PROPRIEDADE, POBREZA E DIREITOS NA LUTA PELA TERRA (Vale do Paraíba Mineira Oitocentistas)

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PROPRIEDADE, POBREZA E DIREITOS NA LUTA PELA TERRA (Vale do Paraíba Mineira Oitocentistas) Elione Silva Guimarães 1 Resumo: A proposta deste artigo é apresentar os resultados parciais de uma pesquisa que tem por objetivo reconstituir histórias e memórias de roceiros negros na Zona da Mata mineira (Juiz de Fora e Mar de Espanha século XIX) na luta pelo patrimônio rural. Abstract: The focus of this article is to show the partial results from a research which has the purpose to reconstruct stories and memories from rural black workers in Zona da Mata mineira (Juiz de For a and Mar de Hespanha XIX century) in the fight for rural property.. As considerações apresentadas neste texto se restringem aos municípios de Juiz de Fora e de Mar de Espanha, localizados na Zona da Mata de Minas Gerais, na divisa com o Rio de Janeiro, no que convencionamos chamar de Vale do Paraíba Mineiro. As localidades surgiram no início do século XIX, na rota dos tropeiros que transitavam entre os portos do Rio de Janeiro e as montanhas de Minas. No século XIX a região foi ocupada com objetivo do estabelecimento de empresas agrícolas voltadas para a produção de café, caracterizando-se pela existência de grandes propriedades com concentração de muitos escravos (CARRARA, 1993 e 1999 e PIRES, 1993), distinguindo-se pela diversidade e auto-suficiência. Durante o período escravista a mãode-obra responsável pela produção cafeeira foi, prioritariamente, a do trabalhador escravizado e no pós-abolição a dos libertos. As evidencias documentais apontam que, no interior das grandes fazendas, até mesmo aos cativos foi possível cultivar em seu proveito uma roça, criar pequenos 1 Pesquisadora do Arquivo Histórico de Juiz de Fora e P do Núcleo de Referência Agrária da UFF. Esta pesquisa está sendo realizada com o apoio de uma bolsa de PDJ do CNPq (2006-2008) e com o auxílio da FAPEMIG (2005-2006).

animais, cultivar um pomar ou uma horta. A posse ou a propriedade de um pedaço de terra foi possível para alguns forros ainda durante a vigência do escravismo. O acesso a terra não foi imediato para a maioria dos que se tornavam libertos. Alguns receberam terras em doação ou legados de seus ex-senhores, quando estas transmissões ocorreram sem questionamentos o acesso á terra foi mais rápido, mas nem sempre foi assim. Algumas vezes, só após longos anos de embates jurídicos chegou-se a uma solução para os litígios em torno da transmissão da propriedade da terra para libertos. Para recuperar as histórias destes libertos na luta pelo acesso a um pedaço de terra acompanhei os detalhes contidos nas fontes, resgatei fragmentos das histórias do cotidiano e os conflitos por eles vivenciados em torno da defesa do patrimônio rural, o que se tornou possível quando os mesmos chegaram às barras da justiça, revelando a quebra de acordos costumeiros. 2 Nos inventários que levantei em Mar de Espanha e Juiz de Fora a informação de que o indivíduo era forro ou afrodescendente raramente esteve explícita. Partir das doações e heranças deixadas para ex-escravos é um ponto mais seguro. Nestes inventários, e nos documentos a eles juntados e deles derivados, os libertos emergem com os sobrenomes que os acompanharão, e a seus descendentes, para o resto de suas vidas, sendo possível seguir os rastros dos personagens em variada documentação, através do que Ginzburg denominou de fio de Ariana (GUINZBURG, In GINZBURG, CASTELNUOVO & PONI. 1999 e GINZBURG, 2007). Maria Helena Machado (1994), que estudou a última década do escravismo na região cafeeira de Campinas e Taubaté, notou que embora a historiografia evidencie a existência de comunidades negras oriundas de doações de terras recebidas de seus exsenhores, poucos são os estudos sistemáticos sobre o tema. A autora desenvolveu análise sobre algumas destas comunidades e concluiu que os libertos conseguiram se estabelecer com sucesso nas em áreas desvalorizadas, nas quais as camadas dominantes não se interessavam pelo controle do acesso a terra. Analisei 338 testamentos abertos em Juiz de Fora entre 1844-1904, dos quais 52 testadores deixaram algum bem para afrodescendentes (ou 15,38%). Embora esta fonte documental impossibilite quantificações precisas, aproximadamente 193 indivíduos foram contemplados: 44 receberam dinheiro ou apólices; 42 foram constituídos 2 As fontes utilizadas para resgatar estas histórias de luta pelo direito á terra e as querelas delas resultantes são múltiplas: inventários post-mortem, os processos civis possessórios (embargo, divisão e demarcação de terras, manutenção e reintegração de posse, ação de força), processos criminais.

