O NOVO ACORDO ORTOGRÁFICO: UM EMBATE ENTRE O ATUAL E A MEMÓRIA. Élcio Aloisio FRAGOSO 1



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Transcrição:

1 O NOVO ACORDO ORTOGRÁFICO: UM EMBATE ENTRE O ATUAL E A MEMÓRIA Élcio Aloisio FRAGOSO 1 Resumo O novo acordo ortográfico já rendeu uma série de discussões sob pontos de vistas bem distintos. O acordo foi assinado em 1990, em Lisboa, Portugal e instituído oficialmente no Brasil através de decretos datados em 1995 e 2008. Passou a vigorar oficialmente no Brasil desde 2009. A partir desta data, o Brasil tem convivido com a dupla ortografia, fato que terá continuidade somente até 31 de dezembro de 2012. A perspectiva deste artigo é a da Análise de Discurso de linha francesa, perspectiva esta amplamente difundida nos trabalhos de Eni Orlandi aqui no Brasil. Palavras-chave: acordo ortográfico; ortografia; linguística Introdução O propósito deste texto é o de apresentar uma reflexão acerca da reforma ortográfica que seja útil a estudantes da área da Educação, da Comunicação Social, de Gestão e Negócios, etc., assinalando mais o aspecto político do que a reforma em si mesma, ou seja, a regra pela regra. Não trataremos aqui de nossa questão do ponto de vista puramente normativo, mas discutiremos o novo acordo ortográfico enquanto um acontecimento linguísticodiscursivo ligado à história da língua nacional. Trata-se, portanto, de um acontecimento que significa muito mais do que simplesmente estar ou não de acordo com tais mudanças, isto é, não é apenas uma questão de concordar ou não com as novas reformas. Antes, levaremos em consideração essas discussões sobre a reforma para uma compreensão sobre os efeitos que tal medida teve em nosso meio, isto é, as interpretações que tal acontecimento provocou. A interpretação que é dada à reforma vincula-se a uma memória de que a nossa língua deve se aproximar, se igualar ao português de Portugal, pois este português, 1 Mestre e doutor em Linguística pela UNICAMP. Professor de Linguística, Língua Portuguesa e Comunicação Empresarial do Centro Universitário Nossa Senhora do Patrocínio.

2 segundo este ponto de vista, é o mais puro, é o mais clássico, no sentido de ser o modelo a ser seguido. Historicamente falando, esta é uma memória que ressoa em nossa língua, visto que ela é defendida por um grupo mais conservador, tradicional do estudo da língua. Dessa perspectiva, a reforma reforça a ideia de unificação, uniformização, padronização do português. No entanto, essa interpretação fica somente numa descrição normativa da língua portuguesa, isto é, o que é fato linguístico, torna-se uma norma, uma regra da língua, em outras palavras, ao fato se sobrepõe a regra. Este texto abordará a reforma ortográfica enquanto um fato, um acontecimento linguístico que será analisado da perspectiva discursiva, conforme anunciamos no início deste texto. Dessa perspectiva, interessa compreender a constituição deste discurso, levando-se em consideração fatores históricos, ideológicos e políticos que estão na base da compreensão do mesmo para descrever o seu funcionamento. Pretendemos com este texto sair do lugar de evidência em que este discurso (da reforma ortográfica) se encontra para descrever como esta evidência foi construída, levando-se em conta as ideologias que fixaram sentidos no estabelecimento deste discurso. Quando falamos em ortografia, uma memória ressoa inevitavelmente, a da gramática normativa, e que nos leva a considerar a questão dessa perspectiva. Difícil falar de ortografia de outro lugar, isto é, sem mencionar regras para uma escrita correta. Por outro lado, quando falamos em reforma, temos um acontecimento, temos algo novo sendo concebido e ao mesmo tempo esse algo de novo poderá repetir o mesmo discurso. Cada reforma constitui um acontecimento que tem a sua singularidade e que, portanto, não se trata apenas de uma mera unificação do português nos países em que se fala esta língua. Este sentido de unificação se sobrepõe a questões de cunho sóciopolítico mais abrangentes, acerca deste fenômeno linguístico, reafirmando a ideia de que esta unificação garantiria uma forma de expressão e consequentemente a correta para a língua portuguesa. O sentido que se evidencia com este discurso (da reforma ortográfica) é o sentido de unificação, ou seja, é este sentido que se sobressai, se sobrepõe. Enfim, falar do novo acordo ortográfico quase sempre implica em falar de unificação da língua portuguesa. Entretanto, é necessário compreender como este sentido de unificação se destaca, se apresenta como próprio deste discurso. É justamente esta a questão que problematizaremos neste texto.

