Sartre e a consciência no processo da construção de si: o Eu como valor e projeto

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Transcrição:

116 Sartre e a consciência no processo da construção de si: o Eu como valor e projeto Carlos Eduardo de Moura * RESUMO O texto tem como objetivo mostrar a importância do pensamento de Sartre sobre as significações em torno do conceito de sujeito, sobretudo no processo da construção de si. O homem, livre criador de valores e significações, deverá superar a angústia e o desespero inerentes às suas escolhas concretas: é a construção de seu projeto. O homem sartreano será compreendido como fundamento (projeto) de si, como desejo e falta de plenitude. É deste modo que o para-si (movimento, temporalização, processo de historialização) encontrará no mundo a possibilidade da realização de seu projeto fundamental. Caracterizado como potência de simbolização (linguagem, conhecimento), o sujeito terá na consciência (na relação consigo, com o mundo e com o Outro) o projeto de fundamento de si. Por fim, procurar-se-á relacionar conceitos morais em Sartre (autenticidade, inautenticidade, liberdade engajada, autonomia, conversão, generosidade) com a construção de um projeto consciente de si como projeto visando um fim: é o processo livre de formação da personalidade. Para se compreender as reflexões em torno deste tema, será preciso ter como pano de fundo três pressupostos fundamentais: 1º pressuposto) ao refletir-se sobre as questões em torno do conceito de sujeito, tanto na dimensão individual (singular) quanto na dimensão social (coletiva), encontrar-se-á um indivíduo diante do processo da construção de si, isto é, diante de um sujeito mergulhado no mundo e assumindo responsabilidades: eis o homem enquanto fundamento de si, enquanto projeto de si. Mas, o que seria, especificamente, projeto de fundamento? Seria o homem * Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Bolsista CAPES. E-mail: prof.carloseduardo@bol.com.br.

117 estabelecendo-se como valor dentro de uma situação concreta no mundo, criando um sentido de si a partir de suas relações com os objetos do mundo (com a matéria humanizada, significada), com o Outro e consigo mesmo. 2º pressuposto) a consciência é livre, é movimento (é intencional, é criadora de sentido, é abertura em direção ao ser, é desejo de ser, é falta de plenitude 1 ). Sendo assim, o conhecimento, a linguagem, os símbolos, os signos, intrinsecamente ligados ao desejo de construir um si (justamente pela falta de plenitude), caracterizam a relação da consciência com o mundo enquanto uma relação existencial: é o para-si desejando a totalidade e o mundo. 3º pressuposto) a liberdade é acessível pelo engajamento do indivíduo no mundo; pelo homem mergulhado na contingência, na finitude, na adversidade: é o homem em situação. Portanto, é o seu ser-no-mundo que lhe possibilita o ato criativo. Dados os pressupostos, propõe-se agora tomar como ponto de partida das reflexões em torno do tema aqui proposto, a experiência do Olhar. Mas, por qual motivo? Ora, pelo fato de que a experiência do encontro com o Outro se dá pelo Olhar (O ser e o nada, Terceira Parte: o Para-Outro, item IV: o Olhar). No entanto, é preciso lembrar que jamais haverá, por esta experiência do Olhar, uma fusão de consciências: não será possível experienciar a subjetividade do outro do mesmo que ele a experimenta, do mesmo modo que ele a vivencia. No Olhar (nesta experiência de um ser-em-par-com-outro ) 2, o Outro é objeto real e fundamenta o ser-para-outro 3 daquele que o olha: o observador não é mais o centro do universo, ele é, agora, um ser-olhado. No Olhar, portanto, o sujeito experiencia sua queda original (a passagem da soberania que era a experiência de ser um simples objeto para o Outro), de modo que o Eu (o Ego, a psyché) e o mundo (os objetos, a matéria, o conhecimento, os conceitos, as verdades, os valores, as normas) são também manipulados, utilizados e produzidos pelo Outro. Dito isto, é possível afirmar que todo conhecimento de si é uma questão de ordem 1 A ausência de fundamento ou a gratuidade da consciência será compreendida por Sartre como falta (ver Caderno XII, Diário de uma Guerra estranha). Essa falta existencial de ser é o reflexo da falta do Em-si e é essa falta (do Emsi) que possibilita a presença da consciência no mundo sob a forma do Para-si. A consciência é, enquanto desejo, potência de simbolização para mostrar o mundo. 2 SARTRE, Jean-Paul. L'être et le néant: essai d'ontologie phénoménologique. France: Gallimard, 2001, p. 292. 3 Ibidem, p. 293.

