PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS CRIMINAIS DIEGO ROMERO

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Transcrição:

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS CRIMINAIS DIEGO ROMERO APONTAMENTOS SOBRE OS CRIMES DE PERIGO NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA DISSERTAÇÃO DE MESTRADO Porto Alegre 2007

DIEGO ROMERO APONTAMENTOS SOBRE OS CRIMES DE PERIGO NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA Dissertação de Mestrado para obtenção do título de Mestre em Ciências Criminais Programa de Pós- Graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Orientador: Dr. Fábio Roberto D Avila Porto Alegre 2007

DIEGO ROMERO APONTAMENTOS SOBRE OS CRIMES DE PERIGO NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA Dissertação de Mestrado para obtenção do título de Mestre em Ciências Criminais Programa de Pós- Graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Aprovada em de de 2007 BANCA EXAMINADORA Prof. Dr. Orientador: Dr. Fábio Roberto D Avila Prof. Dr. Paulo Vinicius Sporleder de Souza Prof. Dr. Ângelo Roberto Ilha da Silva

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) R763a Romero, Diego Apontamentos sobre os crimes de perigo na sociedade contemporânea / Diego Romero. Porto Alegre, 2007. 123 f. Diss. (Mestrado em Ciências Criminais) Direito, PUCRS Orientador: Dr. Fábio Roberto D Avila Fac. de Bibliotecária Responsável: Salete Maria Sartori, CRB 10/1363

RESUMO O presente trabalho analisou a proliferação dos crimes de perigo na sociedade contemporânea como forma encontrada pelo legislador para tentar estancar a criminalidade oriunda da sociedade posta na atualidade: globalizada e do risco. Para este fim, realizou-se uma revisão bibliográfica. A investigação compreendeu a forma pela qual a sociedade contemporânea tem se caracterizado, o fenômeno da globalização, o incremento da técnica na pós-modernidade, a formação de uma sociedade do risco e a mudança de paradigma que o conceito de risco incutiu na ciência jurídica provocando a ascensão de um Direito Penal do Risco e umas das suas conseqüências: a excessiva edição de tipos de perigo. A pesquisa toma forma a partir da análise crítica do Direito Penal e da sociedade em que vivemos, verificando os vínculos criados e desenvolvidos entre ambos. Busca verificar os fundamentos discursivos da política criminal contemporânea, mormente a centrada no paradigma do risco, e sua interação com a dogmática penal. O trabalho se enfeixa na linha de pesquisa do curso que analisa os sistemas jurídico-penais contemporâneos. Palavras-Chave: Direito Penal, Globalização, Risco, Perigo.

RESUMEM El presente trabajo analizó la proliferación de los crímenes de peligro en la sociedad contemporánea como forma encontrada por el legislador para intentar estancar la criminalidad oriunda de la sociedad puesta en la actualidad: globalizada y del riesgo. Para este fin, se realizó una revisión bibliográfica. La investigación comprendió la forma por la cual la sociedad contemporánea se ha ido caracterizando, el fenómeno de la globalización, el incremento de la técnica en la pos-modernidad, la formación de una sociedad de riesgo y el cambio del paradigma que el concepto de riesgo encuito en la ciencia jurídica provocando la ascensión de un derecho penal de riesgo y una de sus consecuencias: la excesiva edición de tipos de peligro. La pesquisa toma forma a partir del análisis crítico del derecho penal y de la sociedad en que vivimos, verificando los vínculos creados y desenvueltos entre ambos. Busca verificar los fundamentos discursivos de la política criminal contemporánea, moramente la centrada en el paradigma del riesgo, y su interacción con la dogmática penal. El trabajo se enfaja en la línea de pesquisa del curso que analiza los sistemas jurídico-penales contemporáneos. Palabras-llave: Derecho Penal, Globalización, Riesgo, Peligro.