herdeiros; 36 foram nomeados sucessores da terça; 55 herdaram porções de terras e 14 receberam outros benefícios (GUIMARÃES, 2006a: 167-195). Em Mar de Espanha foram pesquisados 293 testamentos, abarcando o período 1843-1904, sendo que destes 58 pessoas deixaram legados para afrodescendentes (19,79%), incidindo o benefício sobre 111 indivíduos. 44 pessoas foram nomeadas herdeiras dos bens e um herdou a terça; 20 herdaram porções de terras; 11 foram contemplados com dinheiro ou apólices e 35 receberam outros benefícios. Os que foram nomeados herdeiros dos bens ou das terças também podem ter recebido terras. Muitas destas heranças foram permeadas por disputas. Compreender os conflitos envolvendo os libertos em sua luta pelo direito a terra, na segunda metade do século XIX e primeiras décadas do século XX pressupõe não somente recuperar histórias e memórias sobre os conflitos, mas, também, resgatar os discursos e os embates travados ao redor desta disputa. Na pesquisa que realizei sobre Juiz de Fora (2006a) tive como fio condutor a história dos habitantes da Fazenda da Boa Vista, que pertenceu a Francisco Garcia de Mattos. Quando ele faleceu, em 1866, legou sua terça para os filhos de seu ex-cativo, Balbino, que havia sido seu arrieiro e administrador. Entre os bens legados havia aproximadamente 100 alqueires de terras e 10 escravos. Em 1878 faleceu a segunda esposa de Garcia de Mattos e, sem herdeiros necessários, ela legou os remanescentes de seus bens preferencialmente em terras aos 20 cativos que libertou, além de ter deixado terras para filhos e outros parentes de Balbino. As terras estavam em condomínio com homens fortes e poderosos e, nos anos subseqüentes, os libertos tiveram que elaborar estratégias de permanência na propriedade e defender nos tribunais o direito a terra. A valorização pecuniária da terra na região onde a propriedade estava localizada, no final do período Imperial, transformaram-na em um espaço de cobiças e tensões (GUIMARÃES, 2006ª e 2006b). A pesquisa revelou, também, as dificuldades de negros que herdaram terras em regiões valorizadas economicamente em fazer valer os seus direitos, como os legatários de Calisto José Ferreira (Juiz de Fora). Os mesmos problemas foram enfrentados pelos legatários de Casimiro Lúcio Ferreira de Carvalho, Manoel Pinto da Silva e Castro e do Barão de Louriçal, todos fazendeiros em Mar de Espanha. Os herdeiros de Calisto José Ferreira receberam terras em matas em São Pedro de Alcântara, um dos principais distritos de Juiz de Fora. Calisto, cujo inventário foi aberto em 1874, deixou para seus 20 cativos, libertados por sua morte, 57 alqueires de terras. Nove anos depois (1883) os libertos entraram com uma ação na justiça,

reclamando que ainda não haviam recebido as terras, e que o testamenteiro estava usufruindo e cultivando as terras que lhes cabiam por herança. Os autos revelam não poucos desrespeitos à legislação sobre testamentos e transmissão de patrimônio. O testamenteiro foi acusado de estar retardando a solução das ações com a intenção de que os direitos dos libertos sobre a herança, principalmente as terras, prescrevessem. A ação se estendeu até 1886, quando o legado foi finalmente cumprido (GUIMARÃES, 2006ª: 182-195). Em Mar de Espanha Casimiro Lúcio Ferreira de Carvalho legou seu patrimônio para seis de suas crias e libertos, em 1867. Dentre os bens estavam as Fazendas Santana da Barra e Cachoeira, consideradas duas das maiores produtoras da rubiácea da região. Do legado também constavam 150 escravos, além das benfeitorias e cafeeiros. Comprometido por muitas dívidas, ambicionado por poderosos da localidade, mais de vinte anos de conflitos se passaram até os libertos receberem os bens legados (GUIMARÃES, In: GUIMARÃES & MOTTA, 2007: 217-243). Poucos anos antes (1859), na mesma localidade, Manoel Pinto da Silva e Castro havia libertado e doado terras para seus ex-cativos (FME-LT 03: 4-8v e inventário de 1859, caixa 21, Testamentária de 1862, caixa 03). 