Reconstrução Urogenital

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Transcrição:

Urologia Fundamental CAPÍTULO 36 Reconstrução Urogenital Sérgio Félix Ximenes João Leão e Souza Neto

UROLOGIA FUNDAMENTAL INTRODUÇÃO Reconstrução urogenital tem como objetivo principal restabelecer o adequado esvaziamento do trato urinário inferior. A disfunção miccional é um dos grandes problemas urológicos, com impacto na qualidade de vida. Ato miccional, que para a população normal é uma simples necessidade, torna-se um verdadeiro sacrifício para portadores de determinadas lesões genitais, necessitando das mais variadas manobras para completo esvaziamento vesical, quando não requer uso de cateteres ou de derivações. Não raramente nos defrontamos com alterações do trato urinário superior que podem provocar falência vesical ou insuficiência renal crônica. Entre as várias complicações do trato urinário com possibilidade de reconstrução cirúrgica, destaca-se a estenose de uretra com grande prevalência e diversidade de apresentação. Relatos de tratamentos da estenose de uretra remontam aos egípcios há 4.000 anos e muito pouco foi alterado até meados do século passado. Seu tratamento nos dias de hoje ainda é um desafio, porém com elevada satisfação do paciente quando bem-sucedido. DEFINIÇÃO Estenose de uretra é o estreitamento de qualquer segmento uretral, de etiologias traumáticas, inflamatória ou idiopática, que compromete o esvaziamento vesical em diversos níveis até a interrupção completa. EPIDEMIOLOGIA Não se conhece a incidência da estenose de uretra, pois muitos pacientes com sintomas leves, como infecção urinária de repetição, não são diagnosticados. Estima-se que seja de 1/10 mil homens aos 25 anos de idade e para cada mil homens aos 65 anos, com maior acometimento na raça negra. Na mulher, é rara e associada principalmente a complicações toco-ginecológicas. CLASSIFICAÇÃO A uretra pode ser dividida em dois segmentos: anterior e posterior. A anterior é composta pela navicular, peniana ou pendular e bulbar, sendo envolvida pelo tecido esponjoso nos segmentos peniano, bulbar e Figura 1 Anatomia da uretra. 1-Navicular; 2-Peniana; 3-Bulbar; 4-Membranosa; 5-Prostática. glande. A posterior é composta pelas uretras prostática e membranosa, sendo esta envolvida pelo assoalho urogenital e com maior possibilidade de lesões (Figura 1). SUPRIMENTO VASCULAR A superfície peniana é irrigada pela artéria pudenda externa, ramo da artéria femoral. A artéria pudenda interna supre o corpo esponjoso e as uretras proximal e bulbar. A artéria dorsal profunda do pênis e os ramos perfurantes das artérias cavernosas completam a irrigação da uretra e do corpo esponjoso, que se unem ao tecido erétil da glande. Essa ligação permite que a uretra possa ser incisada sem prejudicar seu suprimento vascular. TRAUMA URETRAL A uretra pode ser lesada por diferentes mecanismos. Didaticamente, podemos dividir em lesões externas, como traumas fechados ou penetrantes, e lesões internas, como as iatrogênicas durante instrumentação da uretra ou por introdução de corpo estranho. Lesão da uretra anterior geralmente ocorre por trauma direto por causa da maior exposição desse segmento. Em alguns casos, ela não é imediatamente percebida e apresenta-se tardiamente em forma de estenose. Trauma fechado, fratura peniana, queda a cavaleiro (Figura 2) e lesões iatrogênicas são as causas mais frequentes. Lesão da uretra posterior associa-se a trauma de maior magnitude, como fraturas de bacia, que em cerca 320

