Mosaico cultural: refletindo sobre o conceito de identidade cultural no filme O Homem do Ano

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Transcrição:

PublICa II (2006) 31-38 Mosaico cultural: refletindo sobre o conceito de identidade cultural no filme O Homem do Ano Tatiana Garcia 1, Maria Helena B. V. da Costa 2 1 2 Bolsista CNPq/PIBIC, Professora Orientadora, Departamento de artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte Resumo Este artigo propõe uma discussão acerca da evolução da identidade cultural ocorrida ao longo da história e que construiu, gradativamente, um novo ser humano e novos conceitos sobre suas práticas socioculturais. Tem como base os estudos de Stuart Hall sobre identidade cultural buscando correlacionálos com a representação fílmica da identidade cultural no filme brasileiro O Homem do Ano (José Henrique Fonseca, 2003). Palavras-chave: Identidade cultural, Pós-modernidade, Cinema brasileiro Abstract This article proposes a discussion about the development of the cultural identity which has been gradually suffering great changes throughout the cultural history and building a new human being and new concepts about cultural and social practices. This article refers to Stuart Hall s studies on cultural identity as a main theorical framework to analyze the Brazilian movie O Homem do Ano (José Henrique Fonseca, 2003). Keywords: Cultural identity, Postmodernity, Brazilian cinema

32 A questão da identidade cultural tomou força na contemporaneidade na medida em que transformações da mais diversa ordem, ao longo do tempo, tornaram o que parecia muito bem compartimentado em incerteza. O ser humano se vê agora em meio a grandes dúvidas, e nesse contexto o processo identitário se parece a um enorme quebra-cabeça, onde as peças misturadas que não se conectam perfeitamente. Nesse sentido, já não basta ordená-lo para que se compreenda a imagem da própria identidade, pois a imagem formada não é definitiva. Na pós-modernidade, ou modernidade tardia, como preferem designá-la alguns autores, a sensação da perda da identidade se torna bem clara. Stuart Hall (2001) reconhece uma evolução do ser e de sua identidade, afirmando que este processo seria o resultado de um deslocamento do sujeito (de si e do mundo social e cultural). Em um processo evolutivo, Hall divide esse sujeito em três tipos. Em um primeiro momento, o autor se refere ao sujeito do Iluminismo, aquele que já nasceria com sua identidade formada e esta, por sua vez, permaneceria intocável, numa espécie de sacralização da mesma. O segundo sujeito citado é o sociológico, para quem a identidade, nesse caso, dependeria de fatores externos para se formar, porém, dentro de um limite, porque ainda haveria uma essência intocável, que seria, na verdade, formadora do indivíduo, conservando a idéia de identidade inata. Na concepção sobre o terceiro sujeito, o sujeito pós-moderno, presente nas últimas décadas do século XX, é abolida a idéia de uma identidade total ou parcialmente imaculada. Na verdade, busca-se ver o ser e sua identidade sob diferentes prismas e vários aspectos. Nesse sentido, o sujeito pósmoderno não possui apenas uma, mas várias identidades, e por isso mesmo não pode mais ser enquadrado sob uma única perspectiva. Poderíamos compará-lo a um retrato cubista, que tanto em sua formação como interpretação busca a compreensão da totalidade através da diversidade de ângulos, procurando ver as coisas de forma mais completa ao considerar seus diferentes pontos de vista. Um homem fragmentado, formado por identidades temporárias, que pode, ser identificado e se identificar com várias posições diferentes e até mesmo contraditórias. Esse processo de descentramento do sujeito remete ao que Hall denomina de jogo de identidades. Pensando nos descentramentos sofridos pelo ser humano ao longo da sua história, Hall procura refletir sobre as grandes inovações que influenciaram o modo de pensar o ser prémoderno e, por conseguinte, o moderno. Numa discussão em que a evolução do pensamento humano é posta em questão, René Descartes (Apud HALL, 2001) se destaca por sua importância e seu pensamento revolucionário. Descartes traz o sujeito cartesiano, dicotomizado em mente e matéria. Com essa definição, o ser humano passa a ser pensado em duas dimensões, surgindo ciências específicas para cada uma delas. A psicologia é um exemplo disso, tendo em vista que é uma ciência para estudar a parte imaterial do ser.

