BIBLIOTECA DE FILOSOFIA E HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS VOL. 22. Coorde1zador Roberto Machado

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Transcrição:

BIBLIOTECA DE FILOSOFIA E HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS VOL. 22 Coorde1zador Roberto Machado

Roberto Machado Nietzsche e a verdade

Roberto Machado CIP-Brasil. Catalogação-Na-Fonte (Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ, Brasil) Machado, Roberto Cabral de Melo, 1942- Nietzsche e a verdade/ Roberto Machado. São Paulo: Paz e Terra, 1999. ISBN 85-7038-007-0 M133n 1. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900. 2. Arte de ciência. 3. Metafísica. 4. Verdade. 5. Ética. I. Título. 99-0152 CDD-193 CDU-1(43) EDIÇÓES GRAAL LTDA. R. Hermenegildo de Barros, 31-A- Glória 20241-040- Rio de Janeiro-RJ Te!.: (021) 252-8582 EDITORA PAZ E TERRA S.A. Rua do Triunfo, 177 01212-010- São Paulo-SP Tel.: (011) 223-6522 Fax: (011) 223-6290 1999 Impresso no Brasil I Printed in Brazil

Sumário INTRODUÇÃO.................................. 7 I ARTE E CIÊNCIA 1. A arte trágica e a apologia da aparência............ 17 2. Metafísica de artista e metafísica racional..... 29 3. Arte e "instinto de conhecimento"................. 35 li CIÊNCIA E MORAL 1. Conhecimento e tipos de vida.................. 51 2. Genealogia da moral e vontade de potência......... 59 3. A "vontade de verdade"....................... 75 III VERDADE E VALOR 1. A transvaloração de todos os valores............... 85 2. O conhecimento e a perspectiva da potência....... 91 3. As estratégias da crítica da verdade................ 99 5

INTRODUÇÃO A reflexão sobre a oencia. isto é, uma investigação sobre as questàes afins do conhecimento, do pensamento, do intelecto, da razão, da consciência, do conceito, da verdade, encontra-se no âmago da filosofia de Nietzsche. Tema constante de seus estudos, dos primeiros aos últimos textos, a presença desta problemática não indica porém a elaboração de um conceito de ciência. Situando-se em uma perspectiva tão global que, na maioria das vezes, não estabelece uma diferença essencial entre a racionalidade filosófica clássica e a racionalidade científica moderna, o que interessa a Nietzsche é realizar uma crítica radical do conhecimento racional tal como existe desde Sócrates e Platão. Se não existe em Nietzsche propriamente uma questão epistemológica, se ele formula uma recusa de uma teoria do conhecimento, é porque o problema da ciência não pode ser resolvido no âmbito da própria ciência. Em outras palavras, não tem sentido criticar a ciência em nome ou a partir da ciência visando a seu aperfeiçoamento, ao estabelecimento de uma verdade cada vez mais científica. A ciência. considerada pela primeira vez como problemática, suspeita, questionável, foi o problema novo, "terrível" e "apavorante" tematizado por Nietzsche. Fundamentalmente esta crítica da ciência é uma crítica da verdade. Não no sentido de procurar estabelecer um conceito rigoroso e sistemático de verdade, de denunciar as ilusàes, de superar os obstáculos à realização da racionalidade. Ponto central do ambicioso projeto de "transvaloração de todos os valores", a investigação sobre a verdade é uma crítica da própria idéia de verdade considerada como um "valor superior", como ideal; uma crítica, portanto, ao próprio projeto epistemológico. 7

Roberto Machado Negando à ciência a possibilidade de ela mesma elucidar sua questão, negando a uma crítica interna do conhecimento a possibilidade de se constituir como uma verdadeira crítica, o essencial da démarche consiste em articular a ciência com uma exterioridade capaz de revelar as reais dimensões e os objetivos do projeto científico; consiste em explicitar os fundamentos morais da ciência, apontando, ao mesmo tempo, a arte como um modelo alternativo para a racionalidade. Daí o privilégio da arte e da moral como instâncias que possibilitam o discurso nietzschiano sobre a ciência, indicando-lhe suas duas direções principais. A oposição entre arte e conhecimento racional percorre toda a obra de Nietzsche, que valoriza a arte trágica ao combater a pretensão, que caracteriza a ciência, de instituir uma dicotomia total de valores entre a verdade e o erro. Essa antinomia é fundamental: o "espírito científico" - que nasce na Grécia clássica com Sócrates e Platão e dá início a uma idade da razão que se estende até o mundo moderno, que Nietzsche chega a chamar de "civilização socrática" - tem como condição a repressão da arte trágica da Grécia arcaica. Aí se encontra o modelo que lhe permite pôr em questão, ao assinalar o seu nascimento, o valor da racionalidade, ressaltando a positividade da arte como experiência trágica da vida. Colocar-se na escola dos gregos é aprender a lição de uma civilização trágica para quem a experiência artística é superior ao conhecimento racional, para quem a arte tem mais valor do que a verdade. Se Sócrates e Platão significam o início de um grande processo de decadência que chega até nossos dias é porque os instintos estéticos foram desclassificados pela razão, a sabedoria instintiva reprimida pelo saber racional. Se a tese de um antagonismo entre arte e ciência é característica de toda a obra de Nietzsche, ela não mereceu, no entanto, a mesma atenção em termos de análise em todas as fases de sua reflexão. Cronologicamente a questão da ciência e da verdade, que se constitui como o ponto central de sua reflexão, aquilo para o qual tudo converge, é marcada por um deslocamento de uma análise da experiência artística - con- 8 J