Reconstrução Urogenital Figura 2 Exemplo de mecanismo de lesão da uretra anterior: lesão da fáscia de Collins. Tratamento O tratamento da lesão uretral dependerá de sua classificação e localização. Nas lesões parciais de uretra anterior a opção é a passagem de sonda uretral, sempre orientada por endoscopia; se não for possível, realiza-se cistostomia, que é sempre uma boa opção, pois desvia a urina do local lesionado e evita manipulação uretral. Cerca de 50% dessas lesões têm recanalização satisfatória no seguimento tardio. Lesões de uretra posterior são mais complexas, muitas vezes associadas a outras lesões que requerem cirurgias emergenciais, sendo cistostomia a melhor opção inicial. Realinhamento endoscópico primário, realizado nos primeiros dias pós-trauma, é recomendado se o local oferecer aparelhagem necessária, como cistoscópios rígidos, flexíveis e fluoroscópia. Ele pode diminuir a incidência de estenose cirúrgica em 50%. Realinhamento primário cirúrgico não é mais recomendado devido a sua dificuldade e altos índices de impotência e incontinência. de 3 a 25% dos casos associam-se a lesões uretrais. Outras causas de lesões de uretra posterior incluem lesões penetrantes por arma de fogo e iatrogênicas, principalmente em decorrência de cirurgias prostáticas. Trauma uretral é classificado segundo a Associação Americana da Cirurgia do Trauma (AAST), conforme a Tabela 1. I II III IV V Tabela 1 Classificação da AAST Contusão c/ uretrorragia. UCM normal Uretra alongada. UCM sem extravasar Ruptura incompleta Ruptura completa e afastamento <2cm Ruptura completa e afastamento >2 cm UCM uretrocistografia retrógrada e miccional. ETIOLOGIA A etiologia da estenose de uretra pode ser dividida em três grandes grupos: traumática, inflamatória e idiopática. Causa inflamatória inclui uretrites não específicas, que podem acometer qualquer segmento, sendo mais frequentemente a uretra bulbar, e líquen escleroatrófico ou balanite xerótica obliterante (BXO), que acomete as uretras peniana e navicular. Trauma pode afetar qualquer segmento da uretra. Causa iatrogênica é a mais frequente, principalmente com aumento dos procedimentos endourológicos. Traumas externos, como fratura de bacia, lesam a uretra membranosa em aproximadamente 10% das vezes. Queda a cavaleiro lesa a uretra bulbar. As de origem idiopática são muitas vezes classificadas assim, pois sua causa perdeu-se no passado, como pequenos traumas na infância ou na adolescência. FISIOPATOLOGIA Ainda não se conhece totalmente a patologia da estenose de uretra. A descontinuidade total ou parcial da uretra pelo trauma, com consequente cicatrização e fibrose da uretra, é facilmente compreensível. Nas demais situações, mudanças no epitélio uretral e no tecido esponjoso subepitelial formam cicatrizes e consequente estreitamento da luz uretral. Após lesão tecidual, células fagocíticas infiltram o local, promovendo resposta inflamatória e resultando em depósito de tecido fibroso. Área de estenose agrava-se pela perda da integridade da mucosa uretral, que em muitos casos apresenta déficit do aporte vascular, contribuindo para formação de uma camada subepitelial de espongiofibrose, cuja extensão é difícil de ser estabelecida. QUADRO CLÍNICO Diminuição progressiva do jato urinário é a principal queixa de paciente com estenose de uretra, acompanhada de gotejamento terminal e sensação de resíduo pós-miccional, inclusive com episódios de retenção urinária aguda. Muitas vezes, apresenta infecção urinária de repetição 321

UROLOGIA FUNDAMENTAL e hematúria episódica. Irritabilidade vesical pode ocorrer por causa do regime de alta pressão miccional; em casos extremos pode surgir fístula urinária por isquemia, infecção e até abscesso periuretral. Volume ejaculado também diminui, algumas vezes com dor às ejaculações e hemospermia. Não raramente, o paciente com estenose de uretra não tem queixa alguma por achar que aquele jato fino e demorado é normal, sempre foi assim, até que seja necessário instrumentação uretral por algum motivo (cirurgia, internação etc), quando se constata a lesão. Como decorrência de trauma complexo (fraturas de bacia, lacerações perineais e lesões penetrantes) a uretra pode ficar totalmente obstruída e o paciente apresentar algum tipo de derivação, como cistostomia. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL Durante investigação da estenose de uretra, devese afastar qualquer outra causa de obstrução do trato urinário inferior, como patologias prostáticas e vesicais. Investigação Inicial: diagnóstico inicial da estenose de uretra é bem objetivo. História clínica é muito característica, já descrita no quadro clínico. Questões sobre ocorrência de algum evento prévio à instalação do quadro, como manipulação uretral, trauma ou uretrite, podem sugerir o diagnóstico. Exame físico acrescenta muito pouco, uma vez que a topografia da patologia muitas vezes não é acessível. Palpação da uretra pode evidenciar segmento espessado ou endurecido. Lesões inflamatórias, como o líquen ou balanite xerótica, podem sugerir lesão da uretra peniana com aspecto esbranquiçado muito característico (Figura 3). Complementar: fluxometria livre é um exame de fácil realização com resultado bem sugestivo e pode preceder qualquer exame de imagem. Em adultos, o fluxo normal deve ser acima de 15 ml/s, com a curva em forma de sino (Figura 4). Quando essa curva é substituída por outra achatada e longa (Figura 5) com fluxo menor que 10 ml/s, devemos suspeitar de estenose uretral, principalmente em pacientes jovens. Uretroscopia pode ser realizada, não só para diagnóstico, como para decisão sobre o tratamento, pois fornecerá dados sobre as condições da mucosa, além da extensão da lesão. Para confirmação do diagnóstico de estenose de uretra é necessário realizar exames de imagens. Uretrocistografia retrógrada e miccional ainda é o padrão-ouro (Figura 6). O exame é realizado por meio da infusão lenta de contraste iodado pela uretra, observando-se sua progressão até a bexiga, conhecida como fase retrógrada. Após enchimento, registra-se a micção do paciente fase miccional. Para diagnóstico, é fundamental o cuidado durante a realização das duas fases, além da atenção aos detalhes, como extensão da lesão, para programação terapêutica. Figura 4 Fluxo normal. Figura 3 Balanite xerótica obliterante ou líquen. Figura 5 Fluxo diminuído obstrução infravesical. 322