33 O sujeito cartesiano passa por grandes desestabilizações, construindo uma idéia mais complexa da formação da sua identidade. Hall cita cinco: o pensamento marxista, a descoberta do inconsciente por Freud, os estudos de Saussure e de Foucault e, por fim, os movimentos sociais e revolucionários da era moderna. O primeiro trata da impotência do ser diante de sua realidade; mostra um indivíduo preso a uma condição histórica, da qual não pode se libertar e nem transformar, ou seja, dependente das decisões de seus antepassados. Freud contribui com sua descoberta do inconsciente, trazendo a idéia de construção da identidade a partir das experiências vividas e das relações inconscientes feitas pelo indivíduo. Uma influência exterior a partir do interior do sujeito, de sua maneira de perceber o mundo a sua volta. Saussure e Foucault são responsáveis por um descentramento na questão lingüística e social. Saussure mostra-nos que a linguagem é algo preexistente ao indivíduo e por isso ele é obrigado a incorporá-la, aceitando suas regras de significação através de um repasse cultural. Já os estudos de Foucault são voltados para a análise do controle exercido pelas instituições sociais, com seu poder disciplinar sobre as ações do indivíduo. Sendo assim, ambos concordam com o fato de sermos seres social e culturalmente condicionados. Quando Stuart Hall trata da influência dos movimentos sociais, lembra que estes vieram como apelo pelas identidades suprimidas na generalização das classes estabelecidas e que cada uma delas procurava defender sua existência e sua diferença. Isso demonstra uma certa ênfase na individualidade, através da resistência. Os descentramentos trouxeram maior complexidade ao sujeito no que se refere a sua própria identidade, e esta teve que ser considerada em diversos aspectos (social / cultural / biológico). A partir disso a questão seria a da subjetividade do sujeito. Essa nova visão se reflete, por exemplo, nas representações modernistas do início do século XX através do processo de substituição da estética realista por uma forma mais abstrata de representar, carregada de subjetividade. O que revela também uma nova forma de perceber o mundo. Uma nova forma de ver o mundo, impulsionada por uma nova percepção, do espaço e do tempo, decorrente dos avanços tecnológicos dos meios de transporte e comunicação (HARVEY apud HALL, 2001). Com a possibilidade de um maior e mais rápido deslocamento espacial e com a compressão do tempo-espaço as noções sobre a realidade foram sendo gradativamente modificadas. Num mundo interconectado pela globalização, a compressão tempo-espaço (HARVEY apud HALL, 2001) causa grandes efeitos sobre a concepção de identidade cultural. A intenção de uma homogeneização cultural, onde fossem derrubadas as fronteiras que nos separam e o mundo começasse a ser pensado como uma unidade (o que rendeu muita

34 preocupação com relação à dominação de uma cultura sobre as outras), segundo Hall, deu margem a uma nova articulação entre o global e o local. Sabe-se que a globalização é um processo que se distribui de forma desigual, mas que em maior ou menor medida, exerce modificações generalizadas. Há uma permanente troca cultural que nos une e nos distingue. Uma troca que vem desde o processo de migração do pósguerra e que resultou numa mistura étnica numa [...] pluralização de culturas nacionais e de identidades nacionais. (HALL, 2001, p. 83). Hall defende a tese de que não se pode mais pensar em culturas ou identidades culturais puras. O imediatismo e a intensidade através dos quais somos postos em contato com o outro criaram um mundo fragmentado, resultando numa liberdade de identificação. Um pensamento unificado e ao mesmo tempo individualista, dependendo do ponto de vista do observador. A globalização possibilitou ao homem um maior contato com o outro numa interação entre as culturas. É quebrada então a idéia de nacionalidade como natureza essencial, e introduzida a idéia de uma comunidade imaginada. (BENEDICT apud HALL, 2001, p. 51), formada através de uma narrativa, de uma invenção de tradições e mitos aos quais somos condicionados e concebemos como realidade; o que, de acordo com Hall, Gellner chama de teto político. O teto político é definido como um conjunto de práticas culturais que identificariam determinado lugar. Numa tentativa de compartimentar as nações, o termo etnia também passa a ser usado como tentativa de unificação das culturas. Stuart Hall (2001, p.49 e 62) pensa a nação como uma comunidade simbólica e diz que [...] as nações modernas são, todas, híbridos culturais [...], que não podem ser classificadas em raças ou culturas puras e isoladas. Todas as culturas têm um pouco das outras (o que as une), mas, ao mesmo tempo, têm a liberdade de não seguir os padrões culturais estabelecidos pelo conceito de nacionalidade, adaptando uma prática cultural oriunda de outra cultura e criando uma nova (individualismo que as distingue) se enquadrando no que Hall chama de culturas híbridas. Levando em conta que toda teorização sobre pós-modernismo tem como base o contraponto com o modernismo, podemos dizer que Hall dá a entender que o sujeito moderno seria o sujeito cartesiano descentrado pelas influências citadas acima e que sua morte se deu na excessiva fragmentação sofrida principalmente pelo desejo de uma cultura unificada proposta pela globalização. Com isso, o sujeito passou, então, a ter livre acesso a tudo, formando uma nova identidade e caracterizando uma cultura onde as diferenças compõem e moldam um sujeito livre dos conceitos de uma cultura unificada e uma identidade intocável: o sujeito pós-moderno.

