2000) 1. Já para Foucault (2005, p. 285-287), significou a opressão do homem pelo Estado. A América Latina, colonizada politicamente e com grande influência cultural da Europa ocidental, sofreu reflexos dos acontecimentos que ocorriam no velho continente. A revolução proclamada por Getúlio Vargas, em 1930, mesmo não tendo praticamente nada a ver com o * Artigo recebido em agosto de 2011 e aprovado para publicação em fevereiro de 2012. ** Doutorando em História Social pela Universidade Federal Fluminense/UFF e Historiador do Arquivo Nacional. 1 Brevemente, pela definição de Aristóteles, podemos diferenciar bíos e zoé da seguinte forma: zoé como mero fato de viver ou a vida biológica; e bíos compreendida no sentido de um modo de viver, ou seja, a vida política. 99

[APONTAMENTOS SOBRE A MODERNIDADE E SEUS REFLEXOS PARA O BRASIL DO SÉCULO XX ** THIAGO CAVALIERE MOURELLE] sentido de ruptura do significado moderno de revolução, foi assim considerada pelo interesse político de estabelecer um novo início, um recomeço na história do Brasil. Como diz Habermas (1990, p. 12), a modernidade quis se afastar do passado e fundar um novo futuro, a partir do nada, buscando uma autofundamentação. No Brasil, o mesmo ocorreu com a chegada de Vargas ao poder. Já nos primeiros meses de seu governo o período anterior passou a ser chamado de República Velha; mais tarde, a ditadura de 1937 foi fundada com o nome de Estado Novo. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), criada em 1943, foi divulgada como uma benesse do presidente aos trabalhadores, ignorando todo o passado de luta operária que pressionou o Estado para a conquista desse direito e que teve grande responsabilidade na obtenção dos mesmos. O passado foi posto de lado e o presente, representado na figura de Getúlio Vargas, foi exaltado. O governo varguista, alinhado com a tendência europeia de líderes nacionais autoritários Hitler, na Alemanha; Mussolini, na Itália; Franco, na Espanha; Salazar, em Portugal, entre outros, não fugiu à lógica moderna de mistura da bíos com a zoé que, por sua vez, levou à interferência do Estado sobre a vida humana. O presidente pôs em prática uma série de medidas disciplinares e reguladoras objetivando a normalização dos comportamentos (FOUCAULT, 2005, p. 285-287). A história moderna passou, então, a ser movida pela necessidade. Na perspectiva de Hegel, trata-se de algo inevitável, que caminha para frente de maneira retilínea e que transcende os homens quase eliminando a importância da ação individual. A revolução moderna, que marca uma ruptura e um recomeço, é irresistível, violenta e carrega consigo sempre a novidade como principal característica (ARENDT, 1988, p. 38-42). Koselleck (1999, p. 12) tem a opinião de que a política, a partir do Iluminismo, perdeu seu caráter pleno de realização humana na medida em que foi criticada pela moral. Ele lembrou que, para Hobbes, o homem seria livre no domínio moral, pessoal, privado; enquanto que no domínio público, como cidadão, estaria sujeito ao governante. Esta separação entre moral e política, estabelecida por Hobbes, teria acabado após o advento da modernidade (KOSELLECK, 1999, p. 39). Assim, a nova filosofia da história, nascida na modernidade, serviu para justificar não só a democracia, mas também os regimes autoritários. As mortes provocadas nos governos de 100

Stálin e Hitler, por exemplo, tiveram a justificativa de se darem em prol de um fim para a história, no sentido de processo. Da mesma forma, as milhares de prisões e torturas durante o Governo Vargas seriam justificadas pela necessidade mais uma vez, a necessidade nascida do conceito moderno de revolução, no caso, a Revolução de 1930 de defender o Brasil da ameaça socialista e dirigir o país rumo à modernização e ao chamado progresso outra concepção moderna, retilínea e processual. A modernidade criou um tipo de tribunal da história, irresistível e acima dos homens. Koselleck tornou publica sua obra Crítica e Crise em plena Guerra Fria, em 1959. Nesse contexto, havia duas grandes morais contrapostas, a socialista e a capitalista, cada uma baseada numa visão política distinta. O grande problema é o mascaramento do discurso político por meio de um discurso moral. É uma dissimulação, uma hipocrisia. A crítica feita ao sistema político do inimigo é colocada como uma crítica moral, quando, na verdade, cada moral tem sua razão e a disputa está verdadeiramente na esfera política e não na moral. Essa mistura ganhou força após a Revolução Francesa, com o direito natural se tornando direito político. Aquelas esferas separadas por Hobbes foram reunidas. Com isso, não apenas o Estado Absolutista ruiu, mas também o novo Estado de Direito criado teria o monarca, o parlamento ou o presidente cada vez mais interferindo nos direitos naturais dos indivíduos. Estes últimos se misturaram aos direitos políticos e entraram na esfera de ação do Estado, aplicador das políticas públicas. Berman (2008, p. 60 e 64) acrescentou que esse novo Estado de Direito moderno não se sentia inibido pelo freio da dúvida moral e que a visão moderna do progresso ininterrupto quase como uma lei natural foi fundamental também para o que chama de mitologias populistas do Terceiro Mundo. Para o autor, as pessoas que estão no caminho da história, do progresso, do desenvolvimento, (...) são descartadas, como obsoletas (BERMAN, 2008, p. 85). Ao analisar o mito de Fausto, Berman elogia os Estados Unidos como o país em que a missão fáustica do progresso à serviço do homem foi a mais corretamente seguida. Suas críticas recaem, principalmente, sobre o socialismo soviético no contexto da Guerra Fria, e também sobre os países ditos do Terceiro Mundo, onde podemos inserir o Brasil. Para 101

