A intertextualidade como mecanismo compositivo da linha estrutural do violão na obra Descaminhos

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Transcrição:

A intertextualidade como mecanismo compositivo da linha estrutural do violão na obra Descaminhos MODALIDADE: COMUNICAÇÃO João Francisco de Souza Corrêa UFPR joaofscorrea@hotmail.com Resumo: O presente texto aborda o processo composicional da linha instrumental da obra Descaminhos para violão e sons eletroacústicos. A criação dos materiais do discurso do violão é realizada mediante o uso de elementos extraídos da literatura desse instrumento. Estes elementos são engendrados em processos de transformação com o intento de obter novos materiais. O objetivo deste artigo é apresentar as correlações intertextuais entre Descaminhos e obras da literatura violonística, demonstrando as fontes empregadas e como elas foram alteradas durante o ato compositivo. Palavras-chave: Violão. Composição musical. Intertextualidade. The Intertextuality as a compositional mechanism of structural line of the guitar in the work Descaminhos Abstract: This article discusses the compositional process of instrumental line of the piece Descaminhos for acoustic guitar and electroacoustic sounds. The creation of materials of guitar line is performed by the use of elements extracted from the guitar literature. These elements are transformed with the intent of obtaining new materials. The objective of this article is to present the intertextual correlations between Descaminhos and works of guitar literature by demonstrating the sources used and how they were changed during the composition. Keywords: Acoustic guitar. Musical composition. Intertextuality. Considerações Preliminares Este artigo aborda o processo compositivo da linha instrumental da obra para violão e sons eletroacústicos, de minha autoria, intitulada Descaminhos. Composta entre agosto e novembro de 2011, trata-se de uma peça eletroacústica mista na qual o violão atua como instrumento principal e os sons eletroacústicos são difundidos em suporte fixo mediante um sistema quadrafônico. O foco deste artigo consiste em apresentar os procedimentos de criação do discurso do violão, que se baseia na intertextualidade como ferramenta compositiva. Tal procedimento parte da observação e coleta de elementos gestuais da literatura para violão, que são transformados com o intuito de obter novos materiais sonoros para compor. O critério destas transfigurações sobre o material original é livre. As traduções partem de ideias objetivas que acabam sendo trabalhadas de maneira subjetiva. Estas transformações podem ocorrer em menor ou maior escala e abrangem questões do âmbito técnico, mecânico e estrutural.

Os trechos de obras que serviram como materiais composicionais sujeitos a processos de transformação partem de cinco obras que fazem parte da literatura contemporânea para violão: Koyunbaba de Carlo Domeniconi, Sunburst de Andrew York, Fuoco de Roland Dyens e Estudo XX e El decameron negro de Leo Brouwer. Através desse processo de transformação em que há uma revisão de elementos já presentes que posteriormente são sujeitos à manipulação busquei promover uma reexposição do material transfigurado tomando, como ponto de partida, os referidos trechos da literatura contemporânea para violão, escolhidos pela empatia e afinidade percebida em suas sonoridades, mecanismos técnicos e gestuais. Nestas obras observei uma gama de possibilidades para exploração de mecanismos técnicos específicos, como um meio ou um caminho direto no processo da concepção dos sons de Descaminhos. O ato composicional A primeira obra a ser destacada é Koyunbaba de Carlo Domeniconi. De acordo com Cumming (2004, p. 34) Domeniconi descreve Koyunbaba como uma pastoral inspirada na beleza e no poder da natureza, especificamente de um pequeno riacho que ele visitou no sudoeste da Turquia. Um aspecto extraído desta obra que acaba figurando como ponto fundamental de todo o processo compositivo foi a utilização do mesmo modelo de afinação 1 em Descaminhos. Em Koyunbaba, a maneira como se organiza a afinação das cordas do violão sofre significantes alterações, aumentando a extensão do instrumento com o acréscimo de um tom e meio no registro grave. Essa afinação, que caracteriza o acorde de Dó sustenido menor proporcionou uma ampla utilização das cordas soltas 2. Outro ponto importante a ser destacado, que ocorre em virtude da mudança de afinação, é a perda da referência visual da digitação no instrumento. Com a mudança de afinação, consequentemente mudam também as fôrmas dos acordes e das escalas, ou seja, as notas mudam de posição no braço do instrumento, desconfigurando a percepção visual das digitações próprias da afinação tradicional. Em função disso, o estudo e execução da obra Koyunbaba serviu como referência fundamental para a percepção da organização dos mecanismos de digitação da mão esquerda. Grande parte dos gestos utilizados em Descaminhos encontra influência direta no modo gestual e mecânico de Koyunbaba.