3 Entendemos que esta reforma, do modo mesmo como ela se deu, foi motivada por fatores políticos, econômicos e sociais que podem ser observados na natureza das próprias mudanças em questão. Tratam-se de mudanças ortográficas (principalmente, relativas ao emprego ou não do hífen em palavras compostas e de algumas regras de acentuação), parte da língua mais passível de negociação, de acordo, isto é, é como se a ortografia fosse o lugar de acordo, de homogeneização linguística dos países falantes do português. A ortografia é o lugar da unificação. Mas uma língua é muito mais que suas regras ortográficas e seria reduzir demais esta questão, considerando-a apenas do ponto de vista ortográfico e normativo. Desconsiderar-se-iam fatos históricos, ideológicos, etc, para destacar a ortografia como sendo o lugar em que a língua homogeneiza-se, unificase. Esta reforma tem um sentido econômico evidente, pois ela nasceu em um quadro de circunstâncias em que temos a língua portuguesa buscando destaque no cenário econômico mundial, uma vez que os principais países que falam esta língua Brasil e Portugal precisam divulgar sua língua como forma de inserção neste mercado financeiro. Esta reforma, portanto, representou força, união dos países falantes de português para terem visibilidade neste mercado financeiro. Lançar a língua portuguesa neste cenário representou ganhar força na economia mundial. E esta reforma deu visibilidade para a língua portuguesa, enquanto uma língua que crescia e possibilitava uma comunicação maior entre as nações. Portanto, essa reforma constituiu-se em um discurso que difundia a unidade da língua portuguesa e o seu prestígio internacional. Para além do sentido de unificação, essa reforma representou a unidade dos países em que se fala o português. Essa unidade dava a visibilidade de uma língua com expressividade junto aos organismos internacionais. No entanto, não concordamos com este discurso de lusofonia difundido, que remete a uma ideia de homogeneidade da língua portuguesa. Pensamos, segundo Orlandi (2009) que se deve respeitar e considerar as singularidades da língua portuguesa nestes diferentes países. É necessário compreender melhor no que consistiu tal reforma. Não era apenas uma questão de uniformização linguística entre os países em que o português é língua oficial. Esta reforma reforça a nossa tese de que uma língua é uma questão política, isto é, implica em tomada de decisões, em direcionar leituras, em estabelecer padrões, enfim, em uniformizá-la. Os efeitos desse discurso da reforma ortográfica pode ser observado na própria formulação dessas novas regras que visaram uma maior facilidade de seu uso e consequentemente do uso da própria língua portuguesa.

4 Queremos chamar a atenção não apenas para a reforma em si mesma, mas também para os seus efeitos de sentido que nos afetam na forma mesma de constituição de nossa identidade linguística. Desse ponto de vista, a reforma mexe com a nossa relação com a língua. É como se tivéssemos que aprender novamente a nossa língua, pois o efeito que se tem é o de que a ortografia é a própria língua A ortografia é um dos aspectos da língua em que podemos verificar, com maior evidência, o efeito da normatividade como manifestação do jurídico na língua. Por isso é tão comum o sujeito se mostrar inseguro ao escrever, efeito dessa determinação jurídica, ele não se expressa naturalmente nessa língua, cujas regras ortográficas têm um forte apelo jurídico de penalizar o sujeito por errar, por grafar incorretamente as palavras. Desse modo, o sujeito tem uma relação com sua língua, construída com base em princípios morais, jurídicos que o intimida ao escrever a sua própria língua. A gramática é um instrumento de poder do Estado. É dessa maneira que eu vejo a relação do sujeito com a sua língua, em nossa época. A língua é um espaço de normatização não só para se escrever, mas também, e principalmente, para moralizar os sujeitos, submetendo-os a leis que, também no caso da ortografia, têm suas punições. Ou seja, as regras gramaticais não são apenas regras para normatizar a língua, elas estão revestidas de determinações jurídicas, elas visam a disciplinarização do sujeito, este sujeito-dedireito, de que estamos falando. É essa a forma-sujeito histórica que vemos construída na gramática: um sujeito-de-direito. Falar em reforma, no caso do português, significa dizer que não se trata de reformas que levem em consideração a especificidade da nossa língua, mas que se referem à busca de unidade linguística com Portugal (na realidade, não somente com Portugal, pois em nossa época fala-se em quebrar as fronteiras e fortalecer o português no quadro político da globalização). Essa afirmação revela o caráter político-social dessa questão, ou seja, não se trata de um fato linguístico apenas, mas ele está relacionado também a fatores externos que estão na base da própria reforma, tornando-a um fato linguístico-discursivo. Outro ponto importante a ser discutido é a normatização da língua portuguesa quando tratamos dessa questão, visto que o acordo visa à unificação da língua escrita nos países que falam o português. Desse ponto de vista, a reforma constitui uma medida que, para além de um acordo (meramente um acordo linguístico), representa um estado atual de questões