[APONTAMENTOS SOBRE A MODERNIDADE E SEUS REFLEXOS PARA O BRASIL DO SÉCULO XX ** THIAGO CAVALIERE MOURELLE] Berman, o desenvolvimento econômico desses países foi incapaz de gerar progresso real para compensar a devastação e a miséria reais que trouxeram (BERMAN, 2008, p. 96-97). A falha de Berman decorre do fato de que sua visão sugere uma análise em separado dos países do Terceiro Mundo em relação a países desenvolvidos, como os Estados Unidos. Ora, se o desenvolvimento econômico do Brasil gerou mais miséria do que progresso real é também pelo fato desse país ter se encontrado sempre na periferia do capitalismo mundial, permanecendo dependente de países como Estados Unidos e Inglaterra, por exemplo. Durante a chamada República Velha, o Brasil tinha suas exportações quase que reduzidas somente ao café, tendo sofrido de forma intensa durante a Crise de 1929, quando os americanos cortaram drasticamente a importação desse produto primário. O início do Governo Vargas, na autointitulada Revolução de 1930, significou a entrada do país em sua era fáustica, porém sob o jugo de uma ditadura que foi preparada por sete anos, até ter deflagrada, em 1937 que condicionou a urbanização e o crescimento industrial à obediência da população e à supressão da oposição democrática. As medidas governamentais eram sempre justificadas em prol do progresso. Baudelaire (2002, p. 12-23) trouxe uma crítica a esse olhar voltado somente para o material, ou seja, para o desenvolvimento industrial que passa por cima da sensibilidade dos homens, submetendo as pessoas que estão no caminho do irresistível progresso. Para ele, tal prática não permite a reflexão e a busca despreocupada pela felicidade. É um questionamento à modernidade como um todo. Em contraposição a essa pressa constante do progresso, Baudelaire caracterizou a figura do flanêur: homem profundo, observador e amante da vida e das pessoas, que olha o mundo com a alegria de uma criança, maravilhado, deixando a curiosidade guiá-lo por seus caminhos. O flanêur caminha pela cidade e observa os trabalhadores, os cenários citadinos, escuta os sons do dia-a-dia e os diálogos entre as pessoas. O autor escreveu também sobre o dândi, que julga estar em extinção na França de seu tempo (meados do século XIX). Dândi é o homem que busca o belo, a vida, sem se preocupar tanto com coisas materiais, mas sim em descobrir novidades, ver pessoas, vivendo de forma despreocupada e leve. Baudelaire criticou o fato de que a vida na França estava pautada em atender às necessidades básicas materiais e julgou que isso não era viver de forma plena. 102

O discurso de Baudelaire foi voltado principalmente aos burgueses. Buscou fazê-los atentar para os problemas do mundo moderno. Sua crítica à modernidade chegou ao auge quando escreveu o livro Spleen de Paris (2007), em que mostrou a situação da capital da França diante do progresso implacável, expondo conflitos sociais e as mazelas da sociedade. O Brasil também teve seu flâneur, porém mais tarde, somente no fim do século XIX e início do XX. Apelidado de João do Rio, João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto foi poeta e escritor urbano que frequentava as ruas do Rio de Janeiro, então capital brasileira, exercitando o olhar observador do qual Baudelaire tanto fez apologia. Também ele fez perceber as mudanças trazidas pela modernidade, mostrando como o ideal do progresso a qualquer custo passava literalmente por cima das pessoas, derrubando moradias e realizando obras quase intermináveis ao longo da cidade 2. O poeta viveu na época do chamado bota-abaixo, ocorrido na primeira década do século XX, período em que o prefeito Pereira Passos procurou reformar a cidade carioca copiando as reformas urbanas vividas pela Paris do Barão Haussman cerca de cinquenta anos antes época esta vivida por Baudelaire. As críticas de João do Rio à modernidade e sua atenção aos detalhes do dia-a-dia da vida urbana são comuns também à obra de Baudelaire, tornando possível fazermos essa comparação entre os dois. Na modernidade criticada por Baudelaire e João do Rio, a distância entre experiência e expectativa aumentou. A história se tornou contínua e, portanto, única em cada tempo e lugar. Não pôde mais servir de exemplo, pois se modificava constantemente. Também passou a ser vista como progressiva. A experiência passada não explicava mais o futuro. Na Antiguidade, o presente e o futuro se atrelavam ao passado. O camponês seguia a profissão de seu pai e as tradições de família. A religião lançava para o mundo espiritual do pós-morte as expectativas de mudança. Então, a secularização iluminista trouxe essas expectativas para o mundo terreno. Foi criado o conceito de progresso e o novo conceito de história se atrelou a isso (KOSELLECK, 2006, p. 313-319 & MARRAMAO, 1995, p. 108-111). 2 Entre as várias obras sobre João do Rio vale destacar RODRIGUES, Antônio Edmilson Martins. João do Rio: a cidade e o poeta olhar de flâneur na belle époque tropical. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2000. 103

