LEAL, João. Cultura e identidade açoriana: o movimento açorianista em Santa Catarina. Florianópolis: Insular, 2007. 200 p.



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Transcrição:

369 LEAL, João. Cultura e identidade açoriana: o movimento açorianista em Santa Catarina. Florianópolis: Insular, 2007. 200 p. Universidade Federal do Rio Grande do Sul Brasil Cultura e identidade açoriana é resultado de uma investigação multilocalizada que debate os processos identitários contemporâneos através da análise do fenômeno da transnacionalização da açorianidade e, como refere o autor, do processo de hibridização das culturas populares na contemporaneidade. O que se passa no Sul do Brasil é um exemplo desses processos mundializados que tornam o debate sobre açorianidade algo singular nos diferentes lugares em que o autor encontra seus ativistas. A proposta do livro é uma reflexão sobre as políticas de identidade social observando simultaneamente os desdobramentos no Brasil (na ilha de Florianópolis), Açores e Estados Unidos. O autor parte da conexidade entre os debates e seus entusiastas e percorre, através do estudo etnográfico, o pulsante mundo dos ativistas que conferem a identidade açoriana o caráter de movimento social. Dá-nos a conhecer os debates acerca de referências conceituais que orientam suas práticas e embates políticos. Entre eles, destacam-se a multiculturalidade e multietnicidade manejadas em seus cenários locais, em especial, no Brasil. Trabalhos sobre a identidade social na atualidade se constituem em um tema bastante potente na área de antropologia; esse, em especial, trata de um movimento social cujos contornos não se restringem a realidades locais e que merecem uma reflexão acerca de sua transnacionalidade levando em conta seus desdobramentos locais. O trabalho tira proveito de uma experiência de campo multilocalizada e nos revela um longo percurso de pesquisa, nos aproximando de modo privilegiado dessa temática. Entre os anos de 2000 a 2001, como etnógrafo, João Leal dialogou com um conjunto de interlocutores na ilha de Florianópolis. Esse período, entretanto, já é um desdobramento de uma investigação anterior, trilhando os itinerários percorridos pelos açorianistas desde 1996, então

370 observados pela primeira vez diretamente pelo autor no IV Congresso das Comunidades Açorianas, realizado na ilha do Faial, nos Açores. Esse é um trabalho estimulado pela comparação, em que nos deparamos com uma imersão de campo no Sul do Brasil e no movimento açorianista. Lembro que uma discussão sobre identidades coletivas e políticas de identidade social pode perder um pouco de seu brilho quando são abstraídos os sujeitos que corporificam esses processos ou se os tornamos meros figurantes de uma reflexão conceitual. Do contrário, o trabalho de cunho etnográfico realizado por João Leal analisa depoimentos e investimentos emocionais desses sujeitos de pesquisa e reflete sobre diferentes aspectos vividos como parte desse hibridismo de concepções de cultura popular. Nesse quadro de debates da antropologia sobre hibridização, tiramos proveito dessa leitura na medida em que o autor nos fornece dados etnográficos que evidenciam os modos como os sujeitos se engajam e conhecemos os dilemas que vivenciam no movimento açorianista. Note-se que o trabalho realça as falas e reflexões de seus interlocutores, extrapolando noções preestabelecidas de campo de intelectuais e de sujeitos que gestionam categorias. O movimento açorianista aqui retratado extrapola as noções que os reduziriam a um conjunto de sujeitos especialistas que monopolizam saberes. Os interlocutores de João Leal nos são apresentados como sujeitos que dão vitalidade e que renegociam categorias, conferindo novos sentidos à noção de açorianidade. Afinal, qual seria o motivo de fazer etnografia sobre fenômenos transnacionais ou reconfigurações de identidades? Um deles seria o de responder a questões fundamentais sobre a pertinência de termos como diáspora, transnacionalismo ou hibridização. Tal debate é o fio condutor de sua análise e reflexões. Todavia, o trabalho etnográfico presente nesse estudo não se beneficia apenas de seus dilemas conceituais e abarca outros desafios como, por exemplo, o diálogo com estudos históricos e da interlocução com protagonistas que manejam o referencial antropológico quando referem à cultura açoriana. Nesse caso, se trata de um diálogo sobre a história do movimento açoriano em um terreno em que a história da açorianidade é um campo consolidado de experts e de entusiastas especialistas. Nada mais complexo e contemporâneo do que sustentar interpretações antropológicas sobre um determinado tema reconhecendo, ao mesmo tempo, que os interlocutores são especialistas no assunto e atentos às interpretações antropológicas. João Leal realiza

