Artigo de Revisão Ultra-sonografia tridimensional e malformações müllerianas Three-dimensional ultrasound and müllerian malformations Erciliene MM Yamaguti 1,2, Carolina O Nastri 1,2, Wellington P Martins 1,2 As malformações müllerianas apresentam baixa prevalência na população geral. Entretanto, nota-se um aumento nas mulheres inférteis. Além de problemas reprodutivos e obstétricos, outras anomalias, como as urinárias, gastrointestinais, músculo-esqueléticas, também se associam a essas malformações. Em vista disto, esse estudo, faz uma revisão dos métodos utilizados no diagnóstico e classificação das malformações müllerianas. Neste contexto, o ultra-som tridimensional apresenta-se como um método promissor com elevada acurácia quando realizado por examinadores experientes. Palavras chave: Ultra-sonografia tridimensional; Anormalidades congênitas/diagnóstico; Anormalidades congênitas/classificação. 1- Escola de Ultra-sonografia e Reciclagem Médica de Ribeirão Preto (EURP) 2- Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da FMRP-USP Recebido em 31/03/2009, aceito para publicação em 04/06/2009. Correspondências para: Wellington P Martins. Departamento de Pesquisa da EURP - Rua Casemiro de Abreu, 660, Vila Seixas, Ribeirão Preto-SP. CEP 14020-060. E-mail: wpmartins@ultra-sonografia.com.br Fone: (16) 3636-0311 Fax: (16) 3625-1555 Abstract The prevalence of müllerian duct anomalies is low in the general population. However, it is increased in infertile women. Besides reproductive and obstetrics problems, müllerian defects are also associated with others anomalies such as urinary tract, musculoskeletal system and gastrointestinal tract malformations. In this scenario, the present study review the methods used in the diagnosis and classification of these anomalies. Three-dimensional ultrasound is a promising tool with high accuracy in by experienced hands. Keywords: Three-dimensional ultrasonography; Congenital Abnormalities/diagnosis; Congenital Abnormalities/classification.
158 Introdução A prevalência e a incidência das malformações müllerianas são de difícil avaliação 1. A discrepância entre os estudos deve-se à baixa acurácia do método empregado para o diagnóstico, à falta de uniformização da classificação empregada, aos casos assintomáticos e também a àqueles sub-diagnosticados 2. Esta é uma condição relativamente comum, com prevalência de cerca de 2% na população geral e de 6 a 7% naquelas mulheres com perda gestacional recorrente 3. Está associada à perda gestacional recorrente, restrição de crescimento intra-útero e parto pré-termo 4. Prevalência Um estudo avaliou com ultra-sonografia bidimensional (US2D) 2065 crianças e mulheres e verificou prevalência de malformações müllerianas 0,38% 3. Quando mulheres com diagnóstico de perda gestacional recorrente foram examinadas através de histerossalpingografia, encontrou-se uma prevalência de 8% 5. A avaliação de 3181 mulheres mostrou prevalência de malformações müllerianas de 4% (excluindo as portadoras de agenesia e hiploplasia uterina). Quando se avaliou separadamente o grupo de mulheres inférteis a prevalência foi significantemente maior (6,3%) que nas com fertilidade normal (3,8%) 2. Enquanto a maioria das pacientes com malformação mülleriana apresenta discreta dificuldade em conceber, há uma forte associação com aborto espontâneo, parto pré-termo, anormalidades fetais e distócias no parto 6. A prevalência de septo uterino em pacientes com aborto recorrente é de 26 a 94% 7. Esta malformação também está associada a piores resultados obstétricos com taxa de prematuridade entre 9 e 33% 7. As malformações müllerianas são acompanhadas de outras anomalias congênitas em 10% dos casos, incluindo anomalias do trato urinário (20 a 25%), do trato gastrointestinal (12%), do sistema músculoesquelético (10 a 12%), coração, olho, ouvido (6%) e aumento do nível de anticorpo antinúcleo (7,5%) 6. Além destas anomalias congênitas, há também um maior risco de endometriose devido ao aumento do fluxo menstrual retrógrado e da implantação endometrial intraperitoneal causados pela obstrução do fluxo menstrual 6. Embriologia Até a sexta semana de gestação, o sistema genital masculino e feminino é indistinguível na aparência, constituindo-se de dois ductos pareados: o paramesonéfrico (Müller) e o mesonéfrico (Wolff). Na ausência do fator determinante do cromossomo Y, o ducto mesonéfrico sofre degeneração e forma uma matriz para o desenvolvimento do ducto paramesonéfrico. Este se desenvolve bidirecionalmente ao longo das gônadas. O segmento proximal do canal útero-vaginal, derivado do epitélio celômico, permanece