35 A representação do sujeito pós-moderno em O Homem do Ano Tomando por base o discurso de Stuart Hall (2001) sobre o sujeito pós-moderno e as culturas híbridas, apresento a seguir uma análise do filme brasileiro O Homem do Ano (José Henrique Fonseca, 2003) com o objetivo de destacar a presença da questão da identidade cultural contemporânea no contexto das formas de representação, entre elas o filme, e sua importância para o entendimento pleno dos diversos discursos que têm se voltado para a influência exercida pelo processo de globalização. O Homem do Ano trata da história de um homem comum do subúrbio carioca, de nome Máiquel, de baixa auto-estima que, ao se envolver num assassinato, torna-se respeitado pela polícia, bandidos e população, passando a ser visto como o herói de seu bairro. Máiquel chega a ser o dono de uma empresa de segurança e a ganhar o prêmio de Homem do Ano, que dá título ao filme. No decorrer do filme vários elementos oriundos de outras culturas e que já foram perfeitamente incorporados à cultura brasileira aparecem. Na seqüência de abertura, por exemplo, aparece em destaque o símbolo do McDonald s, um dos maiores ícones da cultura norte americana e da difusão das empresas multinacionais, numa paisagem tipicamente suburbana, habitada por pessoas de baixa renda. Assim o filme começa a construir um discurso que situa o processo de globalização como generalizado, que atravessa fronteiras e carrega consigo a supervalorização do consumo, por sua vez, apoiada com extrema fluidez pelos meios de comunicação. Percebe-se também a forte influência de palavras estrangeiras, em especial da língua inglesa no cotidiano representado nomes dos personagens, anúncios, fachadas dos estabelecimentos comerciais e, claro, nos produtos industrializados compondo o que Stuart Hall (2001) designa de supermercado cultural. Termo este, muito apropriado, tendo em vista que ao conhecer e se identificar com algo que não pertence a nossa cultura, acabamos seguindo o sistema capitalista de aquisição ou apropriação do objeto de desejo, como se, realmente, comprássemos a cultura do outro, e a todo custo a incorporasse à nossa. Das palavras estrangeiras utilizadas integralmente ou adaptadas destacam-se: Big Fest Midnight, Nato s alumínio, pizza mixta. Isso sem mencionar o nome do protagonista do filme, Máiquel (Murilo Benício), que é a versão aportuguesada de Michael. Máiquel vive num mundo onde todos almejam um lugar ao sol. Tem o desejo de ser alguém, de se destacar socialmente, o que consegue, porém, de maneira inusitada. Sua ascensão social passa a ser impulsionada a partir de suas decisões diante da diversidade de situações que vão ocorrendo no desenrolar da narrativa, adequando sua vida ao momento. Tudo

36 começa a partir do cumprimento de uma aposta. Ao tingir o cabelo, para cumprir uma aposta, Máiquel acaba provocando grandes mudanças em sua vida. Com seu cabelo platinum blonde passa a se ver de maneira diferente, se tornando, como ele mesmo descreve um cara que era ele, mas não era ele, um novo Máiquel. O novo visual de Máiquel é posto pela narrativa como catalisador de uma nova identidade formada por novos posicionamentos e atitudes da personagem. Tornando-se um assassino, Máiquel, surpreendentemente, ao invés de ser punido pelo crime, passa a ser considerado um herói justiceiro pelas pessoas do seu bairro, já que no entender delas ele pode protegê-las do mal. Máiquel passa então a fazer o trabalho que o dentista Dr. Carvalho (Jorge Dória) e seus amigos definem como higiênico e patriótico, eliminando os seus opositores. Na verdade, o elemento mais interessante da personagem (e o que dá margem a discussões) é sua identidade composta por diversos elementos, de diversas culturas. Máiquel é um mosaico cultural, montado com diferentes peças que, mesmo contraditórias, reunidas, conseguem se manter em aparente harmonia. Máiquel é o sujeito que reflete e se adequa ao mundo através da sua identidade fragmentada, aqui representada, basicamente, pela sua aparência e comportamento. O fato de Máiquel só tomar coca-cola, por exemplo, tem um forte significado: juntamente com seu cabelo platinum blonde, a coca-cola seria o meio que a personagem encontra para afirmar sua inserção e posição no mundo globalizado. As latinhas de coca-cola estão presentes de forma excessiva em praticamente todos os momentos de sua vida. As reportagens e programas de TV também aparecem para ilustrar a salada cultural em que se transformou a atualidade. As reportagens, programas e comerciais assistidos por Máiquel são sempre oriundos de outra cultura comercial da faca japonesa Ginsu, novela Samantha, reportagens sobre o presidente dos Estados Unidos e a cotação do dólar e exercem influência sobre este. Exemplo disso são os nomes de sua filha e de sua mascote (um porco), que são referências a programas televisivos. Esse fato dá ênfase ao que Teixeira Coelho (1995) coloca, ao citar Brecht, como cultura do entretenimento. Este novo conceito de cultura se forma, por exemplo, a partir das citações cotidianas que deixam de ser extraídas de livros, sendo agora provenientes de programas ou comerciais televisivos. Uma teoria que designa a televisão como a grande responsável pela modificação cultural ocorrida desde seu surgimento, influenciando no comportamento, estilo, linguagem, práticas culturais, percepção do tempo e espaço e a maneira de representar de seus espectadores. O porquinho Bill, que desempenha um papel de destaque na história, tem também uma identidade confusa a exemplo da maioria das personagens do filme. Biologicamente é um porco, culturalmente é um cachorro e, mais que isso, é o companheiro de Máiquel que até