[APONTAMENTOS SOBRE A MODERNIDADE E SEUS REFLEXOS PARA O BRASIL DO SÉCULO XX ** THIAGO CAVALIERE MOURELLE] A noção de desenvolvimento, baseado no princípio igualitário-progressivo da democracia, nasceu também nesse contexto. A história foi planificada, pois deveria correr para um fim, o que deu origem a várias leituras teleológicas sobre qual seria e quando se daria o fim da história da humanidade (MARRAMAO, 1995, p. 103). Kant (1986, p. 3) fortaleceu essa visão teleológica ao enumerar proposições definindo um sentido para a história dos homens. Ele afirmou que a finalidade última da espécie humana seria o desenvolvimento de suas capacidades racionais e a aplicação da razão para o fim último que seria a perfeita união política da humanidade. Ele não acreditava na história como eventos isolados e, sim, na possibilidade de se descobrir um curso regular e um desenvolvimento continuamente progressivo. Ao defender a ideia de um plano da natureza que vise à perfeita união civil da espécie humana como uma perspectiva consoladora para o futuro, Kant validou mais uma vez a leitura teleológica, processual e progressiva da história, pilar da modernidade (KANT, 1986, p. 21). Mas Kant esteve longe de ser o único. Hegel também teve uma visão teleológica da história. Ele acreditava que a razão faz o homem caminhar na direção da liberdade e que esta, por sua vez, se consagraria na criação do Estado de direito (HEGEL, 1999, p. 17, 25 e 40). Este Estado, ao estabelecer de forma artificial o que é bom e mau, frearia as paixões individuais. Coibir as intenções particulares seria a razão primordial do Estado de direito, que levaria à liberdade ao zelar pelos interesses coletivos contra as vontades de cada indivíduo (HEGEL, 1999, p. 32). Então, para Hegel, a história da humanidade tomaria forma e teria início de fato a partir da criação do Estado (HEGEL, 1999, p. 58). O perigo da visão hegeliana é mais uma vez a amplitude dada ao Estado, acima das pessoas, que pode servir de justificativa para o advento do totalitarismo. Porém, cabe aqui fazer uma defesa de Hegel, já que também em um Estado democrático o interesse coletivo está acima das vontades individuais. Ele falou em frear as paixões de cada homem em prol das leis gerais coletivas, mas em momento algum fez referência explícita a algum tipo de totalitarismo. No bojo dessas transformações da visão moderna de história surgiu a ideia do processo rumo à civilização, que seria alcançada com o desenrolar contínuo do progresso. Países que se 104

consideravam civilizados se julgaram no direito de dirigir povos que supostamente não tinham atingido o progresso. A oitava proposição de Kant previa uma constituição política de toda a humanidade, partindo da Europa e se expandindo para o resto do mundo, como sendo o plano oculto da Natureza para a história humana (KANT, 1986, p. 17). Embora não se possa afirmar que essa tenha sido a intenção kantiana, a proposição justifica o expansionismo europeu pelo mundo e as interferências dos ditos mais civilizados em outros continentes. Tal perspectiva se concretizou não só na política do Destino Manifesto dos Estados Unidos, como também no imperialismo europeu na Ásia e na África. O Brasil, nesse contexto, ao fundar sua República, também se preocupava em se tornar um país civilizado e no rumo do badalado progresso. Daí surgirem as reformas urbanas já citadas, que copiavam as capitais europeias, bem como as políticas de incentivo à imigração iniciadas já no Segundo Reinado que, mais do que assegurar maior quantidade de mão de obra para a economia nacional, queriam embranquecer a população, pois o país queria buscar identificação com os brancos europeus ditos civilizados e não com os negros da África, continente considerado bárbaro. Para Koselleck (2006), ao invés de conceitos serem criados a partir de experiências vividas, eles inauguram as novas experiências, às vezes as antecedendo na prática. Nesse sentido, surgiram teorias que deram origem ao socialismo, comunismo, fascismo, democratismo, republicanismo, entre outros, desenvolvidos com o objetivo de criar projetos para o futuro. Koselleck os chama de conceitos de movimento. Os Estados implementaram suas políticas públicas se preocupando mais com o futuro do que com o passado (KOSELLECK, 2006, p. 326). As políticas dos Estados deixaram de operar sobre os dados reais e passaram a agir tendo como princípio norteador um sentido específico que se realizaria a posteriori (democracia, liberdade, comunismo, entre outros) (MARRAMAO, 1995, p. 115). O Brasil projetou ser um país civilizado dessa forma, a partir da política do embranquecimento e do estabelecimento de relações econômicas e culturais com Estados Unidos, Inglaterra e França. Não foi à toa que a bandeira criada na Proclamação da República, em 1889, teve a palavra progresso escrita ao centro, indicando o objetivo a 105

[APONTAMENTOS SOBRE A MODERNIDADE E SEUS REFLEXOS PARA O BRASIL DO SÉCULO XX ** THIAGO CAVALIERE MOURELLE] ser alcançado influência do positivismo comteano, que também fez parte desse novo ideário moderno de progresso. Arendt apontou para o problema da criação de axiomas racionais que justifiquem toda e qualquer iniciativa, servindo de apoio para os governos totalitários: ação baseada em qualquer hipótese. Ela criticou essa visão progressiva e processual da história, que acabou por criar um sentido geral abstrato aos acontecimentos: ele [o historiador] é propenso a menosprezar o que efetivamente aconteceu em sua busca por discernir alguma tendência objetiva (ARENDT, 1997, p. 124). Dessa forma, os homens se distanciaram do contato sensorial com a natureza e também das ações que compõem a História da humanidade. Ficaram sem um mundo comum que a um só tempo os relacione ou separe; (...) vivem em uma separação desesperadamente solitária ou são comprimidos em uma massa (...); perderam o mundo de outrora comum a todos. É uma alienação do mundo: uma sucessão de processos criados, por visões utilitaristas que justificam toda e qualquer ação em prol do progresso retilíneo e constante. Isso leva à ruína da ação, do factual e do evento particular por meio da validade aparentemente maior de sentidos gerais (ARENDT, 1997, p. 126). A preocupação de Arendt tem fundamento, pois não faltam exemplos de mortes tidas como necessárias para um bem futuro: dessa forma os nazistas justificaram o extermínio dos judeus, assim como Stálin cometeu uma série de genocídios e Mao-Tse-Tung eliminou milhões de vidas humanas. Mais suave, mas na mesma linha de pensamento, ocorreu a ditadura de Getúlio Vargas entre 1937 e 1945. Não é porque se criou a Consolidação das Leis do Trabalho e se incrementou a industrialização do país, que é justificado o governo autoritário. É isso que Arendt denuncia: o progresso não deve servir de justificativa para a repressão, prisões e mortes arbitrárias. O historiador, por um bom tempo, ao negar a antiga história política linear e factual, acabou se perdendo em concepções históricas processuais que caíram no outro extremo: de excluir a ação e o factual da história. Atualmente um equilíbrio já começa a ser alcançado, embora ainda persistam problemas como a sacralização de alguns períodos históricos como a própria Era Vargas. 106

