PARA UMA RELAÇÃO ARTÍSTICA CONSIGO:



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Transcrição:

1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO INSTITUTO DE FILOSOFIA, ARTES E CULTURA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA PARA UMA RELAÇÃO ARTÍSTICA CONSIGO: A QUESTÃO DO SUJEITO NOS ÚLTIMOS ESCRITOS DE MICHEL FOUCAULT Débora Chaves de Lima Ouro Preto 2012

2 Débora Chaves de Lima PARA UMA RELAÇÃO ARTÍSTICA CONSIGO: A QUESTÃO DO SUJEITO NOS ÚLTIMOS ESCRITOS DE MICHEL FOUCAULT Dissertação apresentada ao curso de Mestrado em Estética e Filosofia da Arte do Instituto de Filosofia, Artes e Cultura da Universidade Federal de Ouro Preto, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Filosofia. Linha de pesquisa: Interfaces da Estética Orientador: Prof. Dr. Bruno A. Guimarães Universidade Federal de Ouro Preto Ouro Preto 2012

3 UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO INSTITUTO DE FILOSOFIA, ARTES E CULTURA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA Dissertação intitulada Para uma relação artística consigo: a questão do sujeito nos últimos escritos de Michel Foucault, de autoria de Débora Chaves de Lima, aprovada pela banca examinadora constituída pelos seguintes professores: Prof. Dr. Bruno Almeida Guimarães - IFAC/UFOP - Orientador Prof. Dr. Olímpio José Pimenta Neto - IFAC/UFOP Prof. Dr. Hélio Rebello Cardoso Júnior IF/UNESP Prof. Dr. Gilson de Paulo Moreira Iannini Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Estética e Filosofia da Arte IFAC/UFOP Ouro Preto, março de 2012.

Para minha mãe, Lenilda Chaves de Lima, minha irmã, Denise Chaves de Lima, meu sobrinho, Pedro Augusto Chaves de Lima Macias e em memória de meu pai, Domingos Bueno de Lima. 4

Para a pequenina e amada vida que esperamos... 5

6 AGRADECIMENTOS Minha sincera gratidão: Aos meus queridos pais e à minha querida irmã, pelo gigantesco prazer da convivência, da aprendizagem e do amor a mim concedidos. Ao meu esposo Fabrício, pela doce, divertida e carinhosa companhia. Aos meus professores, por suas admiráveis e singulares competências. Aos colegas do IFAC, funcionários e companheiros de classe, pela diversão das conversas em bares, corredores e ladeiras ouropretanas. Ao meu orientador, Bruno Almeida Guimarães, pela calma e sábia orientação. Este trabalho recebeu um importante apoio financeiro da Universidade Federal de Ouro Preto, através da PROPP Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa.

7 Quanto ao motivo que me impulsionou foi muito simples. Para alguns, espero, esse motivo poderá ser suficiente por ele mesmo. É a curiosidade em todo caso, a única espécie de curiosidade que vale a pena ser praticada com um pouco de obstinação: não aquela que procura assimilar o que convém conhecer, mas a que permite separar-se de si mesmo. De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece? Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a refletir. Michel Foucault

8 RESUMO Este estudo tem sua origem nas reflexões de Foucault sobre a estética da existência, mais especificamente, na questão do sujeito moral enquanto um compositor de sua própria vida. A partir dos últimos escritos de Foucault, esse trabalho pretende apresentar a problematização sobre o sujeito mantendo como pontos importantes da questão a liberdade, a verdade e o poder. Palavras-chave: Estética da Existência, Subjetividade, Verdade, Liberdade e Poder.

9 ABSTRACT This study has its origin in the thoughts of Foucault on the "aesthetics of existence", more specifically, the question of the moral subject as a "composer" of his own life. From the Foucault s last writings, this work intends to present the questioning on the subject keeping as important points of the issue freedom, truth and power. Keywords: Aesthetics of Existence, Subjectivity, Freedom, Truth and Power.

10 SUMÁRIO INTRODUÇÃO... 11 1. CUIDADO, CONHECIMENTO E TRANSFORMAÇÃO DE SI: a relação entre sujeito e verdade na cultura greco-romana... 16 1.1 - A questão do sujeito no diálogo Alcibíades... 18 1.2 - O sujeito moral no período helenístico... 20 1.3 - Cuidado de si e Conhecimento de si... 23 1.4 - Sujeito, arte, verdade e transformação de si... 30 2. SOBRE O FIM DO CUIDADO DE SI A PARTIR DO CRISTIANISMO E DO PENSAMENTO CARTESIANO... 35 2.1 - As continuidades e descontinuidades de uma moral... 37 2.2 - Os preceitos cristãos... 41 2.3- O conhece-te a ti mesmo cartesiano... 47 2.4- Pensamento e prática de si na modernidade... 50 3. PARA UMA RELAÇÃO ARTÍSTICA CONSIGO... 52 3.1 - Para uma relação consigo mais autônoma e livre... 53 3.2 - O saber como possibilidade de transformação... 57 3.3 - O poder como exercício da liberdade... 62 3.4 - A ética de si como composição de uma obra... 69 4. CONCLUSÃO... 76 BIBLIOGRAFIA... 82 INTRODUÇÃO O relacionamento com o pensamento de Michel Foucault é também um sobrevoo sobre a história do pensamento humano. É um sobressalto diante de uma paisagem gigantesca

11 e complexa, na qual reconhecemos a profunda dedicação, o esforço incansável do autor sobre a obra. Nos últimos retoques dessa excepcional escultura, dessa prosa corajosa, o autor indica aquela que teria sido sua principal perspectiva, a relação entre sujeito e verdade : Meu problema sempre foi o das relações entre sujeito e verdade: como o sujeito entra em um certo jogo de verdade. (FOUCAULT, 2004, p. 274) Tendo em vista seu principal problema, certos campos das experiências humanas tornar-se-iam privilegiados para as reflexões do filósofo, sendo eles, principalmente, o campo do saber, do poder e o da conduta individual: Esses três grandes domínios da experiência só podem ser entendidos uns em relação aos outros, e não podem ser compreendidos uns sem os outros. (Ibidem, 2004, p. 253) Tal aviso nos adverte sobre o cuidado necessário a tomar nas andanças sobre o pensamento foucaultiano. Para um principiante desavisado, talvez seja suficiente uma arguta leitura sobre A História da Loucura: entre o saber médico que classifica e desclassifica, seria possível entrever poderes permeando as decisões médicas, e entre estas, uma vaga sombra do objeto que estaria no meio ou quem sabe à margem (o louco) o sujeito. Em As Palavras e as Coisas, o que aparecia sob um delicado traço, surge agora sob uma análise mais aparente. A questão do sujeito e as condições que teriam permitido colocá-lo como objeto de estudo são análises destacadas a partir de um vasto campo de saberes cotidianos: a linguagem, o trabalho, a vida. Em Vigiar e Punir, os contornos do sujeito em sua relação com o proibido apareceriam mais visíveis sob o viés do poder, reconhecido então como poder disciplinar. Com o texto O Uso dos Prazeres segundo volume da História da Sexualidade Michel Foucault muda a direção de suas pesquisas e passa a priorizar a questão do sujeito em sua relação consigo, ou, como o próprio filósofo definiria: os modos de subjetivação, os modos das relações de si para si estabelecidas em determinados momentos históricos. Tratava-se de entender o que o indivíduo pensava sobre si mesmo a partir de certos discursos instituídos como verdadeiros. Tendo em mãos uma herança nietzschiana o método genealógico o filósofo analisaria tal