3 Quando ele fez seu testamento, o inventário de sua esposa ainda não havia sido liquidado. Neste testamento ele libertou oito cativos e declarou que os meus crioulos e crioulas, que estão nascidos até esta data, e que me tocarem no inventário e partilha que se está fazendo de minha falecida mulher (...) ficarão para servirem ao meu herdeiro até que cada um deles tenha a idade de trinta anos, idade esta assaz para bem se dirigirem e com proveito gozarem de suas liberdades (FME-LT 03:5). Pouco tempo depois ele fez um codicilo, no qual confirmou a liberdade dos seus crioulos e acrescentou um benefício a favor deles, deixo aos mesmos em partes iguais o uso-fruto de vinte e cinco alqueires de terras que tenho na Fazenda denominada Pouso Alegre (...) cujas terras por morte dos ditos meus escravos passarão para os seus herdeiros descendentes e se não os tiverem reverterão as terras ao meu herdeiro instituído em testamento e na falta deste aos seus herdeiros. Declaro mais que os ditos meus escravos por mim libertos não poderão de modo algum nem por qualquer motivo que seja transferir a outro, que não seja o meu herdeiro, o uso-fruto da parte de terras que a cada um tocar (FME-LT 03:7). Concluído o inventário da esposa de Manoel Pinto, somaram-se aos oito cativos libertados mais 29 crioulos e crioulas que lhe ficaram da meação e que, portanto, 3 A referência às fontes do FÓRUM DR. GERALDO ARAGÃO FERREIRA (Fórum de Mar de Espanha) será feita da seguinte maneira: FME, acompanhada do documento, data e quando for o caso o número da caixa. Para os Livros de Testamentos usarei a sigla LT.

seriam alforriados aos 30 anos. As histórias destes forros não me foi possível acompanhar com muitos detalhes, mas tenho indícios suficientes para afirmar que não enfrentaram poucas dificuldades para fazer valer a vontade dos ex-senhores e seus direitos. A esposa de Manoel Pinto havia manumitido cinco escravos, dentre eles Abraão, então com 12 ou 13 anos (FME-LT 02: 86, inventário de 1858, caixa 20). Após a morte dela, Manoel Pinto mandou o liberto para a cidade, para aprender o ofício de alfaiate. Quando Manoel morreu, sem herdeiros necessários, deixou seus bens para um sobrinho. O pai deste herdeiro, que era menor de idade, defendia os interesses do filho no inventário. Ele alegou que sendo os pais de Abrão cativos, o jovem liberto precisava de um tutor para gerir sua pessoa e a esmola que a ex-senhora lhe deixara (100$). Foi ele nomeado tutor do jovem. Após esta nomeação a mãe de Abraão encaminhou petição à justiça (1860), alegando que não era seu desejo que o filho fosse entregue aos cuidados do tutor, pois é provável que queira empregar o filho da suplicante em serviços de lavoura, o que não é próprio em razão de ser de uma constituição débil e assim supõe a suplicante por saber o que praticou com os libertos João de Deus, Ambrósio e Antonio ginga, fazendo-os recolher à cadeia desta cidade e engajando este último pela módica quantia de 100$ anuais (FME, inventário de 1859, caixa 21: 23). A solicitação da mãe de Abraão foi indeferida e a guarda do rapaz permaneceu com o irmão de Manoel Pinto, que, segundo informações da peticionaria, desejava explorar os serviços de seu filho no eito e, aparentemente, impor aos demais libertos seus interesses. No inventário e prestação de contas testamentária de Manoel Pinto não há nenhuma indicação de que as terras legadas aos cativos tenham sido entregue a eles. Um documento de 1880, portanto 22 anos depois da morte do doador, indica que eles de fato não receberam o legado. Em abril e em julho de 1880 os libertos João cabinda, José Pinto, Francisco Rodrigues, Pio Pinto e suas mulheres registraram uma procuração em cartório, nomeando um advogado para requererem a posse e a manutenção nela das terras que lhes deixou seu finado senhor Manoel Pinto da Silva Castro, que os libertou por verba testamentárias e deixou-lhes bem como a outros seus parceiros também libertos, terrenos de cultura para suas residências e culturas, defender os seus direitos em todas as causas relativas a essas terras em que eles forem autores ou réus (PRIMEIRO OFÍCIO DE NOTAS DE MAR DE ESPANHA. Livro nº 25: 15v-16). Não foi possível acompanhar o desenrolar desta questão, uma vez que não localizei outros documentos além dos mencionados. Ou as partes entram em acordo e