Nietzsche e a verdade siderada como única antagonista da ciência - para uma análise da moral, considerada como aquilo que dá sentido, que dá valor ao conhecimento. Assim, enquanto a oposição entre arte e racionalidade é tematizada de modo mais explícito nos escritos que compõem o primeiro período de sua obra, de 1869 a 1876, a crítica da moral se impõe como a questão mais constante a partir de Humano, demasiado humano. Deslocamento que não é total na medida em que a preocupação com a moral já aparece nos primeiros escritos, embora seja mais assinalada do que desenvolvida, como se só progressivamente fosse sendo descoberta sua importância como fundamento da racionalidade; por outro lado, a reflexão sobre a arte também não desaparece dos últimos escritos, depois que foi descoberto o fi ão da moral Mesmo que importantes precisões sobre a noção de trágico sejam introduzidas, a questão da arte não merece mais a atenção dos primeiros textos. Isto porque a posição de Nietzsche já estava firmada desde o primeiro momento: a arte é mais importante do que a ciência. A segunda direção da reflexão nietzschiana é o projl!ndo parentesco entre a ciência e a moral Sua idéia é clara: se há Ôposição entre ciência e arte, há continuidade entre ciência e moral Nietzsche suspeita justamente da independência da ciência com relação à moral, assim como da pretensa oposição entre as duas. A ciência não está isenta de juízos de valor; mais ainda: é a moral que dá valor à ciência. Uma genealogia da verdade, tal como Nietzsche a elabora nesse momento, só pode ser feita no âmbito de uma genealogia da moral, posição que não implica uma teoria do conhecimento nem mesmo uma moral A perspectiva que estabelece uma relação intrínseca entre ciência e moral é propriamente uma genealogia da vontade de potência: uma análise histórico-filosófica dos valores em que a moral, em vez de ser ponto de vista crítico para avaliar o conhecimento, é ela mesma avaliada de um ponto de vista "extramoral", capaz de atingir as bases morais do projeto epistemológico. Pensando a ciência a partir de seu antagonismo com a arte e de sua continuidade com a moral, o que faz Nietzsche é avaliar o conhecimento racional e a pretensão de verdade por 9

Roberto Machado meio de dois fenômenos culturais profundamente heterogêneos - um considerado positivo e o outro negativo - que exprimem um aumento ou diminuição de força, de potência. A arte expressa uma superabundância de forças: remete aos instintos fundamentais, à vontade apreciativa de potência. A moral atesta uma deficiência de forças: remete a instintos secundários, mais fracos, à vontade depreciativa de potência. Malgrado as diferenças conceituais, as transformações metodológicas e as variações de perspectiva, a idéia de avaliar a verdade a partir da dimensão das forças é um importante invariante da filosofia de Nietzsche. Neste sentido, a crítica do niilismo e da decadência e a proposta de uma transvaloração de todos os valores implicam uma reflexão sobre a vida como criação de valor. Este livro se compõe de três partes. A primeira parte trata da relação entre arte e ciência. Pretendo, primeiramente, expor a noção nietzschiana de "metafísica de artista" estudando os dois "instintos estéticos da natureza" - o apolíneo e o dionisíaco - que estão na base da arte trágica. Trata-se sobretudo de mostrar em que sentido a filosofia da arte que Nietzsche realiza na primeira etapa de sua reflexão - como aspecto positivo e normativo de sua crítica à racionalidade - se estrutura através das categorias metafísicas de essência e aparência. Isto é, diferentemente de textos posteriores em que pensa a vida como aparência ou em que pretende eliminar a oposição essência-aparência, nesta época, sob a influência de Kant e Schopenhauer, sua filosofia parte das dicotomias entre aparência e essência, fenômeno e coisa em si, representação e vontade para tematizar a relação entre beleza e verdade e, por conseguinte, entre apolíneo e dionisíaco. Pretendo mostrar que, embora trabalhe com a oposição metafísica essência-aparência, a grande singularidade do pensamento filosófico de Nietzsche nesta época é fazer uma apologia da aparência como necessária à vida e a única via de acesso à essência: uma apologia, portanto. da arte. 10

Nietzsche e a verdade Estudarei, em segundo lugar, a antinomia entre metafísica racional e metafísica de artista, ou em que sentido o racionalismo estético socrático é o marco que assinala a morte da arte trágica. Análise do aparecimento das categorias de razão, consciência, crítica, clareza do saber como princípios que devem nortear e avaliar a criação artística; análise da oposição entre instinto estético e instinto racional, entre a força da arte e a força do conhecimento, considerados como matrizes de dois diferentes tipos de saber; análise da questão da verdade nas perspectivas da metafísica de artista e da metafísica socrática a partir da relação entre essência e aparência. Estudarei, finalmente, como a crítica à verdade científica já se faz nos textos imediatamente posteriores a O nascimento da tragédia sem referência ao projeto de metafísica de artista. Neste momento o fundamental da análise passa a ser a crítica ao instinto ilimitado de conhecimento pela explicação de sua gênese - que já detectará o seu solo moral - e pela afirmação da relatividade do conhecimento, de seu "antropomorfismo", de sua força dominante de ilusão. O que conduzirá à apologia da arte e da filosofia trágicas como forças capazes de controlar o instinto de conhecimento e instaurar um tipo de vida e de conhecimento determinado por valores artísticos. A segunda parte trata da relação entre ciência e moral tal como foi reformulada sobretudo a partir de Assim fa lou Zaratustra. Pretendo, em primeiro lugar, mostrar como a questão da ciência, que continua sendo fundamentalmente a questão da verdade, não pode ser elucidada através de uma análise interna da própria ciência, mas remete necessariamente a uma genealogia da moral: não uma teoria moral, mas uma teoria da vontade de potência em que a vida é considerada como princípio último de avaliação tanto do conhecimento quanto da moral. Em seguida, analisarei o projeto de constituição de uma genealogia da moral que investiga o nascimento e o valor da moral judaico-cristã, expondo as três figuras fundamentais que possibilitam inclusive definir o niilismo: o ressentimento, a máconsciência e o ideal ascético. A análise histórico-filosófica da 11

Roberto Machado moral também remete à concepção da vida como força, como potência ou como vontade de potência que lhe serve de fundamento. E o que se revela, então, é a grande antinomia entre a moral e a vida: a moral, como manifestação da fraqueza e insurreição contra a vontade afirmativa de potência, é uma negação da vida, um combate contra seus valores mais fundamentais. Será então possível compreender como a genealogia da moral é o fundamento de uma genealogia da verdade: o elemento-chave da argumentação é o conceito de vontade de verdade. A articulação entre ordem epistemológica e ordem moral ou o estabelecimento das condições de possibilidade morais da ciência se realiza pela relação entre vontade de verdade e vontade de potência. A vontade de verdade, que é a crença de que nada é mais necessário do que o verdadeiro, de que o verdadeiro é superior ao falso, de que a verdade é um valor superior - crença que funda a ciência e constitui a essência da moral e da metafísica - é a expressão de uma vontade negativa de potência. Se a ciência não se opõe ao niilismo moral e deve mesmo ser considerada sua forma mais recente e mais bem elaborada é porque a vontade de verdade que a caracteriza se encontra no âmago do ideal ascético. A terceira parte trata da relação entre verdade e valor situando a posição central que a questão da verdade ocupa no projeto de "transvaloração de todos os valores". Pretendo, em primeiro lugar, analisar como toda a filosofia de Nietzsche é uma filosofia do valor no sentido de uma crítica radical dos valores dominantes na sociedade moderna e uma proposta de transformação do próprio princípio de avaliação de onde derivam os valores. Se a criação de valores superiores - porque não existe valor em si, todo valor é criado - é expressão do tipo negativo de vontade de potência, a vontade afirmativa de potência é o princípio de uma nova instituição de valores. A questão do valor, e da verdade como valor, remete, portanto, à avaliação e esta à vontade de potência. Aprofundarei, em seguida, esta condição básica da transvaloração de todos os valores assinalando a importância que na filosofia de Nietzsche têm os instintos ou os impulsos con- 12 J