Reconstrução Urogenital Ultrassonografia (US) não é o exame inicial para diagnóstico, mas é de grande ajuda como avaliação pré-operatória, pois fornece informações importantes sobre espongiofibrose e extensão real da lesão. O exame é realizado com lidocaína em gel ou soro fisiológico como contraste ecográfico da uretra (Figura 7). Ressonância magnética (RM) tem sido utilizada com mais frequência nos últimos anos. Sua realização não é fundamental, porém fornece dados preciosos, principalmente nas lesões de uretra posterior pósfratura de bacia, quando muitas vezes não temos informações sobre a uretra prostática (Figura 8). Figura 6 Uretrocistografia. Fase retrógrada estenose bulbar. Figura 8 Ressonância magnética. TRATAMENTO O tratamento da estenose de uretra deve ser realizado em pacientes sintomáticos, com fluxo abaixo de 10 ml/s. Estenoses menos importantes, com fluxo entre 10 a 15 ml/s podem ser acompanhadas clinicamente, com avaliação periódica da sintomatologia, análise urinária e imagens do trato urinário. O tratamento pode ser dividido em diversas modalidades de acordo com aspecto, localização e etiologia de cada estenose, além de dados referentes às condições do paciente. Dilatação, uretrotomia interna e uretroplastia com ou sem utilização de enxertos ou de retalhos são os métodos disponíveis no momento, cada um com suas indicações e suas limitações, que serão elucidadas a seguir. Fase miccional estenose colo-vesical e uretra peniana. Figura 7 Ultrassonografia. (A) corte longitudinal; (B) corte transversal. A B Dilatação uretral A dilatação uretral é o mais antigo tratamento e até hoje utilizado. O método é simples e consiste na introdução de sondas de calibres progressivos até se obter luz suficiente para micção satisfatória. Sabe-se que o calibre da uretra normal é de cerca de 24 a 26 F (French) podendo chegar a 36 F na uretra bulbar, mas a dilatação não deve chegar a tanto, 18 ou 20 F parece ser suficiente. Indicação desse tratamento é limitada e os resultados são transitórios e é reservada para estenose puntiforme com pouca espongiofibrose. Devemos discutir com o paciente sobre os resultados, sobre a necessidade de repetição do procedimento e sobre suas complicações para se decidir em conjunto sobre a mudança do tratamento. 323