resolveram o conflito de forma consensual, ou, o que não é improvável, os processos se perderam. Não foi melhor a sorte dos filhos mestiços de Francisco de Assis Monteiro Breves, o Barão de Louriçal. Ele era solteiro e sem herdeiros forçados. No testamento de 1894 registrou seu relacionamento sexual com algumas de suas ex-escravas e reconheceu a paternidade de determinados filhos delas. Alegou Que por fraqueza humana teve com suas ex-escravas, de nomes Generosa, Virgínia, Amélia, Benvinda, Lourença (já falecida) e Balbina, diversos filhos os quais existem e são os de nomes Francisca, Maria, Roberta, Virgilio, Orestes, Gumercindo, Ernestina, João, Geraldo, Ignez, Cyrillo, Luiz e Rita, sendo os sete primeiros com Generosa, (...) os quais ele testador os reconhece como seus filhos como se fossem de legítimo matrimônio e os institui seus universais herdeiros (FME, inventário de 1894, caixa 110-111). Além de reconhecer a paternidade e instituir universais herdeiros aos seus filhos mestiços, o Barão também deixou legados para as mães deles. Os relacionamentos do Barão com as cativas foram simultâneos, uma vez que filhos tidos com mães diferentes tinham a mesma idade. Generosa devia ser a sua predileta, pois com ela teve sete filhos e para ela deixou a fazenda Porto Alegre, em Itaperuna (RJ), com todas as suas benfeitorias. Para todas as cinco ex-cativas com as quais teve filhos, e ainda vivas quando ele fez o testamento, legou os remanescentes de sua terça. Sua propriedade mais próspera era a fazenda dos Alpes (Mar de Espanha), que possuía cerca de 586 alqueires de terras, sendo 252 deles em matas virgens, 4 e com milhares de cafeeiro. Em Itaperuna (RJ) possuía duas outras significativas fazendas em extensão, embora de menor valor em função de suas atividades: a Porto Alegre - com uma área de 500 alqueires geométricos de terras, metade deles em matas virgens e a Serraria, com 150 alqueires de terras. Apesar do inventário ser constituído por quatro grossos volumes, o final desta história não está nitidamente revelado. De concreto, documentos que deixam evidentes as dificuldades enfrentadas pelos herdeiros na defesa de seus direitos e acesso ao patrimônio. Interessada em receber a parte que lhe era de direito, a fazenda pública foi implacável em exigir do inventariante agilidade na conclusão do inventário. A este apelo o advogado do inventariante respondeu com argumentos de que a herança encontrava-se comprometida por muitas dívidas e que era necessário ter cautela e ouvir os conselhos do tempo. 4 160 alqueires de terras em cafezais novos e velhos a 200$ = 32:000$; 110 alqueires de terras em capoeiras a 350$ = 38:500$; 10 alqueires em pastos valados a 200$ = 2:000$; 50 alqueires em terras inferiores a 100$ = 5:000$; 4 alqueires em mata virgem a 1:000$ = 4:000$; 252 alqueires em matas a 350$ = 88:200$

A fazenda pública não se deixou comover, propôs a liquidação do inventário, estabeleceu o valor dos impostos e exigiu sua parte. A coletoria receberia os impostos devidos e quando ocorresse a partilha e encerramento do inventário novos ajustes seriam realizados. Da liquidação apresentada pelo coletor verifica-se que os bens foram avaliados em R$ 1:079:989$395 e que as dívidas passivas e as custas do processos de inventário somavam R$ 246:432$645. Portanto, o monte partilhável correspondia a 833:556$750. Retirada a terça parte, da qual o Barão dispôs em testamento (R$ 277:852$250), sobrou para ser dividido entre os 13 herdeiros R$ 555:704$500. Nos contra-argumentos do advogado do inventariante encontramos os primeiros indícios de que alguns dos herdeiros negros corriam o risco de serem lesados. O advogado alegou que o imposto sobre os remanescentes da terça, que seria dividido entre as cinco ex-escravas com as quais o Barão teve filhos, não estava correto. Na sua interpretação elas não eram herdeiras dos remanescentes da terça, mas somente usufrutuárias. Para ele o Barão teve a intenção de constituir um legado simples para beneficiar as legatárias sem onerar a seus filhos instituídos (FME, Inventário de 1894, caixa 110-111, vol. 1:. 