Outro elemento igualmente extraído de Koyunbaba é um gesto característico da peça que está presente no segundo e no quarto movimentos, figurando em trechos onde a intensidade dramática da obra se acentua. Os exemplos demonstram a constituição intervalar e mecânica do gesto. Figura 1 Koyunbaba [75, 76] e [165 a 168]. As notas circuladas representam o elemento absorvido deste trecho de Koyunbaba que foi utilizado como mecanismo pré-compositivo em Descaminhos. O exemplo a seguir demonstra o comportamento e a configuração do gesto em Descaminhos. Figura 2 Descaminhos [116]. As notas utilizadas neste trecho foram mantidas e a alteração ocorre no modo de execução da mão esquerda. Em Koyunbaba são realizados dedilhados descendentes repetidos de mão direita, enquanto que em Descaminhos, o movimento do gesto utiliza legatos articulados com as cordas soltas e o emprego apenas da primeira, segunda e sexta cordas, dispensando o emprego da terceira e quarta, como ocorre em Koyunbaba. Outra obra cuja presença pré-compositiva atuou de forma significativa na concepção de Descaminhos foi Sunburst 3 de Andrew York. O estilo compositivo de Andrew York recebe influência de gêneros da música popular, como jazz, folk, rock, new age, entre outros. Por conseguinte, Sunburst abarca em sua sonoridade essa amálgama de estilos, obtendo assim, uma sonoridade inclinada ao crossover 4. Um aspecto fundamental dessa obra é a forma característica da configuração dos legatos de mão esquerda. Especificamente os legatos presentes a partir do c.43. Esse gesto envolve legatos articulados com cordas soltas, de maneira alternada, tangendo a sexta e a

quinta corda do violão em um movimento repetido, gesto que aos poucos é sujeito a variações realizadas por ações que ferem as cordas agudas. O fato de Sunburst também alterar a afinação 5 original do violão amplia as possibilidades de utilização das cordas soltas em conjunto com os legatos de mão esquerda. Por esse motivo, o mecanismo dos legatos foi adaptado tão confortavelmente em Descaminhos, na qual a afinação aberta do violão também proporciona a formação de um acorde. O gesto que extraí de Sunburst situa-se a partir do c.43 e sua mecânica consiste na execução de legatos ascendentes e descendentes de mão esquerda, articulados às cordas soltas do violão. Esse gesto, em que são realizados os legatos nas cordas graves, foi o elemento absorvido com intuito de gerar material sonoro para Descaminhos e, por diversas vezes, tal gesto foi empregado como modelo na construção mecânica dos fraseados da obra. A partir deste exemplo gestual, construí inúmeras frases e segmentos estruturais que foram sujeitos às mais diversas variações, todavia, mantendo preservadas as características intrínsecas do gesto que consiste na utilização conjunta e alternada de ligados e cordas soltas em um movimento repetido. Figura 3 Sunburst c.43, Descaminhos c.94 e c.106. Outra influência relevante no processo conceptivo das frases e segmentos de Descaminhos é o Estudo XX de Leo Brouwer, mais especificamente a partir do c.16 onde iniciam os legatos. Os elementos extraídos da obra foram a maneira de como se constituem os ligados ascendentes e descendentes utilizando as cordas soltas do violão e os consequentes modelos mecânicos e de digitação, tanto os de mão esquerda quanto os de mão direita. No Estudo XX, Brouwer adota uma atitude minimalista no desenvolvimento e dos materiais. Conforme Prada (2008), essa ótica compositiva também está presente em outras de suas obras como El Decameron Negro e Chanson de Geste. Entretanto, Brouwer destaca que