12 questão a partir de uma premissa necessária: não há um sujeito substancial, universal. A ideia de sujeito seria importante na medida em que, a partir dela, poderíamos analisar criticamente como, num determinado momento histórico, o homem pôde pensar sobre si mesmo, relacionar-se consigo. Tratava-se então de introduzir de novo o problema do sujeito que eu havia mais ou menos deixado de lado em meus primeiros estudos, e de tentar seguir os caminhos e as dificuldades através de toda a sua história. (Ibidem, 2004, p. 262) Tratava-se, sobretudo, de aproximar a vista sobre o sujeito: aquele que pensa sobre si e age para si a partir de uma certa verdade, de um determinado discurso verdadeiro. De posse do principal e constante foco a relação entre sujeito e verdade, Foucault partiria então para um estudo minucioso sobre a Antiguidade e o período Helenístico. A volta ao passado greco-romano se tornaria o distanciamento necessário àquilo que talvez tenha sido uma das características nietzschianas mais presente no pensamento de Foucault: sua constante suspeita frente aos costumes (pensamentos e ações) estabelecidos. O filósofo francês usaria luvas no trato com a História. Tal é o cuidado que um trabalho severamente crítico deveria manter. A cultura grega aparece como momento primeiro a ser analisado, estudos estes que estão apresentados no escrito O Uso dos Prazeres, de 1984. A abordagem sobre o sujeito aparece entrelaçada à questão do desejo: Através de quais jogos de verdade o ser humano se reconheceu como homem de desejo?. (FOUCAULT, 1984, p. 12) Em outras palavras, como o desejo se forma? Sob quais condições ele pode ou deve acontecer? Sob quais imposições? Sob quais liberdades? Diante dessa peculiaridade das questões, Foucault encontraria no cotidiano grego, nos hábitos descritos pela tradição, no dia a dia grego, o espaço privilegiado para seus estudos. A Dietética, a Econômica e a Erótica seriam algumas das principais divisões desse vasto campo de pesquisas acerca do cotidiano da cultura Antiga.

13 No terceiro volume da obra História da Sexualidade O Cuidado de Si é o pensamento helenístico que servirá como importante fonte de pesquisas para o filósofo. Foucault, cercando agora o cotidiano romano, distingue mudanças (e continuidades) importantes no modo de subjetivação dessa sociedade. Semelhanças e modificações se encontram num todo que não mais poderá ser reconhecido como uma continuidade da cultura grega. Tratava-se de reconhecer rupturas, encontros e desencontros. Mas tratava-se ainda, principalmente, de manter a mesma questão acerca do sujeito: (...) convinha pesquisar quais são as formas e as modalidades da relação consigo através das quais o indivíduo se constitui e se reconhece como sujeito. (Idem, 1984, p. 11) Tais questões, Foucault as abordaria em várias de suas entrevistas concedidas e nos cursos ministrados e compilados em livros, tais como, A Hermenêutica do sujeito, Subjetividade e Verdade e Do Governo dos Vivos. Este estudo se limita, principalmente, a esse terceiro e último campo de pesquisas desenvolvido pelo filósofo francês: a questão do sujeito, os modos de subjetivação priorizados em determinadas épocas históricas. Tal problema será analisado aqui a partir de uma hipótese: Foucault parece privilegiar, num determinado modo do relacionar-se consigo, desenvolvido em determinados momentos históricos, certos aspectos artísticos. Mas, de que espécie de arte se trata? Como o filósofo faz essa união entre arte e modos de subjetivação? Por que ele o faz? Acredita-se aqui que a questão da liberdade é o alicerce de toda essa problemática, quiçá, de todo pensamento foucaultiano. Trata-se de reconhecer em tais particularidades relacionadas à arte, condições favoráveis à liberdade do indivíduo. Se tal experiência foi possível num determinado povo, num determinado momento da história, seria necessária uma observação mais criteriosa acerca das peculiaridades dessa relação consigo. De que maneira a arte poderia contribuir para a liberdade do indivíduo? Como a arte atuaria nesse jogo entre sujeito e verdade? Mais importante: como seria a relação consigo de um

14 sujeito que manteria como parâmetros principais certos aspectos artísticos na conduta moral? Portanto, importa aqui a demonstração de como, ao longo dos escritos e entrevistas concedidas, Foucault une arte e ética de si. Tal união serviria como experiência possível e favorável àqueles que desejassem uma vida mais autêntica e livre. O ponto de partida encontra-se sobre os dois tipos de relação consigo estabelecidas na cultura greco-romana: o conhecimento de si e o cuidado de si. No primeiro capítulo tais relações são analisadas e precedidas por uma análise ainda mais elementar: o sujeito moral na Grécia Antiga e o sujeito moral na cultura helenística. Para o desenvolvimento ulterior será preciso comparar as diferenças, as modificações, ocorridas na própria concepção que o sujeito tinha de si: o que é o si para o homem grego? E para o homem helenístico? Quais as verdades estabelecidas de si para si e de si para o exterior que influenciariam o pensamento do sujeito e suas ações? Tais análises nos conduziriam a uma importante questão nesse capítulo: quais seriam as peculiaridades da relação sujeito e verdade problema caro a Foucault na cultura greco-romana? O segundo capítulo abarca as reflexões realizadas por Foucault sobre dois modos de subjetivação que teriam sido considerados importantíssimos para a cultura ocidental: o relacionamento consigo cristão e o cartesiano. De acordo com Foucault, a partir desses dois tipos de relações de si para si, os sujeitos passariam, cada vez mais, a se distanciar dos parâmetros artísticos anteriormente estabelecidos, em outras palavras, os sujeitos se distanciaram, cada vez mais, de sua própria liberdade. O poder pastoral e a relação sujeito (o que conhece) e objeto (o próprio sujeito) o modelo cartesiano conduziriam os modos de subjetivação à questão da sujeição, da obediência, do distanciamento de si. Importará compreender melhor quais os aspectos dessas relações consigo que teriam sido contrárias à arte para si.