Nietzsche e a verdade siderados como um conjunto de forças, inconscientes e qualitativamente diferentes, em luta. A "fisiologia da potência" é uma concepção do corpo como sede de um conjunto de instintos em relação que funciona como uma crítica das definições do homem pela consciência ou pela razão - o niilismo é a subordinação dos instintos fundamentais à consciência, à razão - e explica como e por que uma teoria do conhecimento é substituída por uma teoria da perspectiva dos instintos que considera o conhecimento como a expressão dessa pluralidade de forças em luta. Voltarei, finalmente, à problemática da verdade para assinalar a.inflexão que sofre a trajetória histórica de sua reflexão de uma metafísica de artista para uma genealogia dos valores. Mas sobretudo para tematizar, na análise genealógica, a coexistência - pois não se trata de uma "evolução" - de perspectivas estratégicas diferentes sobre a verdade: denúncia da verdade como mentira e reivindicação da aparência como única realidade - sem dúvida, procedimento de inversão da metafísica; superação da oposição metafísica de valores, que é a última e mais radical palavra de Nietzsche. Criticando a oposição de valores que está na origem da metafísica, da moral, da ciência e propondo a arte trágica, dionisíaca, como única força capaz de se opor ao niilismo, à negação da vida, uma das grandes criações da filosofia de Nietzsche é a exigência de uma perspectiva para além de bem e mal e de verdade e erro. 13

I ARTE E CIÊNCIA

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1 A arte trágica e a apologia da aparência O que é a arte? Que importância tem ela para a vida? Que relação mantém com a força e a fraqueza? As respostas a essas questões fundamentais de sua filosofia, Nietzsche as sugere, desde o primeiro momento, a partir de uma reflexão sobre a Grécia arcaica que sempre lhe serviu de modelo privilegiado na crítica aos valores da decadência. Se é possível estabelecer um ponto de partida de sua reflexão sobre a arte na Grécia, este se encontra na correlação entre uma sensibilidade exacerbada para o sofrimento e uma extraordinária sensibilidade artística que caracteriza os gregos e que se explica pela força de seus instintos. "Por causa da força de todos os seus instintos a vida dos helenos era mais rica em sofrimentos. Qual era o antídoto?"1 Extremamente sensível, capaz de grande sofrimento, bastante vulnerável à dor, o grego tem nessa condição um perigo para a vida: a dolorosa violência da existência pode levá-lo ao pessimismo, à negação da própria existência. A materialidade desse pessimismo radical constitui o que Nietzsche denomina "sabedoria popular''/ "filosofia do povo"3 da Grécia e ilustra pela sabedoria de Sileno, personagem lendário, companheiro de Dioniso. Diz a lenda que Midas, rei da Prígia, encontrando nos bosques o sábio Sileno, que por lá vivia bebendo, rindo e cantando, pergunta-lhe o que existe de mais desejável para o homem, isto é, qual é o bem supremo. A princípio sem querer responder, pressionado, o sábio afmal responde: "Miserável raça de efêmeros, filhos do acaso e da pena, por que me obrigar a dizer o que não tens o menor interesse em escutar? O bem supremo te é absolutamente inacessível: é não ter nascido, não ser, nada ser. Em compensação, o segundo dos bens tu podes ter: é logo morrer". 4 17

Roberto Machado A arte grega tem origem nesta problemática. Arte e religião estão, para os gregos, intimamente ligadas, ou melhor, são idênticas: o mesmo instinto que produz a arte produz a religião. 5 Por que os gregos criaram os deuses olímpicos ou a arte apolínea1' Para tornar a vida possível ou desejável, dando ao mundo uma superabundância de vida. A criação da arte apolínea, que tem na epopéia homérica sua mais importante realização, é a expressão de uma necessidade. "A vida só é possível pelas miragens artísticas"/ esta idéia acompanha Nietzsche em toda sua reflexão. Mas neste momento ela possui um sentido preciso: para que o grego, povo mais do que qualquer outro exposto ao sofrimento, pudesse viver foi necessário mascarar os terrores e atrocidades da existência com os deuses olímpicos, deuses da alegria e da beleza, resplandecentes filhos do sonho. A epopéia, poesia da civilização apolínea, é um modo de reagir a um saber pessimista do aniquilamento da vida. A importância da arte apolínea, sua força maravilhosa como antídoto, é ser capaz de inverter a sabedoria de Sileno, o deus silvestre, criando a evidência que "o mal supremo é morrer logo, o segundo dos males é ter que morrer um dia".8 Os deuses olímpicos não foram criados como uma maneira de escapar do mundo em nome de um além-mundo, nem ditam um comportamento religioso baseado na ascese, na espiritualidade, no dever; são a expressão de uma religião da vida, inteiramente imanente, religião da beleza como floração - e não da falta -, que diviniza o que existey Divinizar, neste contexto, significa fundamentalmente tornar belo, embelezar. A arte apolínea é a arte da beleza: se os deuses olímpicos não são necessariamente bons ou verdadeiros - como o deus das religiões morais depois analisadas por Nietzsche -, eles são belos. Para o grego beleza é medida, harmonia, ordem, proporção, delimitação mas também significa calma e liberdade com relação às emoções, isto é, serenidade. Contra a dor, o sofrimento, a morte o grego diviniza o mundo criando a beleza. "Não existe belo natura1.''10 O mundo 18