SUMÁRIO I. APONTAMENTOS INICIAIS... 10 II. MIRANDO O CENÁRIO... 16 2.1 A pós-modernidade... 17 2.1.1 Globalização: o fim das fronteiras econômicas, políticas e culturais... 21 2.1.2 A invasão da informática... 34 2.1.3 A sociedade do consumo: a desmaterialização da realidade... 39 2.1.4 A mídia... 43 2.1.5 A insegurança do sujeito... 46 III. FOCALIZANDO O ALVO... 49 3.1 A aceleração da técnica e o incremento do risco na contemporaneidade... 49 3.2 A Sociedade do Risco... 54 3.3 O Direito Penal da Sociedade do Risco... 64 3.3.1 As excessivas incriminações do perigo como fenômeno do Direito Penal da Sociedade do Risco... 72 IV. ESTANCANDO O PROBLEMA (UMA TENTATIVA)... 79 4.1 A incriminação do Perigo no curso da história... 79 4.2 Perigo: uma ferramenta de poder na pós-modernidade... 85 4.3 Crimes de dano e crimes de perigo... 91 4.3.1 Breves noções sobre o bem jurídico... 92 4.3.2 Distinção entre crimes de dano e crimes de perigo... 94 4.3.3 Subsidiariedade dos crimes de perigo em relação aos crimes de dano... 95

4.4 Tipos de perigo e teorias sobre os crimes de perigo... 96 4.5 O dolo de perigo... 98 4.6 Os crimes de perigo concreto: conceito e características... 99 4.7 Apontamentos sobre os crimes de perigo abstrato e sua função na antecipação da tutela penal... 101 V. APONTAMENTOS FINAIS... 112 VI. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS... 115

I APONTAMENTOS INICIAIS O presente trabalho pretende analisar acerca dos crimes de perigo na sociedade contemporânea, para, de alguma forma, demonstrar os elos entre a excessiva edição deste tipo delito e o período em que vivemos. Para isso, iniciaremos fazendo uma análise da sociedade na qual estamos envoltos e inseridos, pois é incontestável que, hodiernamente, a sociedade mundial ou a aldeia global - sincronizando o termo com nosso tempo - tem passado por inúmeras e profundas transformações. O sociólogo português Boaventura de Souza SANTOS, de forma magnífica, sobre o nosso tempo, escreveu que: Vivemos num tempo atônito que ao debruçar-se sobre si próprio descobre que os seus pés são um cruzamento de sombras, sombras que vêm do passado que ora pensamos já não sermos, ora pensamos não termos ainda deixado de ser, sombras que vêm do futuro que ora pensamos já sermos, ora pensamos nunca virmos a ser. 1 Estamos submersos numa época aturdida, de transição, na qual a ambigüidade e a complexidade provocam o descompasso dos que vivem e interagem na sociedade planetária. Nesta época, como afirma Antônio Carlos WOLKMER que os grandes discursos e as narrativas norteadoras que deram 1 SANTOS, Boaventura Souza. Um Discurso Sobre as Ciências. 13ª Edição. Porto: Edições Afrontamentos, 2002, p. 07.