58). Se por um lado a interpretação do advogado demonstra preocupação em defender o interesse dos órfãos, ela não deixa de ser lesiva às mães deles e a seus respectivos filhos. A discordância entre o inventariante e a fazenda pública originou uma demanda judicial, da qual a coletoria pública saiu com sua versão vitoriosa. Creio que para infelicidade dos filhos mestiços do Barão de Louriçal, o tempo não foi bom conselheiro para o tutor e inventariante, visto que no correr de poucos anos a herança foi totalmente consumida. Vistas e analisadas as contas do inventário, o procurador observou que: Baseado unicamente na probidade do inventariante, probidade que deve-se presumir enquanto não houver prova em contrário aceito como verdadeiras as contas relativas a receita do espólio (FME, inventário de 1894, caixa 110-111, vol. 4: 1522). O mesmo entendimento ele não teve em relação às despesas, notando que elas eram: exageradas, supérfluas e luxuosas, lançadas sem documentos ou com documentos irregulares. O fato é que em 1900 o inventariante apresentou suas contas com um saldo de 675:445$431 contra uma despesa de 680:914$193 (FME, inventário de 1894, caixa 110-111, vol. 4: 1339 e 1524). Na opinião dos herdeiros, a incapacidade e a conduta criminosa do inventariante, promoveram um caos verdadeiro e uma perfeita e completa rapinagem. E enquanto se movia o inventário a trancos e barrancos, tratou-se de tudo

defender, isto é, o interesse da Coletoria Pública, dos credores, dos administradores da herança... menos os direitos dos órfãos. BIBLIOGRAFIA: CARRARA, Angelo Alves. A Zona da Mata Mineira: diversidade econômica e continuísmo (1835-1909). Dissertação de Mestrado. Niterói: Universidade Federal Fluminense, (versão eletrônica), 1993. FERREIRA, Roberto Guedes. Pardos: trabalho, família, alianças e mobilidade social (Porto Feliz, São Paulo, c. 1798 c. 1850). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2005. GINZBURG, Carlo. O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico. In GINZBURG, Carlo, CASTELNUOVO, Enrico & PONI. A Micro-história e outros ensaios. Bertran, Difel, 1991. GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. GUIMARÃES, Elione Silva. Múltiplos viveres de afrodescendentes na escravidão e no pós-emancipação: Família, trabalho, terra e conflito (Juiz de Fora Minas Gerais, 1828-1928). São Paulo: Annablume Juiz de Fora: FUNALFA, 2006ª, GUIARÃES Silva, Patrimônio Rural e Conflitos no Campo (Juiz de Fora, Minas Gerais, segunda metade do século XIX). Anais do XII Encontro Regional de História, Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2006b http://www.uff.br/ichf/anpuhrio/anais/2006/indice2006.htm. GUIMARÃES, Elione Silva, Experiências econômicas de cativos (Zona da Mata mineira, segunda metade do oitocentos. In: GUIMARÃES, Elione Silva & MOTTA, Márcia M.M. Campos em Disputa: História Agrária e Companhia. São Paulo: Annablume, 2007, p. 217-243 MACHADO, Maria Helena. O Plano e o Pânico: Os movimentos sociais na década da abolição. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, EDUSP, 1994. OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. Negócios de Famílias: Mercado, Terra e Poder na Formação da Cafeicultura Mineira. 1780 1870. Bauru-SP: EDUSC, 2004. PIRES, Anderson. Capital Agrário, investimento e crise da cafeicultura de Juiz de Fora (1870-1930). Dissertação de Mestrado. Niterói: UFF. 1993. SOUZA, Sônia Maria. Terra, família, solidariedade...: estratégias de sobrevivência camponesa no período de transição Juiz de Fora (1870-1920). Bauru, SP: EDUSC, 2007. FONTES: FÓRUM DR. GERALDO ARAGÃO FERREIRA, Livros de Testamentos. FÓRUM DR. GERALDO ARAGÃO FERREIRA, inventários. PRIMEIRO OFÍCIO DE NOTAS DE MAR DE ESPANHA. Livro de Notas nº 25 ORDENAÇÕES FILIPINAS, www.uc.pt/htj/proj/filipinas/ordenacoes.htm. GAMMA, Affonso Dionysio. Código Penal Brasileiro. 2ª edição revisada e ampliada. São Paulo: Livraria Acadêmica Saraiva, 1929, p. 250.