15 No terceiro e último capítulo, a hipótese anteriormente levantada, qual seja, a de que Foucault parece privilegiar certos aspectos artísticos nas relações de si para si, passa a ser analisada tendo em vista os dois campos de estudos anteriormente abordados pelo filósofo: saber e poder. Como Foucault teria advertido, só seria possível entender um campo, tendo em vista os dois outros. Dessa forma, os aspectos artísticos vislumbrados nos modos de subjetivação passam a ser analisados pelas perspectivas do poder e do saber. Acredita-se aqui que os últimos escritos de Foucault (a questão dos modos de subjetivação) seriam um arremate das questões anteriores. O filósofo vislumbraria uma espécie de saída para as imposições, para as sujeições estabelecidas ao longo dos tempos. Tornar-se-ia fundamental para o indivíduo constituir sua própria liberdade. Para isso, o ponto de partida deveria ser o próprio indivíduo: Não se deve passar o cuidado dos outros na frente do cuidado de si; o cuidado de si vem eticamente em primeiro lugar, na medida em que a relação consigo mesmo é ontologicamente primária. (FOUCAULT, 2004, p. 271) O passeio proposto neste estudo é limitado, curto, frente ao enorme montante escrito, problematizado, por Michel Foucault. Mas talvez possamos sentir algum prazer nesse simples caminhar. Importa escutarmos por um breve momento a voz de Foucault que se configura numa grande obra sobre a liberdade. CAPÍTULO I

16 CUIDADO, CONHECIMENTO E TRANSFORMAÇÃO DE SI: A RELAÇÃO ENTRE SUJEITO E VERDADE NA CULTURA GRECO-ROMANA A volta ao passado greco-romano representaria para Michel Foucault uma nova perspectiva sobre sua familiar questão: a relação entre sujeito e verdade. Analisada anteriormente através dos meandros do saber e do poder, o filósofo a destacaria a partir de um

17 aspecto mais elementar: as relações de si para si. Tratava-se, portanto, de uma reflexão mais minuciosa sobre o pólo sujeito, um estudo em torno da lenta formação, durante a Antiguidade, de uma hermenêutica de si. (FOUCAULT, 1984, p. 11) Foucault parte então para a História e passa a averiguar na Antiguidade Grega e no período Helenístico os modos de relação de si para si ali estabelecidos. Inúmeros escritos seriam analisados pelo pensador francês, recebendo maior destaque aqui o diálogo Alcibíades de Platão e algumas obras de Sêneca, Epicuro e Marco Aurélio. Consideração importante a fazer, caminha-se com Foucault, nesse momento de suas pesquisas, sobre uma vastíssima paisagem do cotidiano greco-romano. Os hábitos na lida com a casa, o cuidado com o corpo e a satisfação dos prazeres serviriam como campos profundamente profícuos para suas análises. O ethos grecoromano receberia a mira criteriosamente genealógica de Michel Foucault. Importava tornar visíveis determinados aspectos das relações de si para si estabelecidas na cultura Antiga, tais como: o que era, para o indivíduo da Grécia e Roma Antigas, o eu? De que forma esse eu se constituía tendo em vista os inúmeros discursos que o circundavam? Ou seja, como os Antigos se constituíam como sujeitos? Exercício cauteloso e caracterizado pelos matizes da suspeita entre outras, sua herança nietzschiana para o filósofo francês, o retorno ao passado greco-romano representaria uma nova fonte de críticas sobre seu próprio tempo e, principalmente, uma nova perspectiva, uma nova oportunidade de manter com o conhecimento uma relação pautada, principalmente, na transformação de si. 1.1 - A questão do sujeito no diálogo Alcibíades

18 No curso proferido em 1982 no Collège de France, A Hermenêutica do Sujeito, Foucault mantém como um dos fios condutores de suas reflexões o diálogo Alcibíades, de Platão. A análise tem seu início numa questão levantada por Sócrates e direcionada a Alcibíades: entre morrer logo ou ter uma vida longa sem nenhum brilho, qual opção Alcibíades escolheria? (...) preferiria morrer hoje a levar uma vida que não me trouxesse mais do que já tenho. (FOUCAULT, 2006, p. 43) A opção escolhida levaria Sócrates a entender que, diante da velha questão da educação grega 1, Alcibíades mantinha-se insatisfeito com apenas os privilégios de sua linhagem nobre. Alcibíades não quer contentar-se com isto. Quer voltar-se para o povo, quer tomar nas mãos o destino da cidade, quer governar os outros. (Ibidem, 2006, p. 44) Para Sócrates, essa escolha de Alcibíades representa o início de um novo e importante problema: para governar os outros é preciso saber governar a si mesmo e para governar a si mesmo, é preciso antes saber o que é o si mesmo. O que é este sujeito, que ponto é este em cuja direção deve orientar-se a atividade reflexiva, a atividade refletida, esta atividade que retorna do indivíduo para ele mesmo? O que é este eu?. (Ibidem, 2006, p. 50) A primeira resposta a essa pergunta, apresentada por Foucault com algumas peculiaridades, permite uma indagação importante: no pensamento platônico (e por esta expressão abarca-se um período importantíssimo da história ocidental), como o eu era reconhecido? De modo geral, quando o corpo faz alguma coisa, há um elemento que se serve do corpo. Mas que elemento é este que se serve do corpo? Evidentemente, não é o próprio corpo: o corpo não pode servir-se de si. Diremos que quem se serve do corpo é o homem, o homem entendido como um composto de alma e corpo? Certamente não. Pois, mesmo a título de simples componente, mesmo supondo que ele esteja com a alma, o corpo não pode ser, nem a título de adjuvante, o que se serve do corpo. Portanto, qual é o único elemento que, efetivamente, se serve do corpo, das partes do corpo, dos órgãos do corpo e, por consequência, dos instrumentos e, finalmente, se servirá da linguagem? Pois bem, é e só pode ser a alma. (FOUCAULT, 2006, p. 69) 1 - Referência feita por Foucault acerca da escolha de Aquiles: morrer ainda jovem, mas tornando-se um herói na Guerra de Tróia, ou voltar a sua terra natal e ter uma longa vida, mas não receber nenhuma glória.