fundamentação às formas de saber, ao modo de organização da vida, à regulação dos procedimentos comportamentais, às práticas uniformes de representação social e às configurações centralizadas da estrutura de poder passaram por questionamentos radicais, por processo de descentralização, por múltiplas redefinições e por realidades emergenciais. 2 Num tempo, de transição entre uma sociedade industrial e uma sociedade digital, entre uma sociedade nacional e uma sociedade global, entre a lógica-formal cartesiana e a cultura dos espaços virtuais, plurais e fragmentados. Estamos envoltos em uma sociedade de risco, na qual o homem e o planeta vivem cercados pelo perigo, decorrente do exacerbado avanço tecnológico desprovido da consciência da finitude dos recursos naturais. Riscos oriundos da crença de uma técnica perfeita, capaz de resolver todos os problemas do homem e do lugar onde ele habita. Riscos vindos do pensamento calcado na esperança de que a capacidade humana pode resolver todos os infortúnios. O certo é que vivemos numa sociedade em que a percepção e a reflexão do risco aumentaram, e a conseqüência óbvia desta constatação é a tentativa desenfreada de redução destes riscos que, por sua vez, debruça sua confiança no conhecimento técnico. Ocorre, todavia, que a percepção e a reflexão do risco aumentaram no mesmo grau em que a confiança na ciência diminuiu. Fato que trouxe medo ao corpo social, haja vista a dificuldade, a complexidade e a impossibilidade de se lidar com determinadas ocorrências. Este sentimento de insegurança real, emergente da própria sociedade do risco é potencializado pelos meios de comunicação, tendo em vista ser esta sociedade a da informação. 2 WOLKMER, Antônio Carlos e LEITE, José Rubens Morato. Os Novos Direitos no Brasil: Natureza e Perspectivas. São Paulo: Saraiva. 2003, p. VII.

E notório que entre rupturas e continuidades, entre novos riscos e velhas seguranças, entre mal-estares conhecidos e mal-estares desconhecidos, entre emergências e inércias 3, a sociedade queixa-se da falta de mecanismos de travagem, sistemas de direção, de previsão, de um ponto de ancoragem, a fim de se libertar das ameaças conhecidas de catástrofes, já que é impossível reduzir sua probabilidade, mesmo sabendo de onde elas brotam, quais são os problemas a enfrentar e quem são os perpetradores. Nesta senda, a ciência jurídica é convocada a dar respostas sobre os novos temas da sociedade pós-moderna: danos imprevisíveis e não subsumíveis às coordenadas do tempo e espaço, exigências da globalização e da integração supranacional, reforçadas pela quebra de barreiras jurídicas na circulação de pessoas e bens e efetiva punição dos infratores (pessoas/agentes/grupos). Da análise destes pontos, percebe-se que o direito tradicional-liberalantropocêntrico (paradigma das sociedades democráticas industriais do fim do século XX) não tem condições de conter esta nova criminalidade ou até mesmo fazer frente a esta nova ordem, pois o fenômeno global está a modificar a realidade local de forma instantânea. De tudo isso se conclui, que existe uma nova demanda de modelos jurídicos sendo arquitetada pela sociedade contemporânea, pois o catálogo conceitual clássico-iluminista desta ciência não consegue mais responder aos anseios da sociedade do risco, devendo, por conseguinte o direito sofrer um processo de adaptação e mutação para se enquadrar nesta nova realidade. Contudo, a resposta do Estado tem sido a da concepção de um Direito Penal cada vez mais punitivo, preventivo e hipertrofiado. Um destes efeitos 3 SANTOS, Boaventura de Souza. A Globalização e as Ciências Sociais. São Paulo: Cortez, 2002, p. 11.

traduz-se na abundante utilização de tipos penais de perigo, em contraposição aos de lesão/dano, paradigmas do Direito Penal Clássico. Essa técnica legislativa e político-criminal das últimas décadas, mormente das duas últimas, quando a sociedade global tomou consciência dos riscos e ameaças que caracterizam o processo de mundialização do planeta, suscita não só conflitos com princípios fundamentais da ciência penal, senão também sérios e graves problemas de legitimação do ius puniendi, de sua fundamentação e de seus limites, já que a criminalização com uso da técnica dos tipos de perigo, especificamente os de perigo abstrato, traduz-se em flagrante antecipação da punição criminal. HASSEMER, com muita propriedade, expõe que o [...] instrumento do moderno Direito Penal, o qual serve claramente a uma ampliação de sua capacidade, é a forma delitiva dos crimes de perigo abstrato. Uma breve análise do Código Penal já nos adverte que o crime de perigo abstrato e a forma delitiva da modernidade. Os crimes de perigo concreto ou os crimes de dano parecem estar ultrapassados. 4 Então, tentando dar uma solução para esta crise da sociedade, o Direito Criminal é chamado em primeira mão, e levado a trabalhar cada vez mais com os crimes de perigo, e muito mais com os de perigo abstrato, que abrangem no muito das vezes situações prévias ao crime (punem o pré-delito), visando estancar condutas antieconômicas, por exemplo, que possam ofender ou por em perigo determinada ordem econômica ou seu sistema financeiro. No entanto, este alargamento do uso de tipos preventivos constitui-se em notória contradição aos princípios do Direito Penal Liberal que sempre primou pela punição do resultado efetivamente lesivo ao bem jurídico tutelado. 4 HASSEMER, Winfried. Características e Crises do moderno Direito Penal. In: Revista de Estudos Criminais -!TEC, Ano 02, nº 08, Porto Alegre: Editora Nota Dez, 2001, p. 54.