118 individual e coletiva: o sujeito individual (em sua percepção e em sua constituição de si) é colocado em jogo. Os valores, os possíveis, a ação, a materialidade (a matéria humanizada) esbarram na existência do Outro. O buscar um fundamento de si (o procurar constituir um projeto de si) passará, necessariamente, pela tensão individual-coletivo. Mas, será exatamente por esta tensão que o si se configurará como possibilidade de se instaurar uma realidade humana. O sujeito (ator/agente) buscará um fundamento de si apenas enquanto um si-emvias-de-se-fazer: não haverá substancialidade ou conteúdo na consciência. O Ego não está nem formalmente, nem materialmente na consciência: ele está fora, no mundo; é um ser do mundo, como o Ego do Outro. 4 O si é projeto que se define e se fundamenta por seu fim (futuro, possíveis; futuro/significação, passado/fundamento); ele não é o produto de uma interioridade, ele não é sustentado por nenhuma substância e não possui qualquer conteúdo: o si é escolha. Não há plenitude de ser, não há substância ou qualquer condição a priori que garanta a instauração de uma realidade humana que suprima o desejo e a falta de ser (falta de plenitude). O si, enquanto Ego, Eu, psyché, é unidade transcendental dos estados e das ações (sejam elas físicas ou psíquicas 5 ). O problema é quando o si, o Ego, o Eu, a psyché mascaram a espontaneidade da consciência. O homem é livre ( não há diferença entre o ser do homem e seu ser livre 6 ), mas, o processo de individuação e de construção de si (a busca de fundamento, o esboçar uma definição de si), somente é possível em situação: a escolha de ser no mundo coincide com a descoberta do mundo. Sem mundo não há ispseidade, não há ninguém; sem a ipseidade, não há ninguém, não há mundo. 7 O sujeito está sempre em vias de se criar um si futuro em função dos possíveis que encontra no mundo que o rodeia: o si como valor é procura (o valor como aquilo o que a consciência deseja ou uma falta que deve ser preenchida). Assim, o processo de fundamento de si se dá em situação, constituindo-se como um 4 SARTRE, Jean-Paul. La transcendance de L'Ego: Esquisse d'une description phénoménologique. Paris: VRIN, 2003. p. 13. 5 Ibidem, p. 52. 6 SARTRE, Jean-Paul. L'être et le néant: essai d'ontologie phénoménologique.france: Gallimard, 2001, p. 60. 7 Ibidem, p. 141.

119 perpétuo movimento de historialização, em que a criação de valores, de significações, de sentidos, se configura como experiência angustiante da liberdade e ainda como experiência da queda original : a aparição, entre os objetos de meu universo, de um elemento de desintegração desse universo, é aquilo o que eu chamo de aparição de um homem em meu universo. 8 O homem sartreano, por intermédio de uma consciência que não é substancial e desprovida de estrutura, se insere no mundo através da vivência de três estruturas fundamentais do ser: o Ser-em-si, o Ser-para-si e o Ser-para-outro. Tal vivência pode seguir-se segundo uma postura autêntica ou por intermédio de uma estrutura de má-fé (inautêntica). Nesta última, o sujeito procura constituir-se pela visão reflexiva de um si dotado de uma natureza fixa, estável, segura e permanente sem que, no entanto, se perca a liberdade (postura fadada ao fracasso!). Mas o homem não pode atingir seu fim (tornar-se um Em-si) porque a consciência se projeta sempre se lançando a um futuro, ela não pode tornar-se um dado estático, não pode nunca coincidir consigo mesma. A consciência jamais poderá ser como uma mesa é uma mesa, porque o sujeito tem sempre que enfrentar a angústia de sua liberdade e aceitar o fato de que não pode se estabelecer no mundo definitivamente como esse tipo de pessoa (mal por essência, justo por essência, generoso por essência). É assim que a ambição humana essencial é criar um si semelhante aos outros objetos no mundo e permanecer, ao mesmo tempo, livre. E o problema vai além, isto é, o fracasso também se dá ao procurar conceber o Outro apenas como um objeto entre outros no mundo, negando-se uma das estruturas fundamentais (uma estrutura ontológica) do ser: o ser-para-outro um Outro que também olha, nomeia, reflete e participa da construção do mundo. Mas, a consciência que o sujeito tem de si (e do mundo) torna-se, indubitavelmente, objeto para outra consciência. A consciência é, enquanto falta e desejo, potência de simbolização para mostrar o mundo. Mas isto não se realiza apenas por um indivíduo, a potência simbolizante possui uma dimensão de alteridade que diz respeito ao seu caráter não conclusivo. Isto significa que as coisas estão sob o olhar humano e precisam ser decifradas; as coisas são humanas e portadoras de significações. 8 Ibidem, p. 294.