sem se fundir e abre-se para a cavidade peritoneal para formar as tubas uterinas. Já o segmento distal, induzido ou derivado do ducto mesonéfrico adjacente, progride no sentido médio-caudal e ambos unem-se antes de encontrar o seio urogenital no nível tubérculo sinusal. Estes segmentos distais originam o útero e os 4/5 superiores da vagina 1. Os ductos paramesonéfricos são inicialmente separados por um septo, na nona semana fundem-se na margem inferior, formando o lúmen do canal úterovaginal. Na décima segunda semana, o útero já se apresenta com aspecto habitual. Durante a formação do canal útero-vaginal, o espessamento do tubérculo sinusal forma o bulbo sinovaginal do seio urogenital primitivo, que origina o 1/5 inferior da vagina. A vagina alonga-se durante o 3º ao 5º mês e sua interface com o seio urogenital forma o hímen. Os sistemas urinário e genital originam-se da mesma crista mesodérmica. Os ovários derivam do mesênquemima do epitélio da crista gonadal, não sofrendo influência dos ductos 1. Classificação O sistema de classificação mais usado é da American Society Fertility (Tabela 1 - Figura 1) 8. Fundamenta-se na etiologia embriológica das malformações, um sistema proposto por Buttram and Gibbons em 1979 9. A principal limitação desta classificação é difícil aplicação prática, por não especificar critérios específicos para as diferentes modalidades diagnósticas 10. Diagnóstico Os métodos diagnósticos incluem histerossalpingografia (HSG), US2D, US tridimensional (US3D), ressonância magnética (RM), laparoscopia e histeroscopia.
159 Figura 1 Esquema mostrando o sistema de classificação da Sociedade Americana de Fertilidade para as malformações uterinas. Adaptado de Troiano et al, 2004 1. Histerossalpingografia A HSG é capaz de fornecer informações do interior da cavidade uterina. É útil na avaliação da permeabilidade das tubas uterinas, septo uterino, adesão intra-uterina, fibroma submucoso e pólipo endometrial 6. Não pode ser utilizada em pacientes com hímen imperfurado, atresia vaginal ou septo vaginal transverso. Não avalia a anatomia externa do útero, não conseguindo diferenciar o útero septado do bicorno. Há desconforto para a paciente, exposição à radiação, risco de perfuração, de infecção uterina e de alergia ao contraste 11. Ao deparar-se com um útero unicorno, algum cuidado ainda deve ser tomado para assegurar-se da ausência de um segundo colo, descartando-se assim a presença de um útero didelfo. O útero bicorno, com corno não comunicante ou obstruído, não pode ser identificado pela HSG 9. Apesar de este método apresentar sensibilidade de78% e especificidade de 90%, a diferenciação outros tipos de anomalias é bastante difícil 9. Ultra-sonografia bidimensional É uma ferramenta de fácil acesso, largamente utilizada e de grande utilidade na avaliação de malformações uterinas congênitas. Uma de suas vantagens é permitir medir e quantificar as observações feitas. Entretanto, existem diversos critérios descritos e nenhum universalmente aceito para o diagnóstico de malformações müllerianas através da US2D. Estudos comparando a histeroscopia (utilizado como padrãoouro) com a US2D mostram baixa sensibilidade deste último método, abaixo de 60%, mas alta especificidade, perto de 100% 9. Estes números sugerem que a US2D consiga identificar cerca de metade anomalias müllerianas, mas este diagnósticos está muito provavelmente correto, devido a baixa taxa de falso positivo. Histerossonografia Este método utiliza a introdução de fluido no interior da cavidade uterina durante o exame ultra-sonográfico. Promove uma delimitação interna do contorno uterino. É segura e não causa dor significante para a paciente 12. Estudos comparando a histeroscopia com a histerossonografia sugerem que esta última apresenta
160 alta acurácia no diagnóstico e na classificação das malformações congênitas, com sensibilidade de 93% e a especificidade de 99% 9. Tabela 1 Classificação da American Society Fertility para as malformações do sistema reprodutivo feminino. Classe Morfologia Problema embriológico I II Agenesia vaginal segmentar e graus variados de hipoplasia útero-vaginal Útero unicorno com hipoplasia unilateral parcial ou completa Desenvolvimento anormal dos ductos de Muller Agenesia unilateral do ducto de Muller III Útero didelfo Falência completa da fusão dos dois ductos müllerianos IV Útero bicorno Fusão incompleta dos ductos de Muller V Útero septado Não absorção parcial ou completa do septo úterovaginal após fusão completa dos ductos müllerianos VI Útero arqueado Reabsorção quase completa do septo VII Variada Anomalias causadas pela