A presente pesquisa buscará, pois, examinar a proliferação dos crimes de perigo como forma encontrada pelo legislador para tentar barrar a criminalidade oriunda da sociedade posta na atualidade: globalizada e do risco. Assim, no primeiro momento, analisar-se-á o cenário no qual estamos envolvidos, ou seja, a forma pela qual a sociedade contemporânea vem se caracterizando, o fenômeno da globalização, a revolução da informática, o poder manipulador da mídia, a sociedade de consumo e a insegurança que este movimento realizado pela sociedade, de mutação de formas e conceitos, gera no indivíduo. Na segunda parte, abordaremos a questão do incremento da técnica na contemporaneidade e a formação de uma sociedade do risco, uma sociedade que se põe em perigo por suas próprias decisões. Seguindo no capítulo, veremos que este reconhecimento do risco pelo corpo social incutiu na ciência jurídica uma mudança de paradigma e o resultado disto foi a ascensão de um Direito Penal do Risco, que, por sua vez, tem como um dos seus principais vetores de atuação a proliferação dos tipos de perigo. No último estágio, tentaremos demonstrar que a excessiva edição de tipos de perigo tem o objetivo de estancar o movimento que a sociedade pós-moderna desenvolveu a partir das transformações demonstradas nos capítulos anteriores. Iniciaremos o capítulo colacionando um histórico do perigo na ciência jurídicopenal, após mostraremos que o perigo é uma ferramenta de poder na sociedade contemporânea. Em seguida, faremos uma análise dos aspectos dogmáticos dos crimes de perigo, debatendo sobre as diferenças entre os crimes de perigo e os crimes de dano, os conceitos de crimes de perigo concreto e abstrato e a fundamentação da existência deste último e de sua proliferação na atualidade. A pesquisa toma forma a partir da análise crítica do Direito Penal e da sociedade em que vivemos, verificando os vínculos criados e desenvolvidos entre

ambos. Busca verificar os fundamentos discursivos da política criminal contemporânea, mormente a centrada no paradigma do risco, e sua interação com a dogmática penal. Por derradeiro, o trabalho se enfeixa na linha de pesquisa do curso que analisa os sistemas jurídico-penais contemporâneos.