19 Portanto, o eu 2 seria reconhecido como alma. Mas a resposta não é simples assim. De acordo com Foucault, o modo como o eu está apresentado no Alcibíades é diferente de outros diálogos platônicos, tais como, na Apologia, no Crátilo e no Fédon. No Alcibíades, a ideia de eu como alma se aproximaria muito do que é exposto na República, mas ainda não seria idêntica. No Fédon a alma aparece como prisioneira do corpo em vias de ser libertada, no Fedro ela é equiparada a um atrelamento de cavalos alados que seria preciso conduzir na boa direção e na República ela é arquiteturada segundo uma hierarquia de instâncias que seria preciso harmonizar. (FOUCAULT, 2006, p. 70) No Alcibíades a alma é reconhecida (...) unicamente enquanto sujeito da ação, a alma enquanto se serve [do] corpo, dos órgãos [do] corpo, de seus instrumentos, etc. (Ibidem, 2006, p. 70) Esse se servir, traduzido a partir do verbo grego khrêsthai e do substantivo khrêsis, abarcaria um sentido muito mais complexo do que a simples ideia de instrumentalização. Khrêsthai (khráomai: eu me sirvo) designa, na realidade, vários tipos de relações que se pode ter com alguma coisa ou consigo mesmo. (Ibidem, 2006, p. 70) A alma como substância é substituída pela ideia de sujeito de ação. No diálogo Alcibíades, o homem (o seu eu ) aparece como ser que se relaciona consigo e com os outros; ser que assume determinada postura diante de si, dos outros e dos objetos que o cercam. Pode-se dizer que, quando Platão se serviu da noção de khrêsis para buscar qual é o eu com que nos devemos ocupar, não foi, absolutamente, a almasubstância que ele descobriu, foi a alma sujeito. (Ibidem, 2006, p. 71) Portanto, para uma primeira aproximação do homem grego, ou ainda, do homem enquanto perspectiva do pensamento platônico nos limites estabelecidos pelo diálogo Alcibíades, é preciso antevê-lo (o homem) como um ser que age. Um ser que possui uma alma com finalidades práticas, um sujeito de ação. Tendo em vista a intenção de Alcibíades, qual seja, o governo da cidade, Sócrates reivindicaria antes o cuidado de si mesmo, o cuidado com a alma, condição 2 - Na Grécia Clássica, todo indivíduo possui uma alma (psyche), a qual, porém, não deve ser entendida como um eu, como um indivíduo psicológico. (ORTEGA, 1999, p. 71-72)

20 obrigatória para um bom governo dos outros. De fato, o homem enquanto sujeito de ação emerge do diálogo platônico a partir de uma preocupação política: o governo dos outros. Essa estreita relação entre homem e cidade, entre o governo de si e o governo dos outros, possibilitaria a busca do si mesmo e também um encontro com os outros, com a cidade. Ponto importante a ser destacado, Alcibíades fazia parte de um grupo seleto de Atenas: Jovens que, desde a mocidade, são devorados pela ambição de prevalecer sobre os outros, sobre seus rivais na cidade, assim como sobre seus rivais de fora da cidade, em suma, de passar a uma política ativa, autoritária e triunfante. (Ibidem, 2006, p. 55) A verdade estabelecida para Alcibíades através de Sócrates, qual seja, que o homem é um sujeito de ação, estaria vinculada desde já ao poder. Homem (sua alma) e cidade se encontram, se confundem, desde que, a partir daquele, o poder seja exercido. O eu identifica-se com a cidade quando a intenção é governar. Trata-se, pois, de um mundo em que se problematizam as relações entre o status de primeiros e a capacidade de governar: necessidade de ocuparse consigo mesmo na medida em que se há que governar os outros. (Ibidem, 2006, p. 56) A busca pelo eu inicia-se no momento em que um outro elemento está em jogo: o governo da cidade. 1.2- O sujeito moral no período helenístico Paralelamente aos estudos da Grécia Clássica, Michel Foucault volta-se para o período helenístico, séculos I e II d. C. O estoicismo e o epicurismo, entre outras correntes filosóficas dessa época, são analisados e comparados aos estudos clássicos. A partir desse novo tempo histórico, Foucault ressaltaria certos rompimentos ocorridos nas novas relações de si para si, especificamente, no cuidado que se tem consigo. Quando digo que se rompem, não quero com isto significar, e o enfatizo de uma vez por todas, que se rompem naquele

21 momento como se algo de brutal e súbito tivesse ocorrido (...). (Ibidem, 2006, p. 102) De acordo com Foucault, essas mudanças decorreram numa longa evolução e já se apresentavam nas obras de Platão. No Alcibíades, o cuidado de si seria determinado por três condições: 1ª- quem deve ocuparse consigo são apenas os jovens aristocratas destinados a exercer o poder, 2ª- o cuidado consigo estaria profundamente vinculado ao exercício do poder, 3ª- o cuidado de si seria um conhecimento de si. Questões fundamentais que serão abordadas posteriormente, o cuidado de si e o conhecimento de si tornam-se importantes para que seja possível a averiguação de um elemento: o eu. Nos séculos I e II, as condições pelas quais o cuidado de si se dava se apresentavam modificadas: Primeiro, ocupar-se consigo tornou-se um princípio geral e incondicional, um imperativo que se impõe a todos, durante todo o tempo e sem condição de status. Segundo, a razão de ser de ocupar-se consigo não é mais uma atividade bem particular, a que consiste em governar os outros. Parece que ocupar-se consigo não tem por finalidade última este objeto particular e privilegiado que é a cidade, pois se se ocupa consigo agora, é por si mesmo e com finalidade em si mesmo. (FOUCAULT, 2006, p. 102) No Alcibíades, se o eu era reconhecido pela alma, e alma enquanto sujeito de ação, o cuidado consigo, o cuidado desse eu, coincidia-se com o cuidado da cidade. A cidade mediatizava a relação de si para consigo, fazendo com que o eu pudesse ser tanto objeto quanto finalidade, finalidade, contudo, unicamente porque havia a mediação da cidade. (Ibidem, 2006, p. 102) No período helenístico há uma modificação no cuidado de si. Como condição dessa nova mudança, o pensamento sobre o próprio eu apresentaria outro formato. O eu apareceria tanto como objeto do qual se cuida, algo com que se deve preocupar, quanto, principalmente, como finalidade que se tem em vista ao cuidar-se de si. (Ibidem, 2006, p. 103) Quando se cuida de si é para si mesmo, não para a cidade. Reconhecese, portanto, uma atenção crescente sobre si mesmo, a importância de se respeitar a si mesmo, não simplesmente em seu próprio status, mas em seu próprio ser racional. (FOUCAULT, 1985, p. 46-47) Poderíamos reconhecer então as marcas iniciais do

