P.º n.º R.P. 251/2010 SJC-CT Transmissão do direito de propriedade com reserva de usufruto. Constituição do direito de uso e habitação pelo usufrutuário. PARECER 1. Através do sítio da Internet www.predialonline.pt foram pedidos, sobre as fracções autónomas L (habitação) e BE (garagem) do prédio n.º, freguesia de...,..., os registos de direito de uso e habitação, aquisição e usufruto, a que vieram a corresponder as aps., e, respectivamente, de 2010/10/01. 1.1. O pedido dos referidos actos de registo predial foi instruído com prova do cumprimento das obrigações fiscais e escritura pública, na qual os titulares inscritos doam à sua neta,, menor, as ditas fracções autónomas, reservando para si o usufruto, simultâneo e sucessivo, e, a partir deste, constituem a favor do segundo outorgante, seu filho, por conta da legítima, o direito de uso e habitação vitalício sobre os mesmos bens. 2. Os registos foram todos recusados, por se entender que há ofensa das normas de carácter imperativo contidas nos artigos 1439.º e 1484.º do Código Civil (CC) e que, por isso, o negócio jurídico da doação, com instituição simultânea do direito de habitação e de usufruto, é, na sua globalidade, nulo. Acrescenta-se, como motivo de qualificação minguante, o facto de a donatária menor não se encontrar representada no acto e invocam-se os artigos 68.º e 69.º/1/d) do Código do Registo Predial (CRP). 3. No recurso hierárquico, aduz-se, no essencial, que a elasticidade do direito de usufruto consente a constituição do direito de uso e habitação; que o direito de uso e habitação é «um direito qualitativamente e quantitativamente inferior ao do usufrutuário», porquanto está limitado às necessidades do seu titular e da sua família, cessando, pois, quando estas cessarem, sem prejuízo de cessar também em face da extinção do usufruto; e que a doação feita à menor dispensa a intervenção do seu representante, dado tratar-se de uma doação pura, sem encargos. 1
4. A sustentação da recusa reconduz-se à declaração de que os argumentos invocados pela recorrente não são de molde a fazer alterar a qualificação, remetendo-se para os fundamentos alinhados no despacho inicial, sem outros desenvolvimentos ou quaisquer considerações tendentes a melhor esclarecer a decisão tomada. Apreciação 1. Tendo em conta o que antecede, a primeira questão a resolver nos autos reside em saber se sobre o mesmo objecto podem incidir, simultaneamente, o direito de usufruto e o direito de uso, considerando que são ambos direitos reais finais e, portanto, direitos que implicam o gozo da coisa. 1.1. Com efeito, no artigo 1439.º do CC, o usufruto é definido como o direito de gozar temporária e plenamente uma coisa ou direito alheio, sem alterar a sua foram ou substância, e no artigo 1484.º do CC é dito que o direito de uso consiste «na faculdade de se servir de certa coisa alheia e haver os respectivos frutos, na medida das necessidades, quer do titular, quer da sua família», donde em ambos os direitos se reconhecem poderes de uso ou de fruição da coisa. 1.2. Mas das noções legais referidas também se extrai, no que respeita ao uso e fruição, que o usufruto confere a plenitude do gozo, significando isto que o seu titular pode tirar partido de todas as utilidades da coisa, desde que preserve a sua forma ou substância, enquanto no direito de uso cabe um gozo limitado, não pleno, e imediato da coisa medido pelas suas necessidades pessoais e familiares do seu titular. 1.3. Daí a diferença qualitativa e quantitativa entre os aludidos direitos e o carácter pessoalíssimo do direito de uso, a determinar a sua intransmissibilidade (artigo 1488.º do CC) 1 e a contrastar com a possibilidade de transmissão ou de oneração 1 Notamos que para alguns autores o preceito contido no artigo 1488.º do CC tem carácter supletivo, porém, será dominante a doutrina que vê a norma como aparentemente supletiva e, portanto, a considera imperativa. Cfr. Oliveira Ascensão, Direito Civil Reais, 5.ª edição, p. 480, Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 4.ª edição, p. 407, Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, 2.ª edição, p. 178, e Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, vol. III, 2.ª edição, p. 551. 2