371 inúmeras aproximações com o movimento açorianista evidenciando a vitalidade e o que relembra ser os curto-circuitos comunicacionais entre ativistas que trabalham com o conceito de cultura e os antropólogos (p. 29). Nesse trabalho, evidencia-se o modo como o movimento açorianista tem tratado a cultura açoriana, o que nos permite conhecer mais sobre os protagonistas e ênfases conferidas pelo movimento açorianista bem como o lugar da erudição etnográfica nesse debate. Trata-se de analisar o fenômeno da cultura popular e do folclore como uma arena de debates que congrega o movimento em si e a interlocução com o poder público. São muitos os desafios empreendidos pelo autor na compreensão das políticas de identidade e cenários conflitivos de revitalização da identidade açoriana. No primeiro capítulo, o autor se alia à historiografia no sentido de entender a historicidade e os contornos locais do movimento na ilha de Santa Catarina. Em 1948, os festejos dos 200 anos da colonização açoriana apontavam para um conjunto de celebrações e intelectuais que investiam na evocação da origem. Para tanto, evidencia os desdobramentos do congresso de 1948 e que estes nos revelam um campo de intelectuais que gestionaram as definições e fronteiras entre aquilo que era tido e visto como raiz açoriana, cultura popular ou suas sobreposições entendidas como especificidades da cultura açoriana no Sul do Brasil. É, nesse sentido, um capítulo que explicita os protagonistas e a forma como atuaram nas políticas de revitalização da identidade de origem. Concebida a partir dos anos 1970 como uma diáspora açoriana, o debate sobre a multilocalidade da cultura açoriana assume contornos mais amplos que se conectam de formas distintas ao ativismo, assumindo contornos singulares, tratada como uma diáspora açoriana. No Sul do Brasil, os anos 1990 acabam potencializando a pertinência do debate sobre a açorianidade em um terreno que aponta para uma tendência bastante evidente de inserção dos intelectuais e ativistas no sistema escolar e de ensino, englobando o sistema de ensino superior. Como expressa o autor, podemos vislumbrar aí diversas ramificações dos ativistas e o diálogo que investem junto a consulados, governos de municipalidades e do Estado. Essa atuação tem contornos locais, mas é potencializada (em momentos diversos) por fóruns de debate internacionais sobre a identidade açoriana, nos quais os ativistas se destacam como participantes e entusiastas.