Para Marramao, a criação dessa série de axiomas citados socialismo, fascismo, entre outros, que lançaram para o futuro a realização da história, acabou mudando também o conceito de revolução. A história, na busca por estruturas e pela longa duração, criticou de forma exagerada a chamada história Évenementiele. A história serial, ao buscar as permanências ao invés das mudanças, tornou inútil o conceito moderno de revolução enquanto ruptura. Isso criou uma tensão e inaugurou a época do agora não mais e do agora não ainda (MARRAMAO, 1995, p. 120-123). Marramao vê a necessidade de inaugurar uma transformação que não mais se faça plena no futuro, mas no presente (MARRAMAO, 1995, p. 136-138). Marramao expressou esse desejo em seu Poder e Secularização, de 1983. Para Hartog, com a reunificação da Alemanha, em 1989, e o posterior fim da União Soviética e consequentemente da Guerra Fria, o regime de historicidade moderno, voltado para o futuro, deu lugar a outro regime de historicidade a que chama de presentismo. Porém, outro problema surgiu no horizonte: a perda de conexão com o passado e com o futuro. Para tentar impedir a perda de tal elo, o autor percebeu o surgimento de uma tendência em privilegiar a memória, as comemorações e as identidades coletivas e individuais (HARTOG, 1996, passim). O fato é que, a partir de 1989, houve certo enfraquecimento das utopias. A queda do socialismo soviético trouxe o capitalismo para o antigo mundo vermelho. O consumismo, o desenvolvimento e o progresso se fortaleceram ainda mais, aparecendo através de números que surgem todos os dias nos meios de comunicação realçando a necessidade de crescimento contínuo das relações econômicas mundiais. A preocupação volta-se para o agora, pois o passado é visto como antigo e ultrapassado e o futuro não acena mais com mudanças ou rupturas utópicas, sendo a simples continuação do desenvolvimento econômico do presente. Nesse contexto, o Brasil também foi dando adeus às utopias e se entregando ao presentismo de Hartog. O Partido Comunista Brasileiro/PCB, ícone da luta proletária por várias décadas, que deu origem a vários grupos que lutaram contra a ditadura civil-militar (1964-1985), foi se enfraquecendo cada vez mais. Primeiro foi o Partido dos Trabalhadores/PT que angariou grande parte de seu eleitorado já no início da década de 1980; depois o fim do chamado mundo socialista acabou por torná-lo quase insignificante, 107

[APONTAMENTOS SOBRE A MODERNIDADE E SEUS REFLEXOS PARA O BRASIL DO SÉCULO XX ** THIAGO CAVALIERE MOURELLE] inclusive com o surgimento de outros partidos de esquerda com os quais teve que repartir militantes. Por sua vez, o próprio PT, partido que sempre contou com grande apoio popular, ao chegar à presidência não fez mudanças drásticas na política econômica brasileira. Assim, também o Brasil está no presentismo : sem grandes mudanças previstas para o futuro. O tempo atual pode ser explicado da melhor forma como o momento da supremacia do homem executor de tarefas cotidianas. Benjamin, escrevendo ainda na época da Segunda Guerra Mundial, já percebia o presentismo. Ele via a necessidade de criar uma conexão entre passado, presente e futuro. Mas a grande novidade de Benjamin é a percepção de que esse foco dado ao presente tem caráter político: dizia o autor que somente a humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente de seu passado. Essa redenção, para ele, é a revolução operária. Pois o presente é vivido de forma a ignorar o que passou porque o passado é a história da espoliação da classe operária. Interesses burgueses quereriam deixar isso para trás (BENJAMIN, 1994, p. 222 e 223). A história sempre foi escrita pelos vencedores. O passado é construído pelo olhar de quem tem o poder político, de modo a definir a política educacional oficial, permitir a licença para o funcionamento de determinados órgãos de imprensa e estabelecer meios de influenciar a construção da memória da população. Benjamin acreditava que os bens culturais são os despojos da vitória de quem está no poder. Ele clama pela necessidade dos explorados de reconhecerem o passado (BENJAMIN, 1994, p. 224 e 225). Vê necessária a consciência dos trabalhadores em relação a essa opressão de uma classe social sobre a outra para poder modificar a realidade existente. Dessa forma, a visão da história como processo, teleológica e quase evolucionista, a qual Kant e Hegel fazem apologia, é criticada. Os dois pensadores veem de forma otimista o desenvolvimento da razão em prol de uma finalidade benéfica para o homem. Já Benjamin vê esse processo como uma dinâmica de fortalecimento da sociedade burguesa e de enfraquecimento do marxismo que, embora tenha sido criado também no âmbito da modernidade, tornou-se conformista e, consequentemente, colaborador do capitalismo burguês. 108