do usufruto, salvas as restrições impostas pelo título constitutivo ou pela lei (artigo 1444.º do CC). 1.4. Sabemos, em face do disposto no artigo 1445.º do CC, que a lei permite alguma autonomia privada na determinação do conteúdo do usufruto, contanto não se desvirtue o tipo legal, e que, portanto, do título constitutivo do usufruto pode resultar alguma limitação à plenitude de gozo ou de fruição 2. 1.5. No entanto, em face das normas atrás referidas, fica claro que o usufruto, enquanto direito mais rico, pode suportar o gravame de um direito mais restrito, com a possibilidade de retomar o seu volume uma vez extinto aquele direito filial, e que o direito de uso pode ser constituído à custa do usufruto, desde que este, na sua dimensão original, contenha todas as utilidades que integram o concreto direito de uso 3. 1.6. É o que sucede no caso em apreço: é a partir do usufruto, criado per deductionem, que se constitui o direito de uso e, portanto, é aquele direito de usufruto, não a propriedade, o direito progenitor. Os direitos de usufruto e de uso são constituídos no mesmo título formal e pelos mesmos sujeitos, mas, ao contrário do que parece supor a recorrida, não se filiam ambos, directamente, no direito de propriedade. 1.7. A despeito de a propriedade ser a matriz e o suporte de toda a organização do domínio, o direito que aqui sofre a carga que o direito de uso (direito filial) representa é o direito de usufruto (direito progenitor), e é precisamente este nexo causal entre a contracção do direito de usufruto e a constituição do direito de uso que arreda a incompatibilidade na incidência simultânea destes dois direitos reais sobre a mesma coisa: os poderes que ao novo direito competem são à medida dos poderes de que o usufruto se priva 4. 2 Cfr. Carvalho Fernandes, Lições, cit., pp. 388/389. 3 Neste sentido, Carvalho Fernandes, Lições, cit., p. 406. 4 Seguindo Orlando de Carvalho, Direito das Coisas (do direito das coisas em geral), Centelha, Coimbra, 1977, pp. 160/162 e 238/241, convocamos aqui a característica da elasticidade, que tem no direito de propriedade o seu campo de eleição, mas que existe igualmente nas formas limitadas de domínio com 3
1.8. Importa, no entanto, ter em conta que o usufruto é, por natureza, um direito temporário, que se extingue por morte do usufrutuário, ou chegado o termo do prazo por que o direito foi conferido, quando não seja vitalício (artigo 1476.º/1/a) do CC), pelo que desaparecido este direito, a propriedade expande-se automaticamente, retomando a feição anterior. 1.9. Logo, é também com este limite temporal que hão-de valer, em regra, quaisquer onerações do direito de usufruto, pelo que para o direito de uso vitalício dos autos há que contar com mais esta causa de extinção, além das que já resultam do disposto no artigo 1476.º do CC ex vi do artigo 1485.º do mesmo Código, podendo acontecer que, apesar da sobrevivência do usuário, o direito de uso se extinga automaticamente por força da extinção do direito de usufruto que o suporta. *** 2. A outra questão controvertida nos autos é a de saber se na doação da nua propriedade se impunha a intervenção do representante da donatária menor, como pretende a recorrida, ao que se supõe, para aceitar a doação. 2.1. Ora, estando em causa uma doação sem encargos feita a incapaz, não vemos, realmente, que falta faz a intervenção da donatária menor ou do seu representante legal, quando no artigo 951.º/2 do CC se diz expressamente que as doações puras feitas a tais pessoas produzem efeitos independentemente de aceitação em tudo o que lhes aproveite. 2.2. É verdade que a doação é feita com reserva do usufruto a favor do doador (958.º/1 do CC), mas isso significa uma doação apenas da nua propriedade, não uma doação modal ou doação com encargos, nos termos previstos no artigo 963.º do CC, pois nenhum dever jurídico é imposto ao donatário. 2.3. Por outro lado, quer se entenda que esta doação representa um negócio jurídico unilateral e não um contrato 5, quer se diga que a lei permite aqui um suficiente indeterminação para permitirem um aproveitamento mais restrito que se reconheça na lei como um direito real. 5 Neste sentido, Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. III, 4.ª edição, pp. 170 e 183/184. 4