a aplicação de técnicas minimalistas, em algumas de suas obras, não é proveniente da escola minimalista de compositores como Steve Reich e Philip Glass, mas da influência direta de elementos de sua própria cultura: Tomei o minimalismo como um elemento composicional muito importante porque ele é inerente às minhas raízes culturais de terceiro mundo. África, Ásia se manifestam de um modo minimalista. Estes maravilhosos criadores do minimalismo norte-americanos descobriram este fato, talvez tardiamente. (BROUWER, 1999 apud PRADA, 2008: p.168) A Figura 4 mostra o trecho do Estudo XX que serviu como modelo mecânico e gestual e também os trechos específicos de Descaminhos que apresentam semelhança de conduta técnica das mãos esquerda e direita em relação à obra de Brouwer. O comportamento cíclico das frases e a articulação entre os ligados e as cordas soltas são os principais fatores que apontam para esta semelhança. Figura 4 Estudo XX c.16, Descaminhos acima c.55 e abaixo c.76. Outro exemplo da literatura de Leo Brouwer que é utilizado em Descaminhos é a obra El Decameron Negro 6, mais especificamente um trecho do terceiro movimento, intitulado Balada de La Doncella Enamorada. Segundo Prada (2008) o motivo que levou Brouwer a compor essa obra foi conhecer a obra literária El Decameron Negro do antropólogo alemão Leo Frobenius. Conforme as palavras de Prada (2008, p. 163) o livro El Decameron Negro é uma antologia que narra feitos heróicos e fabulas de animais do povo africano. Na obra é notória a influência de ritmos afro-cubanos. Para Silva (2010), em La Balada de La Donzela Enamorada, Leo Brower faz uma alusão ao gênero son através do emprego de elementos rítmicos desse gênero. O son é um gênero musical cubano, derivado do tresillo 7. A forma da terceira parte, Balada de la Doncella Enamorada, apresenta-se em um rondó A B A C A. Busquei influência de material compositivo no trecho situado na parte B, no primeiro più mosso 8, situado no c.23. Nesse trecho ocorre uma espécie de ponteio

que se prolonga durante toda a parte B. A profusão das notas da linha do baixo, combinada ao mecanismo cíclico de repetição e variação realizada nas cordas médias foi o elemento extraído como material pré - compositivo. Figura 5 Balada de la Donzella Enamorada c.40 e Descaminhos c.95. De todos os trechos extraídos que foram sujeitos a transformações e, consequentemente, geraram novo material compositivo, o resultado sonoro do processo de tradução que envolveu este exemplo foi o mais distante, tanto em termos sonoros quanto em mecânicos e gestuais. As mudanças realizadas proporcionaram um significativo afastamento do material gerador, tornando mais difícil a associação entre o material original e o transfigurado. O aspecto que mais fortemente permaneceu foi o comportamento cíclico, promovido pelo uso do gesto repetido envolvendo legatos de mão esquerda. O ritmo do gesto transfigurado em Descaminhos acabou sofrendo variações em relação à constituição do gesto original, ao comportar-se de maneira mais linear. A aplicação de duas semicolcheias no lugar do prolongamento da colcheia, seguido da pausa de semicolcheia, somada às mudanças de articulações mecânicas determinantes no comportamento dos acentos rítmicos distanciam-se das características intrínsecas do gesto original, proporcionando assim um amplo afastamento em âmbito auditivo. Figura 6 Balada [23] e Descaminhos [96], respectivamente. O último gesto extraído como material compositivo é um trecho da obra Fuoco, de Roland Dyens. Fuoco é o terceiro movimento da obra Libra Sonatine, da qual ainda fazem parte os movimentos India e Largo.

A sonoridade de Fuoco mistura elementos da música popular, porém a sistematização desses elementos é calçada em procedimentos da música erudita, permitindo caracterizar Fuoco como uma obra esteticamente híbrida. Vicens (2009, p.21) confirma esse hibridismo na obra de Dyens afirmando que a bi-musicalidade de Dyens (...) resulta no hibridismo de suas composições e arranjos, no qual deriva da fusão de elementos de tradição clássica e popular. E acrescenta que os ritmos, harmonias e melodias da obra de Dyens partem da música popular jazz e outros gêneros, enquanto que a maneira que ele elabora e estrutura esse material provém da tradição clássica. Não é somente a pluralidade estética que está presente em Fuoco, também ocorre uma pluralidade de elementos técnicos no violão. Dentre esses elementos mecânicos se destacam: bends, batidas percussivas, slaps 9, entre outros. O trecho que me interessou como material compositivo situa-se a partir do c.40 e estende-se até o c.56. Neste trecho foi absorvido somente o gesto realizado pela mão direita, ou seja, o dedilhado, e não as notas e acordes. No gesto, o dedilhado da mão direita é constante, exercendo um movimento repetitivo. As mudanças e variações ficam a cargo da mão esquerda, na qual a cada ciclo completado pelo dedilhado da mão direita realiza trocas na harmonia. Como a harmonia do gesto existente em Fuoco é completamente alterada em Descaminhos, em termos sonoros a relação entre ambas acaba se distanciando consideravelmente. Figura 7 Fuoco [40, 41, 42] e Descaminhos [176, 176]. Considerações finais A utilização da intertextualidade como mecanismo compositivo mostrou-se, a meu ver, uma eficiente ferramenta para obtenção de materiais musicais. O fato de me utilizar de obras da literatura violonística como um meio ou caminho, direto ou indireto, na obtenção de ideias, mostra sua validade em virtude da abertura de possibilidades que ficam à disposição do compositor.