Portanto, a grande contribuição de Benjamin para os estudos históricos é a necessidade da atenção ao passado. Para ele, o passado deve inspirar o presente. Em sua perspectiva marxista bem peculiar por vezes quase religiosa, ao comparar a revolução operária à redenção humana, existe o sonho de que o materialismo histórico exerça uma missão quase messiânica para libertar os trabalhadores oprimidos e perdidos no status-quo reproduzido no presentismo. As palavras de Benjamin podem nos remeter mais uma vez para o Brasil da década de 1930: as práticas governamentais consolidadas no trabalhismo varguista da década de 1940, visavam claramente vincular a memória social do trabalhador às realizações do presidente da República à época. O passado anarquista de fins do século XIX e início do XX, as grandes greves de 1917 e 1918 e a fundação do Partido Comunista do Brasil (1922) não foram sequer mencionados pelas publicações do Departamento de Imprensa e Propaganda/DIP. Dessa forma, buscou-se enfraquecer a identidade operária e atrelar os trabalhadores única e exclusivamente à figura de Vargas, como a um pai que beneficia os filhos e, por isso, merece reconhecimento. Esta estratégia que cria um vínculo emocional da população com o seu governante é chamada por Angela de Castro Gomes (2002, p. 226) de lógica do darreceber-retribuir, em que a propaganda de exaltação às leis trabalhistas procura convencer o trabalhador que a Consolidação das Leis do Trabalho/CLT é uma dádiva e não o resultado de décadas de lutas operárias e que, por isso, o presidente merece retribuição em forma de apoio político. Ao mesmo tempo, o período Vargas também foi um momento de prevalência do discurso em prol do progresso e da industrialização do Brasil. Essa definição de progresso, que faz lançar o olhar dos homens para o futuro, seria uma tática das classes dominantes de atribuir à classe operária o papel de salvar gerações futuras, o que diminuiu tanto o ódio em relação ao passado de opressão vivido pelos seus antepassados como o espírito de sacrifício nos trabalhadores no presente, sentimentos essenciais para a realização da revolução operária (BENJAMIN, 1994, p. 228 e 229). Contudo, essa situação dos trabalhadores no século XX foi resultado da visão de história que diminuiu a importância dos eventos (uma possível revolução operária, por exemplo) em prol da inserção dentro do processo. Arendt insurge contra isso afirmando que (...) a história 109

[APONTAMENTOS SOBRE A MODERNIDADE E SEUS REFLEXOS PARA O BRASIL DO SÉCULO XX ** THIAGO CAVALIERE MOURELLE] é uma série de eventos, e não de forças ou ideias de curso previsível (ARENDT, 2004, p. 264). Diante da dificuldade de compreender o mundo através de seus sentidos, que podem lhe enganar como quando, por meio da visão, o homem pensava que o Sol girava em torno da Terra o homem voltou-se demais para o seu interior, buscando as respostas às suas dúvidas no desenvolvimento de sua razão, expressa principalmente por meio das abstrações matemáticas. A consequência é o que Arendt chama de alienação do mundo, que leva a algumas conclusões: o homem só pode compreender o que ele faz; logo, surge a ênfase no estudo da história (pois ela é feita pelo homem); a descrença em Deus, porque ele deu ao homem sentidos que não os deixam compreender objetivamente a obra divina; a criação de símbolos matemáticos para explicar o universo (ARENDT, 2004, p. 274). No século XX, o homem teria perdido a crença na salvação divina e até mesmo na realidade do mundo. O processo histórico se tornou mais importante que os fatos que ocorrem ao longo dele. Arendt (op cit) chamou o homem desse século de animal laborans: ele trabalha para sustentar sua família e assegurar a continuação de sua espécie. O metabolismo humano, a vida natural, é o que resta. O surgimento do animal laborans significa também a decadência da política. Embora não faça referência às consequências sociais dessa realidade, a conclusão de Arendt é bem parecida com a de Benjamin, pois ela percebe que, para o homem do século XX, a única coisa necessária passou a ser laborar, isto é, garantir a continuidade da vida de cada um e de sua família, o que gera um funcionamento puramente automático [da sociedade], como se a vida individual realmente tivesse sido afogada no processo vital da espécie e o indivíduo somente se deixasse levar (ARENDT, 2004, p. 335). Sua diferença em relação a Benjamin é que, para Arendt, isso prejudicou a humanidade em geral e não somente um grupo social específico. Ao se estudar o Brasil a partir de 1937, é possível perceber que, além da propaganda do DIP e do discurso do presidente Vargas, o advento do capitalismo industrial e o crescimento acelerado das grandes capitais principalmente, Rio de Janeiro e São Paulo fez o país entrar cada vez mais no processo de aceleração da economia, que levou exatamente às consequências explicitadas por Arendt e Benjamin: o homem cada vez mais passou a aceitar 110

sua condição de reprodutor da realidade vigente e se entregou ao labor do dia a dia de modo quase mecânico. Para Benjamin, isso é gerado pelas condições econômicas capitalistas e afeta primordialmente as classes operárias; para Arendt, é consequência do desenrolar da modernidade e atinge todos os homens (Idem). O historiador italiano Giorgio Agamben estudou a ascensão do biológico na política. Ele acreditou que o advento dos estados totalitários é resultante da biopolítica 3, própria da modernidade. Mais do que isso, Agamben (2004) viu muitas similitudes entre a democracia moderna e o totalitarismo. Ambos teriam em comum o fato de terem surgido da mesma origem moderna, dentro do contexto de criação do Estado nacional moderno contratual. O Estado moderno não é o rei, como no Absolutismo, mas as pessoas reunidas. Elas necessitam de certo cerceamento para que seja atingido o bem comum como afirmam Kant e Hegel (Idem). A partir dessa premissa, são perceptíveis similitudes entre a democracia liberal moderna e o Estado totalitário. Na história do Brasil não faltam teóricos que preguem uma maior intervenção estatal com o intuito de promover o progresso do país. Francisco Campos, Oliveira Viana, Azevedo Amaral, entre outros, defenderam um governo forte e criticaram o Poder Legislativo que estaria supostamente colocando os interesses particulares dos deputados e senadores acima das necessidades da nação. Esses autores são considerados na historiografia como a santíssima trindade, compondo os principais ideólogos do regime de Vargas, como afirma René Gertz (1991, p. 123). Alberto Torres, já no início do século XX, delineou princípios que deram ao autoritarismo brasileiro um viés singular em relação ao pensamento autoritário europeu. Ele era extremamente nacionalista e acreditava que somente um governo forte poderia resolver os problemas sociais e políticos que o Brasil trazia, segundo ele, desde o Império, em decorrência dos interesses das elites regionais e do parlamentarismo imperial que ele considerava uma aberração. Torres defendia, como pré-requisito à ordem, a soberania da União sobre todo o território e todo o povo brasileiro (TORRES, 1978, p. 74). 3 Agamben chama de biopolítica a implicação da vida natural do homem nos mecanismos e nos cálculos do poder. Ele atribuiu a Foucault o início desses estudos (AGAMBEN, 2004, p. 125). 111