372 Postular homogeneidades, traçar genealogias sobre festas ou aspectos expressivos da cultura açoriana não são problemas concernentes a uma imprecisão da origem, mas o potencializador de um investimento no resgate da identidade de origem. O trabalho de João Leal nos mostra que esse terreno de incertezas, ambivalências é extremamente profícuo para os especialistas e para captar as atenções de um público mais amplo sensibilizado pelo tema do resgate das origens. O autor compartilha conosco e com os interlocutores de campo esse tema que intriga e revitaliza os debates sobre identidade social. Afinal, o que é nosso (exclusivo) e o que é nosso (porque herdamos)? Há tantas formas de produzir uma retórica da identidade social contrastivamente, mas a açorianidade atua dividindo águas, diria bastante turvas, em que a mistura ora aparece como um entrave a definições precisa, ora é aquilo que desencadeia narrativas que se dedicam a discernir e classificar unidades culturais. Nos capítulos seguintes, Nós somos açorianos: etnogenealogia e autoctonia e Ativistas do açorianismo, nos aproximamos dos usos ampliados e reconfigurados das noções de identidade açoriana. De um lado, inicialmente nos dá um exemplo de uma tendência das políticas públicas de gestionarem identidades de origem como um tema turístico de enorme apelo e da utilização da marca açoriana como uma espécie de selo. No momento seguinte, o açorianismo é percebido em transformação, sendo ampliado e autoctonizado. Como refere o autor, há um transbordamento do discurso açorianista a outros protagonistas e cenários políticos. Se a identidade açoriana pode ser compreendida como um modo de recolocar em debate noções sobre a superioridade e inferioridade racial (contrastivamente a outros segmentos da sociedade catarinense), para tal debate os especialistas buscam um reconhecimento, e fazer frente a desvalorização que incide sobre a açorianidade. Em termos práticos, é um tema difícil, pois se trata de releitura de bens simbólicos relacionados à cultura popular e inicialmente identificados como arcaísmo. Tais aspectos nos demonstram os desafios dessa recriação positiva nas políticas de reconhecimento do movimento açorianista no Estado de Santa Catarina. Ao longo de seu trabalho, João Leal nos demonstra a potencialização e diversificação de referências à cultura açoriana disseminadas e vividas na atual Santa Catarina. No capítulo final, quando versa sobre Açorianos, alemães, gaúchos: guerras culturais e políticas de identidade, extrapola a simples

373 explicitação de alteridades. Explora o diálogo e conflito entre a açorianidade e imigração alemã e, de outro lado, trata do contexto local realçando os aspectos conflitivos e disputas com os signos que evidenciam esses outros e suas hierarquias disputando a legitimidade de sua presença, realçando o valor de sua anterioridade e influência na vida local. O trabalho nos apresenta os dilemas atuais do movimento açorianista e as dificuldades de empoderamento dos protagonistas diante de outros movimentos sociais com os quais concorre ou de tempos em tempos entra em choque. Ao finalizar o livro, os dilemas açorianistas se tornam mais evidentes através da análise dos episódios e debates recentes sobre a legalidade e legitimidade da festa da Farra do Boi. Ao buscar dar novos significados e recolocar os bens simbólicos da cultura açoriana em outro patamar, o percurso de curto-circuitos aparece de modo mais evidente. Tomando como desfecho a análise da Farra do Boi, ao atualizar os festejos e manifestações como uma identidade fundamental, o autor evidencia os embaraços do movimento açorianista ao se relacionar com outros jogos de força mais potentes, entre eles com os movimentos ecologistas e com o judiciário. As releituras atuais da Farra do Boi, que a interpretam e concebem como manifestação transgressora, também participam desses novos cenários políticos e conflitos das políticas identitárias. Os caminhos do ativismo parecem paradoxais e realçam os dilemas dos ativistas em gestionar e reconduzir os conflitos que as noções de tradição enfrentam no jogo das políticas identitárias. Há um fluxo de interlocuções muito profícuas entre antropólogos que tratam do mundo lusófano. O trabalho de João Leal nos permite usufruir das vantagens da circulação entre campos de observação diversos, quando realizamos uma pesquisa etnográfica. Escrito e revisado especialmente com o cuidado de dialogar com os pesquisadores e leitores brasileiros, Cultura e identidade açoriana mostra a vitalidade do trabalho etnográfico a respeito de temas como transnacionalismo, hibridização e diáspora, que só aparentemente são resolvidos no plano do debate conceitual. Tais temas, assim como a identidade açoriana, exigem do etnógrafo não só um domínio sobre o debate acadêmico, mas a sensibilidade de João Leal com os modos de apropriação e reapropriação de concepções de cultura e, nesse caso, dos desdobramentos etnopolíticos da identidade açoriana.