contrato celebrado unilateralmente, tudo se passando como presumindo a lei a aceitação por parte dos representantes legais dos incapazes 6, o resultado não deixa de ser a transmissão da titularidade do direito (nua propriedade) para a donatária (artigo 954.º/a) do CC), produzindo-se o efeito real relevante para o registo predial (artigo 2.º/1/a) do CRP) sem que no processo de formação do negócio tenha de intervir o menor ou o seu representante legal; tenha de intercorrer um acto de aceitação do beneficiário ou do seu representante legal; ou, noutra perspectiva, tenha de ser feita a prova da aceitação, que se presume 7. 2.4. Ainda que se mostrasse necessária a aceitação da doação por intermédio do representante legal, diante do disposto no artigo 945.º do CC não se vê que tal aceitação tivesse de ser feita no próprio acto ou, sequer, de ser coetânea da proposta, pelo que a falha, a existir, não estaria nunca na falta de intervenção daquele representante legal no acto, mas na ausência de prova da conclusão do negócio jurídico. 3. Parece-nos, pois, que nada obsta à qualificação dos registos como definitivos, embora devendo seguir-se, na sua feitura, a ordem de dependência dos factos (artigo 75.º/4 do CRP) e não a ordem por que foram formulados no pedido, que efectivamente não se coaduna com a cronologia e a dependência substantiva estabelecidas no título 8-9. 6 Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, vol. II, 3.ª edição, p. 275. 7 Não importa sequer duvidar da menoridade da donatária porque, por um lado, não há quaisquer elementos no processo de registo que contradigam as declarações prestadas pelos outorgantes e, por outro lado, com o acesso à base de dados do registo civil (mediante o nome da donatária e o parentesco com os donatários) facilmente se comprova a veracidade de tais declarações (artigo 73.º/1 do CRP). 8 Caberá então efectuar primeiro o registo de aquisição e o registo do usufruto, cumulando-se as apresentações respectivas de forma a patentear a interdependência entre os factos considerada no artigo 97.º/1 do CRP, e efectuar depois o registo do direito de uso, ancorado no registo de usufruto de que depende e por subinscrição, pois embora se trate de um direito de uso da coisa, é no usufruto; não na propriedade, que aquele direito (uso) directamente se filia, e são as vicissitudes deste (usufruto) que imediatamente o atingem, pelo que, por interpretação analógica ou por interpretação extensiva, se justificará a aplicação da figura da subinscrição prevista no artigo 101.º/1 do CRP. 9 Não obstante a doação do direito de uso ser feita por conta da legítima, não se afigura de inscrever o ónus a que alude o artigo 2118.º do CC, isto porque, não podendo aduzir-se que este ónus assegura a 5
4. Em conformidade, propomos a procedência do recurso e extraímos as seguintes CONCLUSÕES I- O direito de usufruto tem, em abstracto, um licere ou conteúdo suficientemente indeterminado para admitir a constituição de um direito de uso (direito mais restrito) sobre o seu objecto. II Em face do disposto no artigo 951.º/2 do Código Civil, a doação pura feita a menor produz efeitos independentemente de aceitação em tudo o que aproveite ao donatário, pelo que o registo de aquisição respectivo não pode ser recusado com fundamento na falta aceitação da doação por intermédio do representante legal do menor. Parecer aprovado em sessão do Conselho Técnico de 30 de Junho de 2011. Maria Madalena Rodrigues Teixeira, relatora, Luís Manuel Nunes Martins, Isabel Ferreira Quelhas Geraldes, António Manuel Fernandes Lopes, João Guimarães Gomes Bastos, José Ascenso Nunes da Maia. Este parecer foi homologado pelo Exmo. Senhor Presidente em 04.07.2011. colação em espécie (Oliveira Ascensão, Sucessões, 4.ª edição, pp. 551/552), temo-lo como uma garantia criada directamente pela lei sobre os bens doados, em benefício dos herdeiros do doador que tenham direito a preencher o seu quinhão hereditário à custa desses bens, sujeitando o terceiro adquirente dos bens doados a que estes bens possam ser executados para pagamento da importância devida pelo donatário ou pelos seus sucessores (Cfr. Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, pp. 461/463), e, como se viu, o direito de uso é insusceptível de transmissão ou de oneração (artigo 1488.º do CC). Embora o enunciado linguístico do artigo 2118.º do CC se dirija à doação de quaisquer bens imóveis (e, diante do disposto no artigo 204.º/1/d) do mesmo Código, o direito de uso integra, sem dúvida, tal categoria), parece-nos, na verdade, que o carácter pessoalíssimo do direito de uso; a sua intransmissibilidade absoluta, se opõe ao consequente da norma (ónus ou garantia real), afastandoo do seu campo de aplicação, e, por si só, assegura todos os interesses nela implicados. 6
FICHA P.º R.P. 251/2010 SJC-CT SÚMULA DAS QUESTÕES TRATADAS Direito de uso e habitação: Usufruto como direito progenitor Doação pura feita a menor: Título para o registo 7