exposição ao dietilbestrol Histeroscopia A introdução de uma micro-câmera através do orifício interno do colo permite uma visualização direta da cavidade uterina e dos óstios tubários. Apresenta elevada acurácia no diagnóstico de malformação mülleriana e muitas vezes é utilizada para estabelecer o diagnóstico definitivo após uma HSG anormal 13-15. Entretanto, não é capaz de avaliar o contorno externo uterino sendo, algumas vezes, incapaz de diferenciar determinados tipos de anomalias como, por exemplo, o útero bicorno do septado. Alguns autores consideram a associação da histeroscopia com a laparoscopia como padrão ouro na avaliação das anomalias congênitas 15. Além disso, a histeroscopia oferece também a vantagem de tratamento concomitante no caso de ressecção de septos. A principal desvantagem da histeroscopia é ser um procedimento invasivo; as possíveis complicações são semelhantes as da HSG, acrescidas do risco de ocorrência de embolia gasosa e perfuração uterina 4. Ressonância magnética A RM oferece uma avaliação não invasiva do contorno interno e externo do útero. Além disto, é capaz também de avaliar o tipo de composição do septo uterino: miometrial ou fibroso, de grande importância na abordagem cirúrgica 16. Apesar de relativamente poucos estudos, RM é considerada uma ferramenta diagnóstica sensível 9. A sensibilidade da RM para o diagnóstico de malformações müllerianas varia entre 28,6% e 100% e a especificidade de 66% a 100% 17. Ultra-sonografia tridimensional A US3D é capaz de criar volumes em três dimensões obtidos de uma série de imagens bidimensionais. Uma vez obtido um volume, o examinador é capaz de mover o bloco obtendo diversas visualizações e cortes sendo inclusive possível o armazenamento do bloco para análise posterior 18. Com a US2D por via vaginal a possibilidade de realização de cortes anatômicos variados é limitada pela pouca mobilidade do transdutor, sendo praticamente impossível a realização de um corte coronal que permita a visualização do contorno uterino interno ou externo, essencial para o estudo de malformações müllerianas. Já com a US3D é possível superar esta limitação visualizando o útero no plano coronal com os contornos interno e externos
161 visíveis em uma só imagem (Figura 2) 18. É um exame mais barato, menos invasivo e mais rápido que o procedimento cirúrgico 17. Figura 2 (A) Vista coronal de um útero septado vista através da ultra-sonografia tridimensinal. (B) Na mesma figura vemos o contorno externo marcado em vermelho e o septo marcado com S. Adaptado de Salim & Jurkovic, 2004 18. O estudo com US3D de 3850 mulheres inférteis mostrou sensibilidade de 99,3%, especificidade de 100%, valor preditivo positivo de 100%, valor preditivo negativo de 97,6% e acurácia de 99.4% no diagnóstico de malformações uterinas 19. Outros estudos também mostraram valores de sensibilidade, especificidade e acurácia próximo de 100% para o diagnóstico de malformações uterinas através de US3D 17, 20, 21. Além disso, a US3D mostrou-se uma técnica de boa reprodutibilidade para o estudo de malformações uterinas, apresentando concordância inter-observador de 99% 21. Considerações finais As malformações müllerianas apresentam baixa prevalência na população geral, entretanto, observa-se um aumento da prevalência nas pacientes inférteis. Além disto, outras anomalias como as urinárias, gastrointestinais, músculo-esqueléticas e outras também se associam às malformações. O diagnóstico precoce e a possibilidade de tratamento destas malformações podem evitar grandes prejuízos sociais, psicológicos e financeiros. A histerossalpingografia é útil na triagem de cavidade uterina normal ou anormal, mas não pode diferenciar com segurança os diferentes tipos de malformações 9. O US2D é um método com baixa acurácia, porém está largamente disponível. Quando utilizado em conjunto com a HSG tem sua acurácia aumentada 9 e pode ser utilizado na triagem das malformações. A sua acurácia também dependerá do biotipo da paciente, experiência do examinador e do tipo de equipamento utilizado. A histeroscopia e a laparoscopia são métodos invasivos, mas oferecem a vantagem de diagnóstico e tratamento concomitantes. A RM apresenta elevada acurácia, porém não é suficiente para diagnóstico nos casos de septo uterino. Não deve ser utilizada sistematicamente, e sim reservada aos casos complexos. Assim como a US, é também capaz de avaliar o trato urinário. O US3D aparece como um método promissor quando utilizado por mãos experientes. Apresenta acurácia elevada, pelo menos igual ou superior a RM, no diagnóstico e na classificação das malformações müllerianas.