UROLOGIA FUNDAMENTAL Uretrotomia interna Por sua simplicidade, uretrotomia interna é o procedimento mais realizado pelo urologista para tratamento da estenose de uretra. Descrita inicialmente por Sachse, em 1974, tornou-se a primeira opção de escolha. Sua indicação, assim como a da dilatação, é limitada. Taxa de sucesso para estenoses curtas varia de 39 a 73%, resultados que diminuem com o seguimento tardio dependendo das características da estenose. Num seguimento de cinco anos, variou de 77% de sucesso para estenoses bulbares menores que 1 cm, para 18% em estenoses da uretra peniana maiores que 1 cm. A técnica consiste em incisar o anel estenótico com faca de Sachse, a frio. Pelas características anatômicas da uretra, o ideal é realizar a incisão às 12 horas na uretra bulbar e às 5 horas e às 7 horas na uretra peniana. É de suma importância evitar lesar a mucosa uretral normal próxima à lesão, manobra que pode aumentar a área de espongiofibrose e dificultar futura uretroplastia. Após o procedimento, moldar a uretra com sonda de Foley não muito grossa (16 F ou 18 F) por 7 a 14, dependendo da extensão da incisão. A grande questão é até quando indicar uretrotomia antes de partir para uretroplastia aberta. A orientação é que a segunda recidiva da estenose pós-uretrotomia é forte indicador de que devemos partir para um procedimento mais definitivo. A única situação em que os resultados da uretrotomia se aproximam dos da uretroplastia (77% versus 95%) é na estenose bulbar menor que 1 cm, que a rigor deveria ser a única indicação. Uretroplastia anastomótica Uretroplastia anastomótica é o melhor tratamento para estenose de uretra. A possibilidade de remoção completa da região estenótica, com reaproximação de duas extremidades saudáveis de uretra, é o ideal, com índice de sucesso de até 100%, entretanto esse procedimento só pode ser realizado em estenoses curtas de 1 a 2 cm da uretra bulbar (Figura 9). Nas estenoses mais longas da uretra bulbar, de 2 a 4 cm, pode-se utilizar a técnica de uretroplastia estendida, associando a técnica anastomótica com uso de enxerto. Figura 9 Uretroplastia anastomótica. Quando podemos ressecar mais tecido da face dorsal da uretra, preservando tecido ventral, é possível realizar anastomose término-terminal (Figura 10). Nos casos de estenose de origem traumática pósfratura de bacia, na uretra membranosa essa técnica também é a primeira opção, permitindo correções de lesões mais longas, até 6 a 7 cm, porém utilizando manobras de aproximação dos cotos sequenciais (Figura 11). Ressecção completa da área fibrótica é fundamental para sucesso da cirurgia. Na uretra peniana os limites são menores, pois manobras exageradas de mobilização podem encurvar o pênis, com resultado estético e funcional insatisfatórios, por isso só utilizamos essa técnica para lesões com extensão máxima de 1 cm. A decisão sobre a técnica ideal deve ser tomada no intraoperatório. Lesões aparentemente pequenas nos exames de imagem podem estar envolvidas por grande fibrose no intraoperatório, necessitando de grandes ressecções. O urologista deve iniciar a cirurgia com várias propostas em mente e estar preparado para cirurgias mais complexas. 324

Reconstrução Urogenital Figura 10 Uretroplastia estentida. Figura 11 Manobras de aproximação dos cotos. Uretroplastia com utilização de enxertos Em estenoses longas, quando a mobilização da uretra não for possível, temos de abrir mão da utilização de enxertos ou de retalhos como tecidos substitutos. Pele peniana e escrotal já foi utilizada largamente, porém recentemente tem-se optado pela utilização de mucosa oral como tecido de escolha, por causa de suas características favoráveis, como espessura do tecido e resistência natural a infecção e a outras doenças da pele, como líquen. Obtenção de enxerto de mucosa oral pode ser realizada de várias maneiras. Atualmente, damos preferência para mucosa jugal ou labial, deixando o leito aberto, sendo que a jugal apresenta menor morbidade a longo prazo. Ela permite enxertos mais longos e deve ser utilizada em estenoses extensas (Figura 12). Uretroplastia bulbar apresenta os melhores resultados com utilização de enxerto de mucosa oral, pois suas características favorecem a nutrição. O acesso é perineal, com incisão longitudinal ou em Y invertido. A uretra deve ser dissecada na região estenótica e incisada longitudinalmente. A seguir, posiciona-se o enxerto de mucosa oral com a face mucosa virada para a luz uretral. O enxerto pode ser posicionado na face dorsal, na lateral ou na ventral da uretra e segundo estudo recente, não há alteração nos resultados. Figura 12 Mucosa bucal. 325