V APONTAMENTOS FINAIS No percurso do trabalho, buscamos estabelecer algumas considerações históricas, sociológicas e dogmáticas acerca da proliferação dos crimes de perigo na sociedade contemporânea. Percebe-se que é inegável que o avanço da técnica e o conseqüente aumento de sofisticação da vida na sociedade contemporânea, principalmente das atividades econômicas, das relações de consumo, das relações humanas, do acesso a informação, da intervenção do Estado na vida das pessoas, do incremento e da percepção do risco, ocasionaram uma mutação no Direito Penal pelo fato de se considerar como resultados penalmente puníveis o que anteriormente eram consideradas meras situações de risco. Esta virada conceitual tem a clara finalidade de produzir um impacto tranqüilizador sobre a opinião pública, acalmando os sentimentos incontroláveis de insegurança. Nota-se que, paulatinamente, na ânsia de aumentar a segurança social e recuperar a ordem, violando a sistemática clássica do Direito Penal, e adotando-se a idéia do Direito Penal do Risco, haja vista a percepção de uma sociedade cercada de riscos, passou-se a compreender que até mesmos resultados mais remotamente prováveis ou até apenas possíveis, segundo um juízo hipotético, deveriam ser considerados como puníveis, desde que pudessem causar potencialmente esse perigo. Verifica-se que cada vez mais se acentua uma ideologia punitiva, ampliando o campo das condutas penalmente puníveis, mesmo sem estarem ligadas a um resultado danoso, ou sem apresentarem uma direta, ou perceptível, situação de dano próximo. E a técnica de tipificação mais compatível com esses anseios de antecipação máxima da proteção penal seria a criminalização antecipada do perigo,

a fim de se evitar que o planeta não seja exposto a riscos oriundos de decisões humanas ou catástrofes anunciadas advindas da natureza. Em relevo, pois, um dos traços mais evidentes do Direito Penal hipertrofiado, qual seja, a adiantada ou antecipada punição de algumas condutas frente ao que tradicionalmente foi considerado seu núcleo básico: a lesão. Essa destacada tendência da político-criminal da sociedade contemporânea, sociedade esta consciente dos riscos e ameaças que caracterizam o processo de globalização, suscita não só conflitos com princípios fundamentais da ciência penal e do direito constitucional, senão também sérios e graves problemas de legitimação, fundamentação e dos limites da pretensão punitiva estatal, que, agora, procura desesperadamente manter a vigência da sua legislação. Orientado, dentre outras coisas, pelo abundante uso de delitos de perigo, mormente de perigo abstrato, como forma de estabelecer que o crime decorra de uma previsão conceitual, ligada à ideologia da segurança e aos interesses de um estado poderoso que busca recuperar a idéia de controle, o Estado tenta manter o poder a partir de uma demonstração de força. Essa demonstração de força fica mais clara quando, nas palavras de Nilo BATISTA: renuncia-se a certeza sobre uma transgressão demonstrável, e converte-se a mera suspeita em título legitimante da intervenção do poder punitivo 5, fazendo com que o criminalista mire seus olhos na busca da prevenção, ao revés de trabalhar com efetiva lesão ao bem jurídico. Ao que parece, os crimes de perigo, notadamente os de perigo abstrato, são aqueles sinais de controle que mencionamos no início do caminho, que são simbolicamente emanados pelo legislador e levados a efeito pelas demais instituições jurídicas, visando restabelecer a sensação de segurança e a ordem. 5 CABRAL, Juliana. Os tipos de perigo e a pós-modernidade: uma contextualização histórica da proliferação dos tipos de perigo no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Revan. 2005, p.12

Neste sentido, JAKOBS refere que o que a elevação dos crimes de perigo abstrato a mera infração contra a ordem pública (como mera perturbação, ou ao menos principalmente perturbação da ordem) a delito criminal (como ataque contra a identidade social) se fez contando com boas razões para isso, ou, ao contrário, se fez de modo intervencionista. 6 Prossegue o penalista alemão referindo que o que se busca na tipificação de delitos de perigo abstrato é a de manutenção da vigência da norma 7. Portanto, percebe-se claramente que, para além dos debates que cercam a eficiência ou ineficiência da ciência penal como instrumento de tutela dos novos riscos na sociedade global, o que resta evidente é que o perigo é uma ferramenta de poder na contemporaneidade. É o sinal que o Estado tenta enviar aos seus súditos para recuperar a sensação da vivência subjetiva da segurança. 6 JAKOBS, Günther. Sociedade, Norma e Pessoa: teoria de um direito penal funcional. Tradução de Maurício Antonio Ribeito Lopes. Barueri, SP: Manole, 2003, p. 25/26. 7 Idem, p. 27.