[APONTAMENTOS SOBRE A MODERNIDADE E SEUS REFLEXOS PARA O BRASIL DO SÉCULO XX ** THIAGO CAVALIERE MOURELLE] É perceptível a grande influência de Alberto Torres nas atitudes tomadas por Vargas. As diversas críticas do presidente à Assembleia Nacional Constituinte de 1933-34 e, em seguida, ao Congresso Nacional de 1934, lembram as palavras de Torres de que é a politiquisse [sic] que nos corrói e dissolve a nação (TORRES, 1978, p. 245). Era exatamente o que Vargas pensava ao afirmar que a democracia havia restabelecido privilégios e vantagens (VARGAS, 1995, Vol.1, p. 421). Essa visão pessimista em relação à eficácia das instituições representativas democráticas é bem peculiar ao pensamento autoritário. Vargas seguiu ainda outras ideias de Torres: através de sua articulação política na Constituinte, obteve a eleição indireta para presidente em 1934 preceito defendido por Torres e assegurou seu mandato presidencial por mais quatro anos, totalizando oito entrou em 1930 e ficaria pelo menos até 1938, após ser eleito em 1934, período de tempo defendido por Torres para o exercício da Presidência da República. Caso exista alguma dúvida sobre a admiração que Vargas tinha pelas ideias de Alberto Torres, cabe lembrar que a representação classista existente na Constituinte de 1933 e no Congresso Nacional, a partir de 1934, foi idealizada por Torres em sua obra A Organização Nacional (1978). Pode ser dito o mesmo sobre o Conselho Supremo, idealizado por Vargas para substituir o Senado proposta vetada pela Constituinte de 1933, que tinha inspiração e muitas das características do Conselho Nacional pensado por Torres (TORRES, 1978, p. 250). Portanto, a normalidade democrática brasileira, entre 1933 e 1935, esteve sempre ameaçada pelo autoritarismo varguista que veio a se consolidar com a ditadura, em 1937. Como afirmou Agamben (2004), a diferença entre o totalitarismo e a democracia estaria somente na dose de intervenção sobre o corpo social da nação. Vargas também se beneficiou das consequências do advento da biopolítica na modernidade. Para Agamben, as origens desse advento foram as declarações de direitos do homem, seja na França de 1789, seja após a Segunda Guerra ou nas constituições específicas de vários países. Elas representam a inscrição da vida natural na ordem jurídico-política do Estadonação. O nascimento se tornou a inscrição do homem como ser político e cidadão. Diante disso, o governante pode assumir não só o poder político, mas o poder total sobre a vida da população, pois tanto a bíos quanto a zoé estão dentro de sua alçada de ação (AGAMBEN, 2004, p. 134 e 135). 112

O Estado passou a poder definir em que circunstâncias os homens podem viver e quando devem morrer. Tal discussão começou em torno da polêmica sobre a eutanásia, se expandiu para outras ocasiões até chegar à política de Hitler que visava a morte de doentes físicos e mentais. Logo, paulatinamente, passa a ser aceita a eliminação da vida indigna de ser vivida (AGAMBEN, 2004, p. 144-148). A eliminação dos judeus pelos nazistas pode ser vista nesse contexto: [...] somente um Estado fundado sobre a própria vida da nação podia identificar como sua vocação dominante a formação e tutela do corpo político. O Estado biopolítico interfere na decretação da morte e de quando esta pode acontecer. Isso ocorre não só nas ditaduras dos anos 1930, mas também nas democracias de hoje em dia (AGAMBEN, 2004, p. 167-172). A Crise de 1929 contribuiu decisivamente para a ascensão dos Estados fortes, o que reafirma a importância dos fatos históricos e demonstra como é importante estarmos atentos aos eventos e não apenas a um processo histórico frio e distante, como sugere o conceito de história surgido na modernidade. Países capitalistas, em crise, lançaram mão de governos fortes como alternativa para evitar revoluções populares e a ascensão de grupos socialistas. A entrada de Vargas no comando do Brasil aconteceu no mesmo contexto internacional em que Hitler, Mussolini e outros assumiram o poder e fortaleceram suas posições de líder. As décadas de 1930 e 1940 foram repletas de ditaduras, governos autoritários, conflitos mundiais e genocídios. O Estado de direito moderno levou os homens a experiências que marcaram a história da humanidade e fizeram os pensadores do nosso tempo buscarem a explicação desses eventos catastróficos na origem da modernidade e na formulação da moderna filosofia da história. Norbert Elias mostrou como não é possível encontrar uma explicação racional para o extermínio dos judeus. Esse é o grande paradoxo da modernidade: no século XX, enquanto o desenvolvimento industrial e tecnológico chegava a níveis nunca antes alcançados supostamente devido ao desenvolvimento da razão, o homem assistiu a genocídios como o feito por Hitler aos judeus, racionalmente inexplicáveis (ELIAS, 1997, p. 277). Elias mostrou a fragilidade das instituições democráticas alemães e as características históricas do povo alemão, acostumado a governos autoritários, o que é uma das explicações para a fracassada imposição da democracia artificialmente criada na República de Weimar. 113