120 O Para-si, portanto, é desejo de totalidade, desejo do mundo. É pela falta que ele se lança em direção àquilo que lhe falta, em direção ao mundo. O mundo (Em-si) é sua possibilidade e seu futuro. É na ausência de fundamento, na gratuidade, na faticidade, na falta e no desejo de constituir-se como um em-si-para-si que é possível afirmar que os valores revelam a liberdade ao mesmo tempo em que eles a alienam 9. Ora, o processo da construção de si deve passar pela dimensão da alteridade: o desejo de si, a potência de simbolização, a falta, não são condições que pertencem apenas a um indivíduo, mas também aos Outros e será na relação consciência/mundo que se produzirá conhecimento, linguagem, significações, sentidos, valores, matéria humanizada, permitindo ao homem agir sobre o já criado: será neste contexto que o sujeito buscará constituir o fundamento de si. Será por meio desta tensão (indivíduo-coletivo) que se poderá falar de autenticidade, pois Ser autêntico é realizar plenamente seu ser-em-situação 10 e toda situação implicará nesta relação tensional entre a singularidade de um sujeito e sua relação com o universal. Em O ser e o nada 11 Sartre nos mostra que a liberdade é ação e autonomia de escolha: é a auto-criação do Para-si movendo-se no mundo e, ao mesmo tempo, transcendendo-o. A liberdade do indivíduo apenas será acessível pelo engajamento de sua consciência no mundo e toda ação, ao longo da construção de si, não encontrará nenhum princípio a priori que poderá tirar-lhe a autonomia. O homem autêntico, portanto, será aquele que mergulhará na contingência e na finitude e em seu ser-no-mundo e será a própria adversidade que lhe proporcionará seu ato criativo. A angústia habita aquele que toma consciência de que é necessário continuar a agir, mesmo que não conheça ou domine sempre as conseqüências de suas ações. Mas é aqui que o sujeito constrói, ao contrário de um pessimismo ou de um mero quietismo, uma duração otimista 12, colocando-o na dimensão da responsabilidade da criação de sentido e afirmando a sua liberdade de criá-lo ou não. Jean-Paul Sartre é acusado de pessimista quando insiste no capítulo Les relations 9 SARTRE, Jean-Paul. Cahiers pour une morale. Paris: Éditions Gallimard, 1983, p. 16. 10 SARTRE, Jean-Paul. Les Carnets de la Drôle de Guerre: Novembre 1939-Mars 1940. France: Gallimard, 1983, p. 72. 11 SARTRE, Jean-Paul. L'être et le néant: essai d'ontologie phénoménologique. France: Gallimard, 2001, pp. 528-529. 12 SARTRE, Jean-Paul. L existentialisme est un humanisme. Paris: Gallimard, 1996, p. 53.

121 concrètes avec autrui em L être et le néant sobre a inevitabilidade do conflito nas relações, acusam-no de uma ontologia negativa das relações interpessoais. Mas ele mesmo sugere, em uma nota de rodapé bem instigante, que essas considerações não poderiam excluir a possibilidade de uma moral da libertação e da salvação e que deveria ser alcançada em termos de uma conversão radical a uma valorização da liberdade. 13 Pela conversão radical, o sujeito abandona a idéia de que a liberdade substantiva é possível, conduzindo-o a renunciar a manipulação, a supressão ou a degradação do Outro, já que ele passa a ter a consciência de que o Outro jamais poderá contribuir para a substancialização de seu si. A conversão radical é marcada pela valorização do processo de criação de valor, sempre renunciando a criar um si substantivo e compreendendo que os valores são dados (transcendentes) que dependem da subjetividade humana. O sujeito não pode ser visto como sendo apenas um produto de forças passadas (hereditariedade, condições naturais e culturais), mas sim um sujeito livre, capaz de criar sentido e de resistir às mudanças ou mesmo permiti-las. A história de uma vida, qualquer que seja, é a história de um fracasso. O coeficiente de adversidade das coisas é tal que é preciso anos de paciência para obter o mais ínfimo resultado. Ainda é preciso obedecer a natureza para comandá-la, isto é, inserir minha ação nas malhas do determinismo. 14 As questões em torno da experiência de si encontram respostas por meio de interrogações que examinam o vivido em suas estruturas fundamentais, abrindo-se na perspectiva concreta da vida do sujeito, à sua história, aos outros, às suas experiências vividas, fazendo esse sujeito ser aquilo o que ele é: questionar o mundo, a consciência, as determinações materiais e históricas da praxis, conduz o homem à compreensão da subjetividade. Talvez estes sejam alguns dos caminhos possíveis para se compreender melhor as contribuições de Sartre sobre as questões em torno do conceito de sujeito na dimensão individual e social e no processo de formação da personalidade, temas essenciais ao 13 SARTRE, Jean-Paul. L être et le néant: essai d ontologie phénoménologique. Paris: Gallimard, 2001, p. 453. 14 Ibidem, p. 527.

122 enriquecimento de numerosas disciplinas acadêmicas (antropologia, ciências sociais, psicanálise, psicologia). O estudo é necessário, basta ter a coragem de lançar os dados! BIBLIOGRAFIA SARTRE, Jean-Paul. La transcendance de L'Ego: Esquisse d'une description phénoménologique. Paris: VRIN, 2003.. L'être et le néant: essai d'ontologie phénoménologique. France: Gallimard, 2001.. L existentialisme est un humanisme. Paris: Gallimard, 1996.. Cahiers pour une morale. Paris: Éditions Gallimard, 1983.. Les Carnets de la Drôle de Guerre: Novembre 1939-Mars 1940. France: Gallimard, 1983.