22 individualismo ocidental? Poderíamos também associar o eu às cercanias exclusivas do indivíduo? De acordo com Foucault, tais aproximações não seriam de todo erradas, mas o que se evidenciaria mais claramente era a intensidade das relações consigo, isto é, das formas nas quais se é chamado a tomar a si próprio como objeto de conhecimento e campo de ação para transformar-se, corrigir-se, purificar-se, e promover a própria salvação. (Idem, 1985, p. 48) A diferença, a mudança ocorrida, entre o eu grego e o eu romano poderia ser assim destacada: na Grécia Clássica, a ideia de si era intrínseca à ideia de cidade, de governo da cidade. O eu era pensado sob a perspectiva do sujeito de ação quando, o que se tinha em vista, era a possibilidade de governar a cidade, de governar os outros. Na cultura romana, devido a fatores políticos e matrimoniais ponto que será desenvolvido posteriormente o eu passaria a ser pensado sob a perspectiva do próprio indivíduo: a finalidade pela qual se pensava sobre o eu era o próprio eu. O eu enquanto sujeito moral definia-se pelo bom governo de si mesmo. Tais modificações sobre a noção de eu tornar-se-iam grandes mudanças nas relações estabelecidas de si para si. O modo mesmo como o sujeito podia ou devia direcionar o pensamento sobre si seria determinante ainda para sua conduta na sociedade. Suas obrigações de cidadão, de marido, de amigo, etc., estariam diretamente ligadas ao pensamento estabelecido sobre si, sobre essa identidade que, pela extensão de sua influência, estabeleceria também para o próprio indivíduo os limites de sua liberdade. 1.3- Cuidado de si e conhecimento de si

23 Para Michel Foucault, a teoria do cuidado de si platônico estaria descrita principalmente no diálogo Alcibíades. Sócrates, utilizando o método maiêutico com seu interlocutor, faz com que este chegue à seguinte conclusão: é preciso cuidar bem de si mesmo, é preciso saber se governar para poder governar bem os outros. Mas do que se trata o cuidado de si? Que importância essa teoria assume nos estudos foucaultianos sobre os modos de subjetivação? No início do curso A Hermenêutica do Sujeito 3, Foucault anuncia: A questão que apreciaria abordar neste ano é a seguinte: em que forma de história foram tramadas, no Ocidente, as relações que não estão suscitadas pela prática ou pela análise histórica habitual, entre estes dois elementos, o sujeito e a verdade. (FOUCAULT, 2006, p. 4) Trata-se de uma investigação genealógica sobre os modos de subjetivação, sobre como, a partir das relações estabelecidas de si para si, o homem teria se conduzido diante de si mesmo e diante dos outros. Trata-se, portanto, de uma investigação bastante familiar para Foucault já que, os dois elementos, sujeito e verdade, representariam o principal foco do filósofo francês desde seus primeiros escritos. Tendo em vista esse projeto principal, o cuidado de si surge como campo favorável de investigação quando, o que se pode analisar nesta noção grega é a preocupação que se tem consigo: o quanto o indivíduo se volta para si e se ocupa consigo, o quanto ele cuida de si mesmo e o quanto, a verdade que o cerca, pode ou não contribuir para uma existência mais livre. Para Foucault, manter o Cuidado de Si como campo profícuo de suas investigações, parecia ser paradoxal e sofisticado pelo menos em relação aos escritos de Platão já que, a noção que teria circundado as questões sobre o sujeito a princípio, o sujeito platônico teria sido o preceito délfico conhece-te a ti mesmo. Há uma sobreposição dinâmica, um apelo recíproco entre gnôthi seautón e a epiméleia heautoû 3 - Curso no Collège de France que, junto com o curso Subjetividade e Verdade, representam os estudos preparatórios para A História da Sexualidade

24 (conhecimento de si e cuidado de si). Esta sobreposição, este apelo recíproco, é, creio, característico de Platão. (Ibidem, 2006, p. 87) Quando, no diálogo entre Alcibíades e Sócrates, o eu é colocado em destaque, é para que Alcibíades saiba qual o objeto que ele deve cuidar para que possa então governar bem a cidade. Saber (conhecer) o que é o eu parece ser, portanto, o ponto de partida para o cuidado de si. De posse de sua própria alma, alma enquanto sujeito de ação, seria preciso a partir daí ter uma boa tékhne para viver, uma boa técnica para cuidar de si mesmo. Com essas indicações para Alcibíades, Sócrates seria conhecido como o mestre do cuidado de si: Esta, portanto, é a ordem pela qual os deuses confiaram a Sócrates a tarefa de interpelar as pessoas, jovens e velhos, cidadãos ou não, e lhes dizer: ocupai-vos com vós mesmos. Esta, a tarefa de Sócrates. (Ibidem, 2006, p. 9) Sendo o cuidado de si (epiméleia heautoû) uma noção familiar para os gregos, Sócrates a caracterizaria pelo preceito ainda mais familiar dos atenienses: o preceito délfico conhece-te a ti mesmo. O cuidado de si se tornará o solo, o fundamento a partir do qual se justifica o imperativo conhece-te a ti mesmo. (Ibidem, 2006, p. 11) Quando Sócrates incita Alcibíades a olhar mais para si mesmo, a cuidar melhor de si, ele também invoca seu discípulo a conhecer este si mesmo que é preciso cuidar. Essas abordagens sobre a sobreposição entre cuidado e conhecimento de si estão apresentadas principalmente no curso A Hermenêutica do Sujeito. Como seria possível esse conhecimento sobre si? Como se dá esse tipo de conhecimento? Sócrates se apropria do velho recurso da metáfora, a metáfora do olho, para que Alcibíades possa entender a ideia de conhecimento de si. Ora, se quisermos saber como a alma, posto que sabemos agora que é a alma que deve conhecer-se a si mesma, pode conhecer-se, tomemos o exemplo do olho. Sob que condições e como um olho pode se ver? (Ibidem, 2006, p. 87) A conclusão obtida é que o olho se vê no princípio da visão. (Ibidem, 2006, p. 88) O olho se vê em si mesmo, mas não como um reflexo de si a partir de outro olho, mas pelo princípio mesmo que permite a visão. Ou seja, é