Nietzsche e a verdade grego da beleza é o mundo da "bela aparência"; a beleza é uma aparência. A questão da aparência é central em toda a filosofia de Nietzsche. Em O nascimento da tragédia e nos escritos e fragmentos póstumos desta época seu pensamento se estrutura, inspirado em Kant e Schopenhauer, utilizando as dicotomias essência e aparência, coisa-em-si e fenômeno, vontade e representação. "O homem filósofo tem mesmo o pressentimento que sob a realidade em que vivemos e onde estamos se oculta uma segunda, totalmente diferente, de tal modo que a realidade também é uma aparência."11 Se a beleza é uma aparência é porque há u a verdade que é a essência. Mais ainda: a beleza é uma aparência, um fenômeno, uma representação que tem por objetivo mascarar, encobrir, velar a verdade essencial do mundo. Para escapar do saber popular pessimista, o grego cria um mundo de beleza que, ao invés de expressar a verdade do mundo, é uma estratégia para que ela não ecloda. Produzir a beleza significa se enganar na aparência e ocultar a verdadeira realidade. "O que é belr?. - uma sensação de prazer que nos oculta em seu fenômeno as verdadeiras intenções da vontade [... ] Objetivamente: o belo é um sorriso da natureza, uma superabundância de força e de sentimento de prazer da existência [...] Negativamente: a dissimulação do infortúnio, a supressão de todas as rugas e o olhar sereno da alma da coisa [...] O alvo da natureza neste belo sorriso de seus fenômenos é seduzir outras individualidades em favor da existência."12 Não é pelo Belo que as coisas belas são belas. Quando se diz que algo é belo apenas se diz que tem uma bela aparência, sem nada se enunciar sobre sua essência. Mascarando a essência, a vontade, a verdadeira realidade, a beleza é uma intensificação das forças da vida que aumenta o prazer de existir. Trata-se porém de uma aparência necessária. Uma das teses principais de O nascimento da tragédia, sua "hipótese metafísica", é que o ser verdadeiro, o "uno originário" tem necessidade da bela aparência para sua libertação; uma libertação da dor pela aparência.15 A "vontade", termo que é utilizado por Nietzsche no sentido que tem em Schopenhauer de 19

Roberto Machado núcleo do mundo, essência das coisas, mundo visto de dentro, ou "força que eternamente quer, deseja e aspira", 14 tem necessidade do apolíneo como consciência de si. "Conhece-te a ti mesmo" é o lema apolíneo. O mundo apolíneo da beleza é o mundo da individuação (do indivíduo, do Estado, do patriotismo), da consciência de si. A individualidade, a consciência, é uma aparência, uma representação do uno originário; através do principium individuationis se produz a transfiguração da realidade que caracteriza a arte: é isso que constitui o processo artístico originário. E a necessidade dessa transfiguração artística, esse "desejo originário de aparência" é o que possibilita a muralha capaz de resistir à sabedoria pessimista de Sileno. "Com os gregos a 'vontade' queria se contemplar nesta transfiguração que lhe ofereciam o gênio e o mundo da arte [...] Por um jogo de espelho da beleza, em que os gregos viam os deuses como seus belos reflexos, a 'vontade' helênica combatia a aptidão, correlata ao dom artístico, para o sofrimento e para a sabedoria do sofrimento. E o monumento dessa vitória é Homero, o artista ingênuo, que se eleva diante de nós."15 O mundo dos deuses olímpicos é um espelho que transfigura a "vontade" que desejava se contemplar nesta transfiguração. Assim, o primeiro importante resultado da análise nietzschiana, ao mostrar como os gregos ultrapassaram, encobriram ou afastaram um saber que ameaçava destruí-los, graças a uma concepção apolínea da vida, é o elogio da aparência. A apologia da arte já significa, como sempre significará para Nietzsche, uma apologia da aparência como necessária não apenas à manutenção, mas à intensificação da vida. Mas isso não é tudo nem mesmo o mais fundamental. Esse primeiro resultado é ainda preliminar inclusive para a concepção da aparência, que adquire toda sua importância quando é pensada além das fronteiras de uma arte apolínea. A razão é que a consciência apolínea é apenas um véu - o véu de Maia - que dissimula ao grego um mundo que, pelo que encerra de verdade, não pode ser ignorado. Pretendendo substituir o mundo da verdade, ou a verdade do mundo, pelas belas 20

Nietzsche e a verdade formas, a arte apolínea deixa de lado algo essencial; virando as costas para a realidade, dissimulando a verdade, ela desconsidera o outro. instinto estético da natureza que não pode ser esquecido - o dionisíaco. Para que se possa compreender a concepção nietzschiana do dionisíaco e inclusive avaliar as semelhanças e diferenças que ela encerra com relação ao que Nietzsche posteriormente afirmará, é preciso salientar que o dionisíaco, considerado como aniquilador da vida, a que a arte apolínea se contrapõe, não é propriamente grego. Para o grego apolíneo ele é pré-apolíneo, isto é, titânico, ou extra-apolíneo, isto é, bárbaro. Dioniso é o deus de uma religião que vem do estrangeiro. Mas o culto, vencendo a resistência apolínea, foi, pouco a pouco, penetrando na Grécia e se afirmando, como se pode ver em As bacantes de Eurípedes. Foi um momento de grande perigo e grande medo para o mundo grego. "As musas das artes da 'aparência' empalideciam diante de uma arte que, em sua embriaguez, proclamava a verdade e em que a sabedoria de Sileno gritava: 'Infelicidade! Infelicidade!' na cara da serenidade olímpica. O indivíduo - seus limites e sua medida - caía no esquecimento de si característico dos estados dionisíacos e perdia completamente a memória dos preceitos apolíneos. A desmesura se desvelava como a verdade; a contradição e a volúpia nascida da dor se expressavam do mais profundo da natureza."16 O novo culto da religião dionisíaca punha em questão os valores mais fundamentais da Grécia. A oposição entre os dois instintos, as duas pulsões, as duas potências, as duas forças artísticas da natureza_ - o apolíneo e o dionisíaco - era totalp A experiência dionisíaca, em vez de individuação, assinala justamente uma ruptura com o principium individuationis e uma total reconciliação do homem com a natureza e os outros homens, uma harmonia universal e um sentimento místico de unidade; em vez de autoconsciência significa uma desintegração do eu, que é superficial, e uma emoção que abole a subjetividade até o total esquecimento de si; em vez de medida é a eclosão da hybris, da desmesura da natureza considerada como verdade e 21