[APONTAMENTOS SOBRE A MODERNIDADE E SEUS REFLEXOS PARA O BRASIL DO SÉCULO XX ** THIAGO CAVALIERE MOURELLE] Elias afirmou ainda que, em tempos de necessidade nacional, a liberdade individual é por toda a parte cerceada; a sobrevivência dos indivíduos passa para o fim da fila, atrás da sociedade (ELIAS, 1997, p. 297). Esta foi uma característica não só da Alemanha, mas também do Brasil da década de 1930. Afinal, a reforma da Lei de Segurança Nacional/LSN e a equiparação do Estado de Sítio ao Estado de Guerra, em dezembro de 1935, teve como justificativa a necessidade de impedir que no país se instalasse o socialismo soviético, bandeira de luta de Luís Carlos Prestes, líder da chamada Intentona Comunista que ocorrera em novembro do mesmo ano. Vargas utilizou o medo de ser contra, fundamento último de todas as disciplinas militantes ou militares (BOURDIEU, 1989, p. 201), para unir a nação em prol de seu governo e impedir que a oposição o questionasse, iniciando uma verdadeira guerra contra os comunistas, tidos como inimigos da pátria. Hitler utilizou estratégia parecida, estimulando o nacionalismo e escolhendo os judeus como principais inimigos da sociedade alemã. Com o fim da Segunda Grande Guerra intensificaram-se as críticas à modernidade de forma geral. A razão, levada às últimas consequências, não se mostrou capaz de impedir conflitos e mortes na primeira metade do século XX e, em alguns casos, chegou mesmo a justificar o extermínio de seres humanos. Passou-se a questionar a filosofia da história construída na modernidade e se chegou a um profundo pessimismo sobre o futuro, já que o homem perdeu a confiança em si mesmo e em sua razão. Teorias pós-modernas procuraram encerrar a modernidade e buscar análises plurais da realidade humana, implicando a discussão sobre o etnocentrismo europeu, a necessidade do direito das minorias e a redescoberta da importância da ação individual, vista como tão importante quanto o processo histórico, pois interfere neste. Os estudos históricos fizeram as pazes com a história política, que foi remodelada nos anos 1970 e 1980, e as pesquisas se interessaram pelo estudo da cultura e também pela memória social, resultando em trabalhos cada vez mais interdisciplinares. Marramao mostrou que as críticas ao progresso, acentuadas no pós-segunda Guerra, já existiam desde o século XIX. Ao mesmo tempo em que Nietzsche foi um dos primeiros a criticar a razão e buscar uma redefinição e transfiguração da ideia de progresso, o conceito do Kultur alemão se contrapôs à Zivilisation, valorizando a cultura alemã e seus aspectos 114

particulares em contraposição à ideia de progresso que ia nivelando a Europa do ocidente sob a insígnia do desenvolvimento e a necessidade de mudança constante, numa opressora patologia do viver (MARRAMAO, 1995, p. 311). O problema primordial do progresso, para Marramao, está em liberar e ao mesmo tempo controlar os instintos. Neste círculo vicioso de desencadeamento e contenção racionalrepressiva, a humanidade não se realiza (MARRAMAO, 1995, p. 315). É o mesmo problema que Sigmund Freud percebeu em seu livro, O mal-estar na civilização, publicado em 1929. A questão poderia, em linhas gerais, ser resumida da seguinte forma: a civilidade é uma contenção de paixões, com o indivíduo reprimindo alguns de seus desejos mais profundos supostamente em prol do bem-estar coletivo. Recentemente, Michel Foucault colaborou com tal perspectiva. Se Nietzsche observou o lado negativo e destruidor do progresso, e Freud percebeu a existência de uma auto-repressão individual, Foucault surgiu com a ideia de que as pessoas são o tempo todo moldadas, pressionadas, vigiadas e disciplinadas a assumir determinada maneira de proceder, por meio das várias instituições que existem na sociedade: colégios, polícias, sanatórios, igrejas, entre outras 4. O poder não está concentrado em um determinado lugar como no palácio presidencial, por exemplo. Ele está nas relações entre as pessoas e nos discursos, que entram em um combate no qual, quem vence, ganha posição de superioridade em relação ao derrotado. Adorno e Horkheimer compararam a situação do homem na modernidade com o mundo mitológico da antiguidade. A fé na abstração matemática teria a mesma função que a crença no mito que havia na Antiguidade. A repetição do mito trazia paz e a sensação da eternidade do mundo, da mesma forma que acreditar nas leis da ciência traz conforto ao homem moderno. Estabeleceu-se, assim, um ideal de que todos os problemas e dúvidas do homem em relação ao mundo se resolvem com a utilização da matemática. Os teoremas abarcam até as coisas ainda não descobertas, com esquemas matemáticos de probabilidade desde as condições da economia até a previsão do tempo (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 12 e 20). 4 Ver FOULCAUT, Michel. A Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. 115

[APONTAMENTOS SOBRE A MODERNIDADE E SEUS REFLEXOS PARA O BRASIL DO SÉCULO XX ** THIAGO CAVALIERE MOURELLE] A suposta objetividade matemática desumanizou o homem, que abandonou o sentimento, a intuição e a subjetividade no contato com a natureza e com o mundo onde vive. O progresso, a produção industrial em série e o desenvolvimento econômico são os mitos dos séculos XX e XXI, reproduzidos sem nenhum questionamento, em prol de ideais de desenvolvimento e civilização buscados incessantemente. O animismo havia dotado a coisa de uma alma, o industrialismo coisifica as almas (Idem, p. 21) Nesse sentido, Adorno e Horkheimer concluem que, na modernidade, o esclarecimento simpatiza com a coerção social, resultando no triunfo da igualdade repressiva. Ao identificar a verdade em geral com o pensamento ordenador, há na modernidade um mecanismo de controle muito grande do Estado sobre os cidadãos (Idem, p. 13 e 14). Foucault entra nesse ponto, sugerindo que o poder é algo bem amplo e que todos exercem. Ele criticou teorias que reduzem o poder à dominação econômica e procurou dar voz à pluralidade de discursos, contra a coerção de um discurso histórico unitário. Para tal, a análise do poder implica detalhar os mecanismos de repressão (FOUCAULT, 2005, p. 15, 19, 20 e 22). Ele sugeriu a existência de dois esquemas interpretativos para se definir a origem do Estado: o primeiro e mais conhecido é o jurídico, que enxerga um contrato no qual os homens abrem mão da liberdade em prol da criação do Estado que mantém a paz entre eles; o segundo é o defendido por Foucault, qual seja o Estado como consolidação do domínio dos homens uns sobre os outros ou como reflexo das relações de poder entre eles (FOUCAULT, 2005, p. 24). O Estado interfere diretamente na vida das pessoas implementando a disciplina no nível das políticas de massa por meio de leis que ordenam o trabalho e do uso de instituições estatais como a polícia, a escola e o hospício e regulamentando as políticas demográficas de natalidade, de estatística, entre outras. A vila operária nada mais é do que a normalização dos comportamentos, espécie de controle policial, que se completa com a criação de segurosaúde, seguro-velhice, poupança, vigilância da sexualidade, atenção à procriação e acompanhamento da escolaridade. O Estado interfere, assim, em todas as esferas da vida social (FOUCAULT, 1985, p. 288-300). 116