5 políticas, históricas que demanda interpretação. Mais do que aprender ou apreender tal reforma (acordo), o mais válido seria interpretá-la dentro das condições históricas em que ela surgiu para que tenhamos uma visão mais ampla de seu funcionamento entre nós. Considerações Finais A normatização de uma língua passa por questões de ordem política (estabelecer a sua unidade para iniciar-se o processo de ensino desta língua), portanto, este fato deve ser compreendido dentro desse quadro político e social. Já passamos por outras reformas, o que assinala que este fato não é novo, ele tem uma memória, porém dadas as condições históricas próprias deste novo acordo, ele constitui-se em um acontecimento com outro significado, pois se trata de outras regularidades discursivas, ou seja, este novo acordo foi regulado por outras condições de produção. Ele surge de outras necessidades históricas e políticas. As condições históricas dessa nova reforma ortográfica incluem a posição da língua portuguesa no cenário político atual, como língua oficial da União Européia e do Mercosul. Com este acordo, facilita-se a inserção do português como uma das línguas oficiais da Organização das Nações Unidas, o ensino do português como língua estrangeira em qualquer outra parte do mundo etc. Finalizando, procuramos realizar uma reflexão que tratou da nova reforma ortográfica enquanto um fenômeno linguístico, buscando uma interpretação mais complexa dos fatores que propiciaram o seu surgimento, sem perder de vista a memória desse fenômeno e a sua representação histórica no contexto nacional. Este acontecimento linguístico-discursivo constrói sentidos relacionados à nossa identidade/subjetividade linguística; na realidade, nós, sujeitos falantes do português, estamos buscando uma resposta para tais mudanças, uma explicação para elas. Com este texto, pretendemos dar algumas explicações para tal problema, pois se trata de um acontecimento que exige uma interpretação mais complexa, por se referir à própria língua e foi isso que procuramos fazer: elucidar um pouco mais essa questão à luz do dispositivo teórico da Análise de Discurso, nosso referencial teórico.

6 Referência Bibliográfica ABAURRE, Maria B. M. Considerações sobre o novo acordo ortográfico. In: Língua, Literatura e Ensino volume IV. Campinas, IEL/UNICAMP, 2009. BECHARA, Evanildo. O que muda com o novo acordo ortográfico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. Decreto Legislativo nº 54 de 18\04\1995. Decreto nº 6.583 de 29\09\2008. GUIMARÃES, Eduardo e ORLANDI, Eni P. (orgs.) Língua e Cidadania o português no Brasil. Campinas, SP: Pontes, 1996. HAROCHE, Claudine. Fazer dizer, querer dizer. São Paulo, SP: Editora Hucitec, 1992. LEMLE, Miriam. Reforma ortográfica: uma questão linguística ou política? In: Boletim da ABRALIN 1, pp. 18-24, 1981. ORLANDI, Eni P. Língua brasileira e outras histórias discurso sobre a língua e ensino no Brasil. Campinas, SP: Editora RG, 2009. SILVA, Maurício. O novo acordo ortográfico da língua portuguesa o que muda e o que não muda. 2ª ed., 2ª reimpressão, São Paulo: Contexto, 2009. TUFANO, Douglas. Guia prático da nova ortografia saiba o que mudou na ortografia brasileira. São Paulo, SP: Melhoramentos, 2008.