Roberto Machado "exultando na alegria, no sofrimento e no conhecimento";18 em vez de delimitação, calma, tranqüilidade, serenidade, é um comportamento marcado por um êxtase, por um enfeitiçamento, por uma extravagância de frenesi sexual que destrói a família, por uma bestialidade natural constituída de volúpia e crueldade, de força grotesca e brutal; em vez de sonho, visão onírica, é embriaguez, experiência orgiástica. Dessa forma, o êxtase dionisíaco produz, enquanto dura, um efeito letárgico que dissipa tudo o que foi vivido no passado: é uma negação do indivíduo, da consciência, do Estado, da civilização, da história. Metamorfoseados em sátiros e silenos, seres da natureza protótipos do homem verdadeiro, os "loucos de Dioniso" desintegram o eu, a consciência, a individualidade e se sentem na verdadeira natureza. Mas há ainda um segundo perigo decorrente do primeiro: o pesar, o desgosto pela existência, o sentimento de que tudo é absurdo, impossível, que aparece com a volta ao estado de consciência. O conhecimento, ou mais precisamente, porque não se trata rigorosamente de conhecimento, a emoção, a experiência dionisíaca tendo significado um acesso à verdade da natureza, uma verdade que mostra que a natureza é desmesurada ou que verdade é desmesura, faz o homem compreender a ilusão em que vivia ao criar um mundo de beleza justamente para, mascarar a verdade. A visão da essência eterna e imutável das coisas faz com que ele desista de agir e construir uma civilização. A civilização, que é um mundo aparente, fenomenal, é revelada como impostura pela natureza, pelo núcleo eterno das coisas, pela verdade dionisíaca. "Quando a consciência foi penetrada por essa verdade, o homem só vê em tudo o horror e o absurdo do ser [...] Reconhece então a sabedoria de Sileno, o deus silvestre. E é tomado pelo desgosto."19 Neste sentido, a experiência dionisíaca é uma "embriaguez do sofrimento" que destrói o "belo sonho". Não é esse porém o dionisíaco de que Nietzsche fará o elogio. Expondo suas características, ressaltando seus perigos, seu terrível instinto destruidor, o filósofo visa a realçar ainda 22

Nietzsche e a verdade mais a importância do novo antídoto que contra ele foi criado. Porque é novamente pela arte que o grego é salvo do perigo representado por essa religião dionisíaca bruta, selvagem, natural, destruidora. Ou melhor, pela segunda vez a própria vida salva o grego utilizando a arte como instrumento. "A arte o salva, mas pela arte é a vida que o salva em seu proveito", diz Nietzsche enunciando um pensamento que cada vez adquirirá mais importância em sua filosofia20. Novo tipo de arte, que representa o apogeu da civilização grega, que não pretende mais estabelecer uma trincheira, um anteparo, uma muralha que impossibilite a entrada e a expansão do dionisíaco, como procurou fazer a arte apolínea, a poesia épica. A característica da nova estratégia artística é integrar, e não mais reprimir, o elemento dionisíaco transformando o próprio sentimento de desgosto causado pelo horror e pelo absurdo da existência em representação capaz de tornar a vida possível. Mérito ainda de Apolo, mérito do deus do sonho e da beleza, porque mérito da arte. Se desta vez Apolo salva o mundo helênico atraindo a verdade dionisíaca para o mundo da bela aparência é porque transforma um fenômeno natural em fenômeno estético. E se essa transformação do dionisíaco puro, bárbaro, oriental em arte salva a civilização grega é porque integra a experiência dionisíaca ao mundo helênico aliviando-a de sua força destruidora, de seu "elemento irracional", espiritualizando-a.21 A ilusão apolínea, característica da arte, liberta da opressão e do peso excessivo do dionisíaco, 22 permitindo à emoção se descarregar em um domínio apolíneo.23 É esta arte apolíneo-dionisíaca, reconciliação entre Apolo e Dioniso,Z4 que constitui para Nietzsche o momento mais importante da arte grega.2s Importância que ele exprime em termos médicos afirmando que ela possui um verdadeiro efeito terapêutico, é um eficaz ato de cura: a arte dionisíaca transforma um veneno - a poção mágica, o filtro das feiticeiras - em remédio, retirando de Dioniso suas "armas destruidoras". 2 6 "O pavoroso filtro das feiticeiras feito de volúpia e crueldade perdia a força: apenas o lembravam - mas como os remédios lembram os venenos mortais - a surpreendente mistura nos 23

Roberto Machado afetos e a duplicidade dos loucos de Dioniso... "27 Se o puro dionisíaco é um veneno, é porque é impossível de ser vivido; é porque acarreta necessariamente o aniquilamento da vida. Se a arte é capaz de fazer participar da experiência dionisíaca sem que se seja destruído por ela, é porque possibilita como que uma experiência de embriaguez sem perda de lucidez.28 A arte dionisíaca, a arte trágica é um jogo com a embriaguez, uma representação da embriaguez que tem justamente por objetivo aliviar a embriaguez; ou, em outras palavras, não propriamente embriaguez ou orgia, mas idealização da embriaguez ou da orgia. "Mas se a embriaguez é o jogo da natureza com o homem, a criação do artista dionisíaco é o jogo com a embriaguez [...] O servidor de Dioniso deve estar em estado de embriaguez e ao mesmo tempo permanecer postado atrás de si como um observador. Não é na alternância entre lucidez e embriaguez, mas em sua simultaneidade, que se encontra o estado estético dionisíaco."29 Essa noção de jogo é fundamental para compreender a diferença entre o dionisíaco orgiástico e o dionisíaco artístico e como o grego, através da beleza, reprimiu no dionisíaco bárbaro seus elementos destruidores, ensinando-lhe a medida e transformando-o em arte. A arte trágica controla o que há de desmesurado no instinto dionisíaco como se Apolo ensinasse a medida a Dioniso, ou como se servisse a poção mágica, a bebida trágica, em sonho. "A tragédia é bela30 na medida em que o movimento instintivo que cria o horrível na vida nela se manifesta como instinto artístico, com seu sorriso, como criança que joga. O que há de emocionante e de impressionante na tragédia em si é que vemos o instinto terrível tornar-se, diante de nós, instinto de arte e de jogo."31 É evidente, portanto, a distinção assinalada por Nietzsche entre as duas manifestações dionisíacas. Está claro também que o dionisíaco artístico não se opõe ao apolíneo, mas supera esta oposição justamente por ser artístico e implicar necessariamente aparência. E, finalmente,. também o dionisíaco celebrado por ele não é o do culto orgiástico mas o do artista trágico. A arte trágica possibilita, portanto, a união entre a aparência e a essência. Sendo capaz de articular os dois instintos, as 24