37 propõe acordos com o animal e, algumas vezes, o trata como se fosse um ser humano que entendesse o que ele diz. Seu nome, em homenagem ao ex-presidente norte-americano Bill Clinton, é colocado logo após uma reportagem sobre a vinda de Clinton ao Brasil, onde este posa tanto de sambista, com um tamborim na mão, em meio aos integrantes da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, quanto de jogador de futebol, batendo um pênalti ao lado de Pelé. Um representante da cultura norte-americana do porte de Bill Clinton aparece aqui interagindo com símbolos da identidade nacional brasileira (samba e futebol). Dessa forma, o filme constrói um discurso sobre a suposta e tão desejada interação entre as duas culturas. Essa seqüência no filme faz menção a uma proposta de política da boa vizinhança já bem conhecida no âmbito da narrativa fílmica do cinema nacional. O Homem do Ano é composto por misturas e contradições características da pósmodernidade, seja pelas personagens com suas personalidades contraditórias ou pela mistura de épocas e culturas implícitas nas decorações, nos figurinos e nos objetos. As roupas de Cledir (Cláudia Abreu) e Máiquel, por exemplo, remetem aos anos 70, já as roupas e objetos pessoais de Érica (Natália Lage) como, por exemplo, seu almanaque de 1992 nos situa nos anos 90. A confusão temporal apresentada no filme faz referência ao fato de a contemporaneidade, pós-modernidade, ou modernidade tardia não possuir um único estilo, mas sim ser composta por uma mistura destes, construindo um mosaico cultural ao qual o homem foi se adaptando. A possibilidade de acesso a tudo, ao mesmo tempo permitiu que a identidade de Máiquel fosse moldada de acordo com vários fatores, principalmente externos, destruindo conceitos de nacionalidade unificada ou inerente ao indivíduo, resultando num sujeito deslocado de seu tempo e espaço: Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares, e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades se tornam desvinculadas desalojadas de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem flutuar livremente. (HALL, 2001, p. 75). Em vista do discutido acima, entende-se que o sujeito pós-moderno deve possuir características semelhantes às atribuídas à pós-modernidade, não podendo ser dissociado de seu contexto. Se nos dias atuais vivemos em uma troca constante e imediata de informação, conhecimento e práticas culturais, resultando no surgimento de novos tipos de culturas, as quais Hall atribui

38 hibridismo, somos também seres híbridos, flutuando e incorporando as diversas identidades a nossa disposição. No filme essa idéia está representada pelos elementos que indicam a influência e troca de identidades constantes. Máiquel vive uma personagem, um Máiquel temporário, que tem começo e fim. Um acontecimento deu início a uma nova identidade que se transforma e se adequa a acontecimentos decorrentes, mas que pode ser abandonada a qualquer momento. Na verdade, no filme é o que acontece. Fugindo da polícia, Máiquel tinge seus cabelos de preto e parte para um lugar qualquer. Essa cena final é acertiva em seu significado: Máiquel se despe da identidade anterior e busca, então, uma nova maneira de viver que o levará a construir para si uma outra identidade, sem dúvida, não definitiva. Referências HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. TEIXEIRA COELHO, José. Moderno pós-moderno. São Paulo: Iluminuras, 1995. O HOMEM DO ANO. Produção de Flávio R. Tambellini e Leonardo Monteiro de Barros. Direção de José Henrique Fonseca. Rio de Janeiro: Conspiração Filmes / Warner Bros, 2003. Tatiana Garcia Endereço eletrônico: tatig@cchla.ufrn.br / tatigarcia_21@yahoo.com.br Base de pesquisa: Artes Visuais, Cultura e Representação Endereço postal: Departamento de Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Campus Universitário, Natal/RN 59078-970 Brasil