162 Referências 1. Troiano RN, McCarthy SM. Mullerian duct anomalies: imaging and clinical issues. Radiology 2004; 233(1): 19-34. 2. Raga F, Bauset C, Remohi J, Bonilla-Musoles F, Simon C, Pellicer A. Reproductive impact of congenital Mullerian anomalies. Hum Reprod 1997; 12(10): 2277-2281. 3. Byrne J, Nussbaum-Blask A, Taylor WS, Rubin A, Hill M, O'Donnell R, et al. Prevalence of Mullerian duct anomalies detected at ultrasound. Am J Med Genet 2000; 94(1): 9-12. 4. Kupesic S. Clinical implications of sonographic detection of uterine anomalies for reproductive outcome. Ultrasound Obstet Gynecol 2001; 18(4): 387-400. 5. Stampe Sorensen S. Estimated prevalence of mullerian anomalies. Acta Obstet Gynecol Scand 1988; 67(5): 441-445. 6. Golan A, Langer R, Bukovsky I, Caspi E. Congenital anomalies of the mullerian system. Fertil Steril 1989; 51(5): 747-755. 7. Propst AM, Hill JA, 3rd. Anatomic factors associated with recurrent pregnancy loss. Semin Reprod Med 2000; 18(4): 341-350. 8. The American Fertility Society classifications of adnexal adhesions, distal tubal occlusion, tubal occlusion secondary to tubal ligation, tubal pregnancies, mullerian anomalies and intrauterine adhesions. Fertil Steril 1988; 49(6): 944-955. 9. Saravelos SH, Cocksedge KA, Li TC. Prevalence and diagnosis of congenital uterine anomalies in women with reproductive failure: a critical appraisal. Hum Reprod Update 2008; 14(5): 415-429. 10. Woelfer B, Salim R, Banerjee S, Elson J, Regan L, Jurkovic D. Reproductive outcomes in women with congenital uterine anomalies detected by three-dimensional ultrasound screening. Obstet Gynecol 2001; 98(6): 1099-1103. 11. Valdes C, Malini S, Malinak LR. Ultrasound evaluation of female genital tract anomalies: a review of 64 cases. Am J Obstet Gynecol 1984; 149(3): 285-292. 12. Alborzi S, Dehbashi S, Khodaee R. Sonohysterosalpingographic screening for infertile patients. Int J Gynaecol Obstet 2003; 82(1): 57-62. 13. Soares SR, Barbosa dos Reis MM, Camargos AF. Diagnostic accuracy of sonohysterography, transvaginal sonography, and hysterosalpingography in patients with uterine cavity diseases. Fertil Steril 2000; 73(2): 406-411. 14. Letterie GS, Vauss N. Mullerian tract abnormalities and associated auditory defects. J Reprod Med 1991; 36(11): 765-768. 15. Homer HA, Li TC, Cooke ID. The septate uterus: a review of management and reproductive outcome. Fertil Steril 2000; 73(1): 1-14. 16. Carrington BM, Hricak H, Nuruddin RN, Secaf E, Laros RK, Jr., Hill EC. Mullerian duct anomalies: MR imaging evaluation. Radiology 1990; 176(3): 715-720. 17. Deutch TD, Abuhamad AZ. The role of 3-dimensional ultrasonography and magnetic resonance imaging in the diagnosis of mullerian duct anomalies: a review of the literature. J Ultrasound Med 2008; 27(3): 413-423. 18. Salim R, Jurkovic D. Assessing congenital uterine anomalies: the role of three-dimensional ultrasonography. Best Pract Res Clin Obstet Gynaecol 2004; 18(1): 29-36. 19. Kupesic S, Kurjak A, Skenderovic S, Bjelos D. Screening for uterine abnormalities by three-dimensional ultrasound improves perinatal outcome. J Perinat Med 2002; 30(1): 9-17. 20. Jurkovic D, Geipel A, Gruboeck K, Jauniaux E, Natucci M, Campbell S. Three-dimensional ultrasound for the assessment of uterine anatomy and detection of congenital anomalies: a comparison with hysterosalpingography and two-dimensional sonography. Ultrasound Obstet Gynecol 1995; 5(4): 233-237. 21. Salim R, Woelfer B, Backos M, Regan L, Jurkovic D. Reproducibility of three-dimensional ultrasound diagnosis of congenital uterine anomalies. Ultrasound Obstet Gynecol 2003; 21(6): 578-582.