Nietzsche e a verdade duas pulsões artísticas da natureza, na medida em que transpõe em imagens os estados dionisíacos, a tragédia não se limita, como a poesia épica, ao nível da aparência, mas possibilita uma experiência trágica da essência do mundo. Só que essa união, ela a estabelece através de um conflito. A tragédia representa o conflito entre o apolíneo e o dionisíaco, entre o principium individuationis e o uno originário; ou, mais precisamente, ela 'epresenta a derrota do saber apolíneo e a vitória do saber dionisíaco na medida em que faz da individuação um mal e a causa de todo sofrimento. "A forma mais universal do destino trágico é a derrota vitoriosa ou a vitória alcançada na derrota. A cada vez a individualidade é vencida: e entretanto sentimos seu aniquilamento como uma vitória. Para o herói trágico é necessário perecer, por onde ele deve vencer. Nessa antítese, que faz pensar, nós pressentimos a suprema avaliação da individuação, como já evocamos uma vez: o Uno originário tem necessidade dela para atingir o fim último de seu prazer, de modo que o desaparecimento se torna tão digno e venerável quanto o nascimento e que aquilo que nasceu deve cumprir, com o desaparecimento, a tarefa que lhe incumbe como individualidade."32 Na tragédia o destino do herói é sofrer - como sofreu Dioniso quando foi despedaçado - para fazer o espectador aceitar o sofrimento como integrante -da vida. Segundo Nietzsche a finalidade da tragédia é produzir alegria. A tragédia, mostrando o destino do herói trágico como sendo sofrer, não produz sofrimento mas alegria: uma alegria que não é mascaramento da dor, nem resignação,33 mas a expressão de uma resistência ao próprio sofrimento. Idéia esboçada nesta época nos termos de uma "metafísica de artista" que pretende conjugar na arte trágica aparência e essência: "A alegria metafísica que nasce do trágico é a tradução, na linguagem da imagem, da instintiva e inconsciente sabedoria dionisíaca: o herói, manifestação suprema da vontade, é negado para nosso prazer porque é apenas manifestação e porque o seu aniquilamento em nada afeta a vida eterna da vontade."34 25

Roberto Machado Representando a luta e a vitória de Dioniso, a tal ponto que todo herói deve ser compreendido como seu substituto ou sua máscara, a alegria que proporciona a tragédia é o sentimento de que o limite da individualidade será abolido e a unidade originária restaurada. Situando os valores a políneos como causa do sofrimento humano, a tragédia nega os valores da aparência em nome da unidade de tudo que existe, o que é a condição de um prazer mais fundamental. A arte dionisíaca nos quer persuadir do prazer eterno da existência, coisa em que Nietzsche sempre acreditou. A diferença é que nesta época, pensando a partir das categorias de essência e aparência, ele afirma que este prazer só é possível à condição de o procurarmos não nos fenômenos, mas atrás deles. Na experiência trágica, que a arte proporciona, o homem se torna o próprio ser originário, sentindo o seu desejo e o seu prazer de existir: "não obstante terror e piedade, conhecemos a felicidade de viver não como indivíduos, mas como este vivente único que engendra e procria e no orgasmo de quem nos confundimos."y; Enquanto a arte apolínea nega - pela aparência, pela mentira, pela ilusão - o sofrimento da vida e afirma a eternidade do fenômeno, a tragédia nega o indivíduo justamente por ser fenômeno, manifestação, representação, afirmando a eternidade da vontade.36 Eis a estranha "consolação" que proporciona a tragédia: a certeza ele que existe um prazer superior a que se acede pela ruína e pelo aniquilamento do herói, da individualidade, da consciência: pela destruição dos valores apolíneos. O que poderia dar a impressão de uma negação da aparência em nome ela essência. Isso porém seria um equívoco, na medida em que 3 negação elos valores apolíneos só pode ser realizada em forma ele representação. ele imagem, de ilusão, isto é, apolineamente. Se o dionisíaco puro é aniquilador da viela, se só a arte torna possí, el uma experiência dionisíaca, não pode haver dionisíaco sem apolíneo. A visão trágica do mundo, tal como Nietzsche a interpreta nesse momento, é um equilíbrio entre a ilusão e a verdade, entre a aparência e a essência : o único modo de superar a radical oposição metafísica de valores. 26

Nietzsche e a verdade Notas 1. Nietzsche, Fragmentos póstumos (Frag. Post.), final de 1870 - abril de 1871, 7 [531. Citarei (salvo aviso em contrário) pela edição Colli e Montinari das obras completas de Nietzsche indicando o número do aforismo ou do fragmento póstumo. Quando for necessário indicarei as páginas da edição alemã da Deutscher Taschenbuch Verlag de Gruyter e da tradução francesa da Gallimard. 2. O nascimento da tragédia (N.T.l, 3. 3. '"A visão dionisíaca do mundo" (V. D.), 2, in f.scrituspôstumos. 4..V T, 3. 5. Cf. Frag. Post., 1871, 9 [102]; NT, 3. 6. Nietzsche chama esse tipo de arte de apolínea porque considera Apolo o deus mais importante do Olimpo. 7. Frag. Post., final de 1870- abril de 1871, 7 [1S2l. 8. N. T, 3. 9. Cf. Frag. Post., inverno de 1869- primavera de 1870, 3 [42]. 10. Frag. Post., final de 1870- abril de 1871, 7 [116]. 11. N.T, 1. 12. Frag. Post., final de 1870- abril de 1871, 7 [27]. 13. Cf. NT, 4. 14. NT, 6. 15 N.T, 3. 16.. VT, 4. 17. Sobre essas denominaçóes, cf N. T, 1 e 2. 18. :V.T, 4. 19.,VT. 7. 20.,VT, 7. 21. l'd. 1. "Foi o po\'o apolíneo que impôs os liames da beleza ao instinto todo-poderoso: subjugou os elementos mais perigosos ela natureza. suas bestas mais selvagens... Ibid. 22. Cf. N. T, 21. 23. Cf. N. T, 24. 24. Cf. Fra ff. Post, im erno de 1869-70, primavera de 1870, 3 [25]. 2S. "Na realidade a tragédia helênica é apenas o signo anunciador de uma civilização mais elez'ada: ela foi o ponto extremo que pôde atingir a heleni- 27