Diante dessas circunstâncias, Adorno e Horkheimer veem a dominação burguesa a partir do século XX em uma nova lógica, não tão perceptível quanto nos séculos anteriores. Mais do que economicamente, a dominação passou a se dar por meio da cultura, primeiro com a absorção de costumes populares pela cultura burguesa e depois com a possibilidade do acesso popular à cultura da burguesia. Assim, a relação entre burgueses e proletários transcende a esfera do trabalho, indo para fora dele, chegando ao campo do lazer. Hoje o futebol e o samba, dois ícones da cultura popular brasileira, se tornaram negócios extremamente rentáveis aos empresários. Da mesma forma, o cinema e o teatro, que durante um bom tempo da história do Brasil tiveram um público restrito, passaram a atingir cada vez mais pessoas, chegando às camadas populares da população. Vargas, novamente, foi um dos pioneiros a seguir essa lógica percebida por Adorno e Horkheimer. Junto com Pedro Ernesto Baptista 5, então prefeito do Rio de Janeiro Distrito Federal de 1931 a 1936, tornou o carnaval uma festa oficial do Estado, financiou desfiles e promoveu bailes 6. O compositor Wilson Batista, grande letrista conhecido por seus sambas de exaltação da malandragem carioca, mudou sua temática e cedeu às pressões do governo, terminando por fazer músicas elogiosas ao trabalhador, como a conhecida Bonde de São Januário, de 1941 momento de ápice do Estado Novo. Mas o controle cultural no período Vargas não se limitou a compositores populares, já que o famoso Heitor Villa-Lobos foi outro grande colaborador do regime, recebendo, em contrapartida, apoio estatal. É possível ainda citar outras inúmeras medidas que consagram o governo de Getúlio Vargas como um momento autoritário da história brasileira, de acordo com as características de controle e dominação citadas por Foucault, Adorno, Horkheimer e outros. Além da interferência nas festas populares e na música, da censura imposta pelo Departamento de Imprensa e Propaganda/DIP e da violenta polícia comandada por Filinto Müller, existe ainda a questão educacional e a fundação de partidos políticos. A criação do Partido Trabalhista Brasileiro/PTB, em 1945, passou por cima das formas usuais de construção de um partido popular. Foi articulado por Vargas e seu então Ministro do 5 Paulo da Portela, muitos anos depois, disse numa entrevista que o único político brasileiro que fizera algo que beneficiasse o samba e os pobres em geral foi Pedro Ernesto (apud Sarmento, 2001, p. 243). 6 Biblioteca Nacional, periódico Correio da Manhã, 02/03/1932. 117

[APONTAMENTOS SOBRE A MODERNIDADE E SEUS REFLEXOS PARA O BRASIL DO SÉCULO XX ** THIAGO CAVALIERE MOURELLE] Trabalho, Marcondes Filho. Um partido criado de cima pra baixo, ao contrário do que deveria acontecer em uma sociedade democrática, em que os trabalhadores deveriam se reunir e, através de suas mobilizações, criarem o partido político que os representasse. Já a educação, dada sua importância para o desenvolvimento da sociedade, mereceu especial destaque. No Ministério da Educação, Getúlio Vargas contou com homens que privilegiavam um ensino autoritário e vinculado ao nacionalismo e exaltação do presidente da República. Francisco Campos (1930-32) e Gustavo Capanema (1937-45), por exemplo, seguiram com destreza essa linha de ação. Campos, inclusive, foi o substituto de Anísio Teixeira na Secretaria da Educação do Distrito Federal, em 1935, o que representou uma clamorosa derrota do ensino defendido por Teixeira, que via a educação como a oportunidade não só de preparar o cidadão para o convívio social, mas também de dar a ele a formação profissional que possibilitasse sua inserção competitiva no crescente mercado de trabalho industrial. Sarmento comentou esse momento-símbolo, dizendo que permitiu consolidar a vitória, no Brasil, de uma educação que lidava com as massas atuando diretamente sobre seu inconsciente. Estudando a questão, o autor resumiu as diferenças entre os dois educadores como sendo uma disputa entre habilitar e controlar o cidadão, em que esta última saiu vencedora (SARMENTO, 2001, p. 145). No mundo moderno, a brutalidade com que se enquadra o indivíduo é tão pouco representativa da verdadeira qualidade dos homens quanto o valor o é dos objetos de uso. O Esclarecimento do século XVIII tomou conta da mente dos homens e chegou ao século XX transformando a razão na mola propulsora da atividade humana. Porém, o resultado não se revelou satisfatório, uma vez que a manifestação humana não se situou no quadro teleológico da auto-conservação [sic] : as guerras mundiais e os genocídios foram gerados pela razão levada às últimas consequências (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 20-21). Estabeleceu-se então um paradoxo da razão submetida ao capitalismo. O homem, que fugiu da vida puramente biológica ao longo da sua existência enquanto espécie ao criar sociedades complexas, hoje retorna a ela, somente para se autoconservar. É esta a realidade da vida cotidiana do trabalho, que se repete quase irracionalmente tornando o dia igual ao anterior e não apontando para possibilidades de mudança. 118