UROLOGIA FUNDAMENTAL Em estenoses penianas, preferimos o posicionamento dorsal do enxerto ou o procedimento estagiado pelas características da uretra peniana. Derivações urinárias Em alguns casos, trauma genital ou lesão uretral torna a reconstrução extremamente complexa ou até mesmo impossível. Recidivas da estenose com intensa espongiofibrose reduzem o suporte vascular, aumentando a área de retração e limitando o tecido viável. Nesses casos, há necessidade de confecção de derivações urinárias para esvaziamento vesical completo e satisfatório. As vantagens de reservatórios urinários continentes são evidentes em comparação às ostomias úmidas em relação à qualidade de vida dos pacientes. Existem vários tipos de derivações e de reservatórios e em nosso serviço, iniciamos pelo princípio de Mitrofanoff; quando ele não é possível, optamos pelo conduto eferente de cateterização cutânea Monti. Descrita pelo urologista francês Paul Mitrofanoff, essa técnica utiliza o apêndice cecal como canal para cateterização e para esvaziamento vesical. É importante que o apêndice seja acoplado a um reservatório de baixa pressão, com ureteres protegidos por mecanismo antirrefluxo, e que o paciente consiga esvaziar completamente o reservatório. Promovendo uma tração no ápice do apêndice, é possível expor sua base e dissecar seu suprimento vascular. O coto apendicular é tratado como apendicectomia. A base é suturada à cúpula vesical e o ápice à cicatriz umbilical ou à parede abdominal. Confecção de uma válvula continente é possível com sutura da parede vesical adjacente à anastomose com o apêndice. Quinze por cento dos casos pode evoluir com estenose (tratamento conservador), que na maioria das vezes poderia ser evitada com inversão da pele no local do implante do conducto. Quando o apêndice não está presente (10% dos casos) ou não é possível sua utilização (extensão ou espessura insuficiente e apendicectomia prévia), o conducto ileal afilado pode ser a solução. Segmento intestinal tubularizado transversalmente Monti pode ser obtido com isolamento de segmento intestinal de 2,5cm de intestino delgado ou cólon destubularizados com incisões longitudinais a 0,5 cm da inserção do mesentério. O conduto é confeccionado com sutura contínua sobre um cateter de 12 F. Em alguns casos pode ser necessário um segundo segmento intestinal para extensão do conducto. Recentemente, Macedo et al. descreveram uma técnica de construção de reservatório urinário continente de cateterização cutânea, incorporando o princípio de Mitrofanoff e utilizando segmento ileal único. Para confecção do reservatório, utiliza-se segmento ileal de 30 a 40 cm isolados a 10 a 15 cm do íleo terminal. Detubularização é realizada com incisão no bordo contramesentérico do segmento isolado até sua metade, onde é confeccionado um retalho de 3 cm que será transformado no conducto eferente de cateterização. Os bordos são aproximados com sutura contínua, com a opção de reconstrução de novo reservatório ou da anastomose à cúpula vesical para sua ampliação. CONCLUSÃO Cirurgia para correção de estenose de uretra deve ser bem indicada. Procedimentos paliativos e incompletos podem aumentar a gravidade do quadro, dificultando o tratamento definitivo. Nunca iniciar uretroplastia com somente uma proposta. Proponha duas ou mais possibilidades e decida no intraoperatório, de acordo com os achados. LEITURA RECOMENDADA 1. Mouraviev VB, Coburn M, Santucci RA. The treatment of posterior urethral disruption associated with pelvic fractures: comparative experience of early realignment versus delayed urethroplasty. J Urol. 2005;173:873-6. 2. Barbagli G, Palminteri E, Guazzoni G, Montorsi F, Turini D, Lazzeri M. Bulbar urethroplasty using buccal mucosa grafts placed on ventral, dorsal or lateral surface of the urethra: are results affected by surgical technique? J Urol. 2005;174(3):955-7. 3. Markiewicz MR, Lukose MA, Margarone JE 3rd, Barbagli G, Miller KS, Chuang SK. The oral mucosa graft: a systematic review. J Urol 2007;178(2):387-94. 4. Sachse H. Treatment of urethral stricture: transurethral slit in view using sharp section. Fortschi Med. 1974;92:12-5. 5. Barbagli G, Palminteri E, Lazzeri M, Guazzoni G, Turini D. Long term outcome of urethroplasty after failed urethrotomy versus primary repair. J Urol. 2001;165(6 Pt 1):1918-9. 6. Wright J, Wessells H, Nathens AB, Hollingworth W. What is the most cost effective treatment for 1 to 2 cm bulbar urethral strictures: societal approach using decision analysis. Urology. 2006;67(5):889-93. World J Urol. 1987;5:30. 8. Mundy AR. Anastomotic urethroplasty. BJU Int. 2005;96(6):921-44. 9. Kamp S, Knoll T, Osman M, Häcker A, Michel MS, Alken P. Donor-site morbidity in buccal mucosa urethroplasty: lower lip or inner cheek? BJU Int. 2005;96:619-23. 10. Macedo Jr A, Hachul M, Liguori R, Barroso Jr U, Bruschini H, Srougi MA. Continent catheterizable ileum-based reservoir: A new approach. J Urol. 2000;163(4):350. 326