25 preciso pertencer à mesma natureza, é preciso ter uma identidade de natureza para que um homem possa conhecer o que ele é. Essa relação de identidade realiza-se pelo reconhecimento do princípio que constitui a natureza da alma, qual seja, o pensamento e o saber. Mas que elemento, que princípio, está no pensamento e no saber e que, pela identidade, a alma poderá conhecer-se? É o elemento divino: Ele faz do conhecimento do divino a condição do conhecimento de si. (...): para ocupar-se consigo, é preciso conhecer-se a si mesmo; para conhecer-se, é preciso olhar-se em um elemento que seja igual a si; é preciso olhar-se em um elemento que seja o próprio princípio do saber e do conhecimento; e este princípio do saber e do conhecimento é o elemento divino. Portanto, é preciso olhar-se no elemento divino para reconhecer-se: é preciso conhecer o divino para reconhecer a si mesmo. (FOUCAULT, 2006, p. 89) O conhecimento de si (platônico) destacar-se-ia do cuidado de si quando, o que podemos reconhecer no primeiro, é uma relação consigo estabelecida a partir de uma análise, de um uso da razão voltada para si mesma. O exercício sobre si parte de um exercício da alma (da razão) que desemboca numa teoria sobre o homem. O homem, essencialmente racional, realiza-se, exercita-se, a partir do uso correto da razão. Cuidar de si é também se conhecer, entender que o homem possui um elemento divino, o pensamento. Mas é preciso cautela nessas reflexões. Em alguns textos, aos quais teremos ocasião de retornar, é bem mais como uma espécie de subordinação relativamente ao preceito do cuidado de si que se formula a regra conhece-te a ti mesmo. (Ibidem, 2006, p. 7) A razão volta-se sobre si mesma, no conhece-te a ti mesmo, para que o indivíduo possa cuidar bem de si, e no caso de Alcibíades de um modo geral, da juventude grega masculina o cuidado de si surge como necessidade de uma boa atuação política. Foucault apresenta o cuidado de si a partir de três características: 1- o cuidado de si representa uma certa maneira de estar no mundo, de agir, de relacionar-se consigo e com os outros. 2- o cuidado de si é também uma forma de atenção consigo mesmo: é preciso voltar a atenção para o próprio pensamento. 3- o cuidado de si designa também algumas ações que se tem para consigo, ações pelas quais nos assumimos,

26 nos modificamos, nos purificamos, nos transformamos e nos transfiguramos. (Ibidem, 2006, p. 14) Nas análises sobre o Cuidado de Si, tal como será apresentado nos livros O Uso dos Prazeres e O Cuidado de Si, o que está em evidência é um exercício de si fundamentado principalmente na prática do pensamento, do saber. É a razão voltada para as questões do cotidiano. Tendo como objetivo uma vida dotada de mais poder sobre si e sobre os outros, certas práticas do cotidiano tornar-se-iam também exercícios para esse mesmo ideal. O bom domínio sobre o próprio corpo, sobre a casa e sobre o amor seriam os indícios necessários de um bom governante. No segundo volume da História da Sexualidade, O Uso dos Prazeres, Foucault inicia suas análises a partir de uma questão mais específica: a questão do desejo, do prazer, dos aphrodisia. Através de quais jogos de verdade o ser humano se reconheceu como homem de desejo? (FOUCAULT, 1984, p. 12) Com essa especificidade, o caminho das pesquisas se apresentaria muito mais extenso e complexo, já que se trata, efetivamente, de um estudo das formas e transformações de uma moral. (Ibidem, 1984, p. 26) Ressaltando a ambiguidade da palavra moral, Foucault a insere numa perspectiva bastante peculiar. Entendida a princípio como um conjunto de valores e regras de ação propostas aos indivíduos e aos grupos por intermédio de aparelhos prescritivos diversos (Ibidem, 1984, p. 26), de acordo com o filósofo, ela poderia ser também analisada pelo comportamento real dos indivíduos em relação às regras e valores que lhes são propostos. (Ibidem, 1984, p. 26) É a partir dessa segunda perspectiva que o cuidado de si pode ser melhor visualizado: Com efeito, uma coisa é uma regra de conduta; outra, a conduta que se pode medir a essa regra. Mas, outra coisa ainda é a maneira pela qual é necessário conduzir-se isto é, a maneira pela qual se deve constituir a si mesmo como sujeito moral, agindo em referência aos elementos prescritivos que constituem o código. (FOUCAULT, 1984, p. 27) Diante das várias prescrições estabelecidas, existiriam diversas maneiras do indivíduo conduzir-se, de dar um estilo próprio às suas ações, de tornar-se um sujeito de

27 ação a partir de si mesmo, de um exercício de si. Tratava-se de uma tentativa constante de autotransformação, de modificação de si, tendo em vista uma boa condução da própria vida: Ora, parece, pelo menos numa primeira abordagem, que as reflexões morais na Antiguidade grega ou greco-romana foram muito mais orientadas para as práticas de si, e para a questão da askesis, do que para as codificações de condutas e para a definição estrita do permitido e do proibido. (FOUCAULT, 1984, p. 30) Importava antes saber governar bem a própria vida. Esses exercícios de si, Foucault os destacaria a partir de três grandes campos do cotidiano: o da Dietética (relação do indivíduo com o próprio corpo), da Econômica (o homem enquanto chefe de família) e da Erótica (o homem e o rapaz na relação de amor). Na Dietética, na relação estabelecida entre si mesmo (sua alma) e seu próprio corpo, o homem poderia exercitar o bom governo de si e dos outros. Este exercício se dava quando, o que se colocava em prática, era o controle firme dos apetites, a demarcação de uma medida equilibrada, de uma justa medida. A experiência desse controle, dessa medida, se estenderia ao campo da moral, no exercício de uma firmeza moral. Mas é também porque o rigor de um regime físico, com a resolução que é exigida para segui-lo, demanda uma indispensável firmeza moral, e ela permite fazê-lo. (Ibidem, 1984, p. 95) Não se tratava de uma aceitação amedrontada diante de códigos universalistas, nem se tratava de uma distinção entre boas e más ações. Essa firmeza diante dos apetites, o cuidado dedicado à saúde do corpo, mantinha-se muito mais pela experiência que se podia fazer de si do que por uma obediência cega às regras. O regime não é para ser considerado como um corpo de regras universais e uniformes; é, antes de mais nada, uma espécie de manual para reagir à situações diversas nas quais é possível encontrar-se; um tratado para ajustar o comportamento de acordo com as circunstâncias. (Ibidem, 1984, p. 97) O cuidado com o corpo inseria-se portanto numa experiência muito mais complexa e rica. Na Econômica, reconhecida pela relação estabelecida no meio familiar, mais especificamente, entre o homem e a família governada por ele e a mulher e suas obrigações