Mesmo que o compositor utilize modelos estruturais já existentes como material compositivo, isso não pressupõe que o resultado de sua criação será semelhante à original, ou que não será atribuída de singularidade. A distância estética e sonora entre a obra aspirada e a obra modelo dependerá estritamente do modo como o compositor dirige suas ideias durante o processo composicional. A utilização do processo intertextual como ferramenta na obtenção de novos materiais possibilita ao compositor uma fonte abundante de recursos e mecanismos referenciais dos quais se pode usufruir e obter soluções nos níveis mais diversos, relacionados à demanda de problemas técnico compositivos. Referências: CUMMING, Danielle. Led Zeppelin and Carlo Domeniconi: Truth without authenticity?. Faculty of Music, McGill University, Montreal. 2005. PRADA, Teresinha. Violão, de Villa-lobos a Leo Brouwer. São Paulo: Cesa Terceira Margem, 2008. SILVA, Felipe. El Decameron Negro de Leo Brouwer: epopéias do hiperromantismo. Curitiba, 2010. Dissertação de mestrado, UFPR. VINCENS, Guilherme. The arrangements of Roland Dyens and Sérgio Assad Innovations in adapting jazz standards and jazz-influenced Popular works to the solo classical guitar. 2009, 91f. Tese de doutorado. The University of Arizona. 1 A afinação tradicional do violão é estabelecida pela configuração, da primeira à sexta corda, respectivamente, Mi, Si, Sol, Ré, Lá e Mi, enquanto em Koyunbaba, a afinação das mesmas cordas é, respectivamente, Mi, Dó#, Sol#, Dó#, Sol# e Dó#. 2 A afinação que consta na partitura se estabelece meio tom acima da indicada no texto, em Ré menor. Entretanto, devido à alta tensão provocada pela afinação mais aguda das cordas primas, a maioria das interpretações de Koyunbaba inclusive a do próprio Domeniconi é executada na afinação de Dó sustenido menor. Em Descaminhos, também devido ao maior aproveitamento do registro grave, preferi optar pela afinação de Dó sustenido menor. 3 Esta obra, composta em 1986, tornou-se um standart do violão contemporâneo, principalmente depois de ter sido gravada, em 1989, pelo violonista John Willians. A obra só foi publicada no ano de 1990. 4 Prática ou procedimento musical que transita entre a estética erudita e popular. 5 A afinação do violão em Sunburst se configura com a primeira corda em Ré, a segunda afinada em Lá e a sexta corda em Ré, mais grave. As demais cordas são afinadas da maneira tradicional. A afinação aberta proporcionará um acorde de G9/D para as cordas soltas, ou até um acorde entendido como A7(9/11)/D. 6 A obra El Decameron Negro de Leo Brouwer destinada à violonista estadunidense Sharon Isbin foi composta em 1981, na terceira fase do compositor chamada Nueva Simplicidad. 7 Rítmico derivado da habanera. A clave rítmica: 8 Ocorre também um segundo più mosso, situado na parte C, especificamente no c.82. 9 O bend é uma técnica utilizada na guitarra elétrica que consiste em levantar o dedo da mão esquerda com a corda friccionada para chegar a uma nota mais aguda. O Slap é uma técnica empregada no contrabaixo elétrico e se caracteriza por extrair do instrumento sons melódicos e percussivos simultaneamente. A execução do gesto consiste em apoiar a mão nas cordas de modo que o polegar fira as cordas com o angulo lateral do dedo, enquanto que os demais dedos realizam ações percussivas puxando as cordas agudas