Roberto Machado dade e também o mais alto. Esta etapa era a mais difícil de atingir. Nós somos seus herdeiros." Frag. Post, setembro de 1870 - janeiro de 1871, 5 [94). 26. N.T, 2. 27. N.T, 2. 28. Crepúsculo dos ídolos, depois de afirmar que "o essencial da embriaguez é o sentimento de plenitude e de intensificação das forças" ("incursões de um intempestivo", 8), caracteriza tanto o apolíneo quanto o dionisíaco como estados de embriaguez e distingue-os pelo fato de que enquanto um intensifica o olhar, o outro intensifica o sistema inteiro dos afetos. (Ibíd., 10.) 29. V.D., 1; cf. íbíd., 3. 30. Às vezes Nietzsche distingue o belo do sublime. Um fragmento desta época diz, por exemplo: "Se o belo tem como base um sonho do ser, o sublime tem por base uma embriaguez do ser." Frag. Post., final de 1870 - abril de 187.1, 7 [46). 31. Frag. Post., final de 1870 - abril de 1871, 7 [29). 32. Frag. Post., final de 1870 - abril de 1871, 7 [128). 33. Cf. Frag. Post., primavera de 1884, 25 [951. 34. N.T, 16. 35. N.T, 17. 36. Cf. N. T, 16. 28

2 Metafísica de artista e metafísica racional (M etafísica de artista" é a concepção de que a arte é a atividade propriamente metafísica do homem, a concepção de que apenas a arte possibilita uma experiência da vida como sendo no fundo das coisas indestrutivelmente poderosa e alegre, malgrado a mudança dos fenômenos. 1 Mas que significado tem a apologia dessa experiência estética da verdade dionísíaca do mundo - experiência metafísica possibilitada pela arte trágica grega - na estrutura mais geral da reflexão filosófica de Nietzsche nessa época? Significa a criação de uma "contra-doutrina'} de uma contra-noção, na luta contra a metafísica e a ciência. Por um lado, é a formulação de uma denúncia: depois de uma vida breve, a arte trágica desapareceu um dia bruscamente, tragicamente, do campo do saber grego através de uma morte violenta e rápida cujos marcos são Eurípedes e Sócrates. Eurípedes e Sócrates contra a tragédià dionisíaca: eis o antagonismo fundamental que assinala Nietzsche quando analisa pela primeira vez as relações entre arte e ciência. O que em termos conceituais quer dizer a oposição entre razão científica e instinto estético ou entre duas formas de saber: o saber racional e o saber artístico. Por outro lado, a valorização da arte - e não do conhecimento - como a atividade que dá acesso às questões fundamentais da existência é a busca de uma alternativa contra a metafísica clássica criadora da racionalidade. Idéia que sempre permaneceu fundamental no pensamento de Nietzsche: a arte tem mais valor do que a ciência por ser a força capaz de proporcionar uma experiência dionisíaca. O ponto de partida da análise é a crítica do "socratismo estético". Se Eurípedes é o marco que assinala a morte da arte trágica é porque com ele, pela primeira vez, o poeta se subor- 29

j Roberto Machado dina ao pensador racional, ao pensador consciente. O que caracteriza a ''estética racionalista", a "estética consciente", é introduzir na arte o pensamento e o conceito3 a tal ponto que a produção artística deriva da capacidade crítica. Momento em que a consciência, a razão, a lógica despontam como novos critérios de produção e avaliação da obra de arte. Quando a racionalidade faz uma crítica explícita à produção artística na perspectiva da consciência, quando toma como critério o grau de clareza do saber, a tragédia será desclassificada como irracional ou como desproporcional: "um compromisso de causas parecendo sem efeitos e de efeitos parecendo sem causas", ou uma profundidade enigmática e infinita, incerta, indiscernível, sombria, em suma, obscura. Por não ter consciência do que faz e não apresentar claramente o seu saber, o poeta trágico será desvalorizado, desclassificado pelo saber racional. A perspectiva socrática de Eurípedes, o poeta sóbrio que condenou os poetas embriagados, assinala uma ruptura na maneira de considerar a arte. Assim, enquanto Eurípedes critica Ésquilo por considerar que ele fazia mal o que fazia por não saber o que fazia, Sófocles, por exemplo, ainda considerava correto o que Ésquilo fazia, mesmo que ele o fizesse inconscientemente. "Se Sófocles disse de Ésquilo que ele fazia bem, mas sem sabê-lo, Eurípedes sem dúvida pensou que ele fazia mal por não saber." E Nietzsche enuncia o que constitui o fundamental da distinção entre esses dois momentos: "Nenhum poeta antigo anterior a Eurípedes estava em condições de defender, por motivos estéticos, o que ele tinha de melhor. Pois a particularidade maravilhosa de toda essa evolução da arte grega é que o conceito, a consciência ainda não estavam expressos e tudo o que o discípulo podia aprender com o mestre tinha relação com a técnica".6 O que faz a diferença é a subordinação da beleza à razão, é o estabelecimento do postulado socrático segundo o qual só pode ser belo aquilo que é consciente, racional. Erigindo como fundamento de sua estética o princípio "para poder ser entendido tudo eleve ser da ordem do entendi- 30