28 enquanto esposa e mãe, destaca-se a equivalência deste meio ao ambiente político e militar: A arte doméstica é da mesma natureza que a arte política ou a arte militar, pelo menos na medida em que se trata, lá como aqui, de governar os outros. (Ibidem, 1984, p. 139) O exercício de ser o chefe de família, de ser um bom chefe de família, estendia-se, portanto, aos campos de batalha e da cidade. O que impera aqui é o exercício da força masculina sobre os outros (sua família e seus adversários) e a obediência feminina reconhecida pela tradição: A temperança do marido diz respeito a uma arte de governar, de se governar, e de governar uma esposa que é preciso conduzir e respeitar ao mesmo tempo, pois ela é, diante do marido, a dona obediente da casa. (Ibidem, 1984, p. 148) Mais uma vez, não se trata de estabelecer o permitido e o proibido, mas de prescrever para o ambiente familiar as condutas específicas de cada um conforme o status reconhecido pela tradição, pelos costumes. A Erótica pode ser reconhecida pela relação de amor entre o homem e o rapaz, mais especificamente, na relação entre dois homens que são considerados como pertencendo a duas classes de idade distintas, e dos quais um, ainda bem jovem, não terminou sua formação, não atingiu seu status definitivo. (Ibidem, 1984, p. 173) Esse campo de relações, reconhecido pela tradição grega, teria sido problematizado a partir de uma preocupação com a formação de uma moral específica: a do rapaz, aquele que ainda estava em formação. É sobre ele que as considerações são formuladas, porque sua juventude representa um estado delicado para o pensamento moral. (FONSECA, 2003, p. 118) De acordo com Foucault, trata-se de colocar como problema a formação do indivíduo preocupado com o futuro governo de si mesmo e dos outros, em outras palavras, de um indivíduo preocupado com sua liberdade. É ainda o tema da estilização de uma liberdade que está presente. (Idem, 2003, p. 118) Segundo Ortega: A moderação exercida pelo homem livre não corresponde a uma lei, à qual o indivíduo se submete, nem a um código que se tenta definir, mas à procura de um estilo, de uma estilização do comportamento configurada segundo os critérios de uma estética da existência, ou seja, das formas por meio das quais o homem se apresenta e se esboça, se esquece ou se desmente ante seu destino de ser vivo e

29 mortal. Moderação é uma questão de escolha, de estilo, de atitude (e não de atos ou de desejos); ela encarna a vontade de dar forma à existência. O indivíduo se constitui como sujeito moral nessa sociedade não mediante a generalização das regras da ação; trata-se antes de uma atitude, um ethos, que visa a individualizar as ações e dotá-las de uma beleza e um esplendor únicos. Através da estilização dessa atitude, o indivíduo dota sua vida de uma forma digna de longa lembrança. (ORTEGA, 1999, p. 75) No terceiro volume da História da Sexualidade, O Cuidado de Si, Michel Foucault direciona suas análises para outro período histórico, os séculos I e II de nossa era. A cultura romana, o ethos romano, destaca-se para que novas em certos casos, as mesmas relações sejam averiguadas. De acordo com o filósofo, certos acontecimentos, novas configurações do contexto sociopolítico teriam sido decisivas para que o homem estabelecesse consigo outro modelo de relação. De um modo geral, o que se percebe é uma acentuação, um aumento da atenção voltada para si mesmo, sobre as exigências advindas da conduta moral do indivíduo. Para dar conta dessa nova acentuação pode-se recorrer a diversas explicações. Podese colocá-la em relação com certos esforços de moralização feitos sob um modo mais ou menos autoritário pelo poder político, esses esforços foram particularmente explícitos e firmados sob o principado de Augusto; e nesse último caso, é verdade que medidas legislativas protegendo o casamento, favorecendo a família, regulamentando a concubinagem e condenando o adultério foram acompanhadas por um movimento de ideias o qual talvez não fosse inteiramente artificial que opunha, ao relaxamento dos tempos presentes, a necessidade de retorno ao rigor dos costumes antigos. (FOUCAULT, 1985, P. 45-46) Mas essa maior preocupação com a conduta moral dos indivíduos ainda não estaria inserida numa tentativa de universalização dos códigos morais, muito menos na intenção de se definir o certo e o errado, o permitido e o proibido. Como já foi ressaltado acima, o que se tornara mais visível na cultura romana foi a atenção voltada para si, uma maior preocupação consigo mesmo, com a conduta moral. Enquanto na Grécia o Cuidado de Si estava voltado para um fim específico, o governo da cidade, em Roma o cuidado de si tornar-se-ia um preceito para a vida inteira. Os textos dos grandes pensadores dessa época evidenciariam a recorrência e a importância do preceito cuida de ti mesmo, tal com Sêneca demonstra nas Cartas a Lucíolo. Também Marco Aurélio experimenta essa mesma pressa em ocupar-se consigo:

30 nem a leitura nem a escrita devem afastá-lo por mais tempo dos cuidados diretos que deve ter com o próprio ser. (FOUCAULT, 1985, p. 52) Mas seria Epicteto o grande representante do cuidado de si. O homem, diferente dos animais, deveria velar por si mesmo, deveria cuidar melhor de si. É, sem dúvida, em Epicteto que se marca a mais alta elaboração filosófica desse tema. O ser humano é definido nos Diálogos, como o ser a quem foi confiado o cuidado de si. (Idem, 1985, p. 52) De fato, tanto o Cuidado de Si como o Conhecimento de Si representavam uma exigência moral que deveria ser colocada sobre si mesmo, que deveria ser exigida de si para si. Mas, importante ressaltar, não se trata de leis para subjugar o homem a partir de preceitos universalistas. O rigor, a exigência severa voltada para si mesmo, fundamentava-se em uma maior liberdade para o homem, em uma vontade de se ter prazer consigo pela beleza de sua vida. Na Grécia, sob a verdade destinada aos cidadãos, aos jovens cidadãos, qual seja, aquela que define o homem como ser racional (seu elemento divino), o jovem ateniense manteria essa mesma verdade como principal condição para o bom governo da cidade, antecedido pelo bom governo de si. Portanto, a verdade estabelecida proporcionaria para si mesmo melhores condições de liberdade, autonomia e prazer. Com as devidas singularidades, tal seria o resultado entre o si a verdade na cultura romana: maior liberdade e prazer consigo. 1.4 - Sujeito, arte, verdade e transformação de si Nos modelos de relação consigo estabelecidos entre gregos e romanos reconhecidos aqui como cuidado e conhecimento de si, considerados em suas singularidades, um ponto apresentar-se-ia como similar nos dois preceitos: o fato de, na relação entre o si mesmo e a verdade, o eu (o indivíduo) sair modificado, transformado, após seu contato com a verdade. Esse processo de modificação de si seria o resultado das