Nietzsche e a verdade ' mento",7 Eurípedes se torna o poeta do racionalismo socrático: sua crítica da arte é o prolongamento da crítica socrática aos homens de sua época que por não terem consciência de seu ofício o exercem apenas por instinto. É neste "apenas por instinto" que se encontra, segundo Nietzsche, a essência do socratismo. "O socratismo despreza o instinto e portanto a arte. Nega a sabedoria justamente onde se encontra seu verdadeiro reino."8 Desprezando o instinto em nome da criação artística consciente que tem como critério a razão, o discernimento, a clareza do saber, o socratismo condena a arte e o saber trágicos9. Se algo só é bom se for consciente, se há relação necessária entre saber-virtude-felicidade, o saber trágico, que é um saber inconsciente, se encontra necessariamente desclassificado. Em suma, pelo Jato de ser impossível expressar conceitualmente- expor e comprovar racionalmente, logicamente - o trágico, Sócrates e Eurípedes negaram um saber como o de Ésquilo, que deve o que tem de melhor a uma "criação inconsciente". Assim, o estudo da relação entre metafísica de artista e metafísica conceitual, que tem como ponto de partida a crítica do socratismo estético, vai muito mais longe do que uma simples questão de estética, remetendo em última instância, como sempre em Nietzsche, ao problema da verdade. É, fundamentalmente, um modo de pôr em questão o "espírito científico", caracterizado na época por Nietzsche como a crença, que nasceu com Sócrates, na penetrabilidade da natureza. 10 O que é a metafísica racional criadora do espírito científico? É justamente ''a crença inabalável de que o pensamento, seguindo o fio da causalidade, pode atingir os abismos mais longínquos do ser e que ele não apenas é capaz de conhecer o ser, mas ainda de corrigi-lo" _11 Para Nietzsche, em toda sua investigação e mesmo nesse momento em que defende uma "metafísica" de artista, o saber trágico não foi vencido propriamente pela verdade, mas por uma crença na verdade, por uma "ilusão metafísica" que está intimamente ligada à ciência. Afirmar que o problema 31

Roberto Machado da ciência não pode ser elucidado no nível da própria ciência, ' a partir dos critérios postulados pela ciência, significa trazer a questão, ou melhor, para considerar Nietzsche como um estrategista, situar o combate no terreno da ilusão. A luta contra a ilusão é uma forma de ilusão. Essa idéia é o ponto central da argumentação de Nietzsche mesmo quando considerou a estrutura conceitual, racional, da metafísica como imprópria ou como a mais imprópria para exprimir a essência do mundo; mesmo quando pensou em termos de essência do mundo. Foi a "ilusão metafísica" - a crença de que o conhecimento é capaz de penetrar conscientemente na essência, na natureza, no fundo das coisas separando a verdade da aparência e considerando o erro como um mal - que destruiu a arte trágica. O poder criador do artista trágico foi negado pela metafísica por não ser uma penetração consciente na essência das coisas. O antagonismo entre o espírito científico e a experiência trágica é em Nietzsche uma crítica da prevalência da verdade ou da verdade como valor superior pela afirmação tanto do caráter fundamental da aparência quanto da exigência de superação da oposição essência-aparência, verdade-ilusão. Separar o dionisíaco e o apolíneo é matar os dois. O herói foi morto não pelo trágico, mas pelo lógico.12 A "metafísica de artista" que Nietzsche defende no primeiro momento de sua reflexão filosófica é a denúncia da verdade como única deusa da ciência - sua ilusão constitutiva - em nome da afirmação de que o ser verdadeiro tem necessidade da bela aparência, de que a arte é uma unificação desses dois elementos: "se o artista, cada vez que a verdade se desvela, permanece em suspense, extasiado com o véu que permanece depois do desvelamento, o homem teórico é aquele que tem sossego e satisfação ao ver o véu arrancado e não conhece prazer maior do que conseguir, por suas próprias forças, tirar novos véus. A ciência não existiria se não tivesse por única deusa a verdade nua e nada mais". 13 Se a arte tem mais valor do que a ciência, e é sempre utilizada por Nietzsche como paradigma em sua crítica da verdade, é que enquanto a ciência cria uma dicotomia de valores 32

Nietzsche e a verdade que situa a verdade como valor supremo e desclassifica inteiramente a aparência, na arte a experiência da verdade se faz indissoluvelmente ligada à beleza, que é uma ilusão, uma mentira, uma aparência. Notas 1. Cf. N. T., 7. 2. Cf. N. T., "Tentativa de autocrítica", 5. 3. "Sócrates e a Tragédia", in Escritospóstumos, edição alemã, t. I, p. 535, tradução francesa, t. I, v. 1, p. 35. 4. N.T., 14. 5. Cf. N.T., 11; "Sócrates e a tragédia", ed. ai., t. I, p. 539; tr. fr., t. I, v. 1, p. 38. 6. "Sócrates e a tragédia", ed. ai., t. I, p. 539-40; ; tr. fr., t. I, v. 1, p. 38. 7. Ibíd, ed. ai., p. 537; tr. fr., p. 36. 8. Ibíd., ed. ai., p. 542; tr. fr., p. 40. 9. Cf. N. T., 13. 10. Cf. N. T., 17. 11. N.T., 15. 12. Cf. "Sócrates e a tragédia", in ibíd., ed. ai., p. 546; tr. fr., p. 43. 13. N. T., 15; Frag. Post., final de 1870, 6 [16). 33

3 Arte e "instinto de conhecimento" Apresentei o que considero o essencial da crítica da racionalidade científico-filosófica tal como é formulada em O nascimento da tragédia e nos escritos e fragmentos que lhe servem de preparação. É indispensável porém salientar que essa crítica é sempre retomada por Nietzsche, impondo-se como tema constante, malgrado as diferenças conceituais que servem para formulá-lo. Os textos imediatamente posteriores, como, por exemplo, o conjunto de fragmentos que deveriam constituir O livro do filósofo, retomam a mesma problemática da relação entre arte e conhecimento. Mas se a crítica à metafísica persiste nesses escritos, como em toda a obra de Nietzsche, ela não mais se faz em nome de uma metafísica de artista, isto é, de uma dimensão metafísica da arte ou de uma experiência artística da essência do mundo - o elemento da arte é a ilusão. A crítica à institução da dicotomia metafísica verdade-aparência agora é realizada a partir do conceito de "instinto de conhecimento" ou instinto de verdade, sem que o elogio da arte explicite uma dualidade de elementos ou de forças, mesmo que seja para afirmar uma síntese, uma reconciliação ou uma unificação. O que é o "instinto de conhecimento"? Para sabê-lo é preciso resolver um problema: alguns textos negam claramente a existência de um instinto de conhecimento, de um "instinto de verdade honesto e puro".1 O que Nietzsche pretende então é ressaltar que o conhecimento não faz parte da natureza humana, ou melhor, não está no mesmo nível que os instintos e que não é possível dizer, por exemplo, como Aristóteles no início da Metafísica, que todos os homens desejam naturalmente conhecer. O conhecimento não é um instinto do homem, quer dizer, não é da mesma natureza que os instintos. O 35