31 inúmeras técnicas, dos vários exercícios diários, estabelecidos de si para si e de um mestre para um discípulo. Entre os cuidados com o corpo, com a casa, com o prazer, outras técnicas de existência proporcionariam aos indivíduos uma espécie de treinamento para que, entre o indivíduo e a verdade que o circunda, aquele pudesse acrescentar à sua existência, cada dia mais, um bom governo de si, uma maior liberdade para si mesmo. Tal seria o processo estabelecido para os jovens atenienses: diante da verdade encontrada pela própria razão, aquela que diz que o homem é um ser racional, caberia aos jovens o bom uso desse elemento divino, o que lhes proporcionaria, efetivamente, uma boa atuação política. Mas, de fato, para exercer o bom uso da razão, seria preciso uma disciplina severa ao longo do dia: o que, com o passar do tempo, provocaria uma transformação do próprio indivíduo. É um traço geral, um princípio fundamental, que o sujeito enquanto tal, do modo como é dado a si mesmo, não é capaz de verdade. E não é capaz de verdade, contudo, a não ser que ele efetue em si mesmo certas operações, certas transformações e modificações que o tornarão capaz de verdade. (FOUCAULT, 2006, p. 234) Essa relação entre o si mesmo e a verdade seria muito diferente daquilo que se configuraria posteriormente quando, entre o indivíduo e a verdade, restaria para aquele, exclusivamente, a apropriação segura de um conhecimento. Essa modificação de si, essa transformação de si pelo contato com a verdade, como já foi salientado, tinha como fim principal um bom governo de si, uma maior liberdade para si, em outras palavras, uma vida melhor, uma vida mais bela. E o indivíduo que alcançava esse bom governo de si, transformava-se em um belo modelo para os outros. Não que os cidadãos tivessem que repetir, copiar, seguir a vida de outro indivíduo. Tratava-se, principalmente, de reconhecer diante da beleza de uma vida bem governada, a possibilidade de essa beleza ser realizada em si mesmo. De fato, a beleza a qual estamos referindo, não manteria os mesmos padrões na Grécia e em Roma. De um lado, temos a beleza reconhecida numa vida bem governada aliada ao tempo certo de adquirir o bom governo da cidade, de uma atuação política de outro, temos a beleza reconhecida através de uma vida inteira bem

32 governada, independente da posição política que se tem. Mas nos dois tipos de relação consigo, Tratava-se de saber como governar sua própria vida para lhe dar a forma mais bela possível (aos olhos dos outros, de si mesmo e das gerações futuras, para as quais se poderá servir de exemplo). Eis o que tentei reconstituir: a formação e o desenvolvimento de uma prática de si que tem como objetivo constituir a si mesmo como o artesão da beleza de sua própria vida. (FOUCAULT, 2003, p. 244) Tal cuidado com a vida, com a existência, receberia, portanto, padrões estéticos. Beleza que seria reconhecida pelo bom governo que se tem consigo. E mais importante: o exercício de composição de uma vida bela resultaria em uma transformação de si. O indivíduo, pelo contato com a verdade, não seria mais o mesmo se quisesse ter uma vida fundamentada nessa mesma verdade. Essas análises sobre os relacionamentos estabelecidos de si para si na cultura greco-romana recairiam sobre um importante problema filosófico, ou ainda, sobre uma questão da própria Filosofia. Vislumbrados a partir de Sócrates e de outros vários pensadores, tais como, Epicteto, Marco Aurélio, Sêneca, os preceitos cuidado e conhecimento de si apresentariam uma forma específica do relacionamento entre o indivíduo e a verdade, entre o sujeito e a verdade: O saber teve um papel diferente no cuidado de si clássico. Há coisas muito interessantes a serem analisadas sobre as relações entre o saber científico e a epimeleia heautou. Aquele que cuidava de si mesmo tinha que escolher dentre todas as coisas que se pode conhecer através do saber científico apenas aquelas relativas a ele e importantes para a vida. (DREYFUS; RABINOW, 1995, p. 269) O cuidado de si representaria, portanto, uma maneira peculiar de usar o pensamento, de refletir, de filosofar. Essa peculiaridade do cuidado de si e de seu correspondente modo de filosofar onde o ser do sujeito se transforma no contato com a verdade encontra-se destacada no início do curso A Hermenêutica do Sujeito, reconhecida pela expressão espiritualidade 4. Enfim, a espiritualidade postula que, quando efetivamente aberto, o acesso à verdade produz efeitos que seguramente são conseqüência do procedimento espiritual 4 - Expressão reconhecida nos escritos de Pierre Hadot

33 realizado para atingi-la, mas que ao mesmo tempo são outra coisa e bem mais: efeitos que chamarei de retorno da verdade sobre o sujeito. Para a espiritualidade, a verdade não é simplesmente o que é dado ao sujeito a fim de recompensá-lo, de algum modo, pelo ato de conhecimento e a fim de preencher este ato de conhecimento. (...) Resumindo, acho que podemos dizer o seguinte: para a espiritualidade, um ato de conhecimento, em si mesmo e por si mesmo, jamais conseguiria dar acesso à verdade se não fosse preparado, acompanhado, duplicado, consumado por certa transformação do sujeito, não do indivíduo, mas do próprio sujeito no seu ser de sujeito. (FOUCAULT, 2006, p. 21) Na espiritualidade o saber seria intrínseco ao modo de vida. É o que podemos reconhecer na expressão: a filosofia como modo de vida. 5 Não que o conhecimento fosse uma espécie de instrumento para uma boa vida, mas sim que, com o cuidado destinado a si mesmo, ser e saber constituíam um elemento apenas. A incorporação do saber a um determinado estilo de vida não se dava pela mera adequação de uma teoria infiltrada nas experiências da vida, trava-se de uma relação onde o sujeito, quando de posse de um saber, já não seria o mesmo sujeito de antes. A obtenção de um saber significaria, ao mesmo tempo, uma mudança de si, uma transformação de si, ou seja, um distanciamento de si mesmo, tendo em vista o que se era antes de obter a verdade. Esse distanciamento de si, essa perda constante de si, paradoxalmente, levaria o sujeito a um encontro consigo mais livre, mais autônomo, mais belo. Essa condição específica na relação entre sujeito e verdade, a transformação do sujeito, seria substituída por uma relação em que o sujeito, no contato com a verdade, reivindicaria para si a posição do conhecedor, do fundador do verdadeiro e do falso. Essa nova relação entre sujeito e verdade teria sua consumação na Idade Moderna, sendo favorecida pelo pensamento cartesiano e um pouco antes, pelo pensamento cristão. Assim, na modernidade, o conhecimento seria o principal e único objetivo a ser alcançado quando da aproximação com a verdade: Isto é, no momento em que o filósofo (...), sem que mais nada lhe seja solicitado, sem que seu ser de sujeito deva ser modificado ou alterado, é capaz, em si mesmo e unicamente por seus atos de conhecimento, de reconhecer a verdade e a ela ter 5 - No mesmo sentido do livro de Pierre Hadot: Philosophy as a Way of Life, de 1995