O TOMBAMENTO COMO FORMA DE PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL Vagner BERTOLI 1



Documentos relacionados
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

A Preservação do Patrimônio Cultural na Esfera Municipal

Dúvidas e Esclarecimentos sobre a Proposta de Criação da RDS do Mato Verdinho/MT

PODER JUDICIÁRIO JUSTIÇA FEDERAL SEÇÃO JUDICIÁRIA DO RIO DE JANEIRO. 29ª Vara Federal do Rio de Janeiro

AULA 01. Esses três primeiros livros se destacam por serem atualizados pelos próprios autores.

1. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE: PREVISÃO CONSTITUCIONAL

POLÍTICA NACIONAL DO MEIO AMBIENTE

Vice-Presidência de Engenharia e Meio Ambiente Instrução de trabalho de Meio Ambiente

REGULAMENTO DE VIAGEM DE ESTUDOS

A configuração da relação de consumo

RESUMIDAMENTE ESTAS SÃO AS DIFERENÇAS BÁSICAS ENTRE A CLASSIFICAÇÃO DOS TRIBUTOS:

EDUCAÇÃO AMBIENTAL E O ESTADO DE DIREITO DO AMBIENTE 1. Domingos Benedetti Rodrigues 2.

Validade, Vigência, Eficácia e Vigor. 38. Validade, vigência, eficácia, vigor

BuscaLegis.ccj.ufsc.Br

AS PROFISSÕES DE CONTADOR, ECONOMISTA E ADMINISTRADOR: O QUE FAZEM E ONDE TRABALHAM

Considerando que o Decreto-Lei 25/37 veda a destruição de bens culturais tombados (art. 17);

Gabarito 1 Gabarito 2 Gabarito 3 Gabarito E E E E PARECER

Terceiro Setor, ONGs e Institutos

LEGISLAÇÃO APLICADA A AQUICULTURA

TRATADOS INTERNACIONAIS E SUA INCORPORAÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO 1. DIREITOS FUNDAMENTAIS E TRATADOS INTERNACIONAIS

CONGRESSO INTERNACIONAL INTERDISCIPLINAR EM SOCIAIS E HUMANIDADES Niterói RJ: ANINTER-SH/ PPGSD-UFF, 03 a 06 de Setembro de 2012, ISSN X

PRINCÍPIO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL

SOCIEDADE E TEORIA DA AÇÃO SOCIAL

Regulação municipal para o uso de espaços públicos por particulares e pelo próprio Poder Público. Mariana Moreira

Monitora: Luiza Jungstedt. Professor: Luíz Oliveira Castro Jungstedt

DO CARTÓRIO DE REGISTRO DE IMÓVEIS. Curso de Técnico em Transações Imobiliárias Curso Total

SOCIEDADE EMPRESÁRIA

PARECER Nº 001/JBBONADIO/2009. Assunto: Pedido de Inscrição de pessoa jurídica com a indicação de dois responsáveis técnicos.

O Dever de Consulta Prévia do Estado Brasileiro aos Povos Indígenas.

CENTRO UNIVERSITÁRIO DO DISTRITO FEDERAL - UniDF PRÓ-REITORIA DE GESTÃO ACADÊMICA PRGA CENTRO DE TECNOLOGIA EDUCACIONAL CTE DIREITO AMBIENTAL

DIREITO ADMINISTRATIVO

O DESPACHANTE, O AJUDANTE E A RFB. Domingos de Torre

ROTEIRO PARA ELABORAÇÃO DE PROJETOS

ORIENTAÇÕES SOBRE O CONTEÚDO DO PROJETO

1. Do conjunto normativo que disciplina a criação de sindicatos e a filiação dos servidores públicos

ROTEIRO DE ESTUDOS DIREITO DO TRABALHO TERCEIRIZAÇÃO

INFORMAÇÃO PARA A PREVENÇÃO

Prova Objetiva Disciplina: Direito Civil

A atividade contábil e o ISS

CONDICIONAR A EXPEDIÇÃO DO CRLV AO PAGAMENTO DE MULTAS É LEGAL?

Projeto de Lei do Senado nº., de O CONGRESSO NACIONAL decreta:

Lei /08 A NOVA LEI DE CONSÓRCIOS. Juliana Pereira Soares

PERGUNTAS E RESPOSTAS NOVAS REGRAS PARA ESCOLHA DE BENEFICIÁRIOS

GUIA DE ESTUDOS INSS NOÇÕES DE DIREITO ADMINISTRATIVO FÁBIO RAMOS BARBOSA

ASPECTOS DA DESAPROPRIAÇÃO POR NECESSIDADE OU UTILIDADE PÚBLICA E POR INTERESSE SOCIAL.

Resgate histórico do processo de construção da Educação Profissional integrada ao Ensino Médio na modalidade de Educação de Jovens e Adultos (PROEJA)

TRABALHOS TÉCNICOS Divisão Jurídica SOCIEDADES SIMPLES E EMPRESARIAS ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ATUAIS. Cácito Augusto Advogado

PEDIDOS DE AUTORIZAÇÃO PARA RETIRADA DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES ACOLHIDAS DAS ENTIDADES ORIENTAÇÕES TÉCNICAS DO CAOPCAE/PR

REGISTRO DE CASAMENTO DE MORTO

O CONGRESSO NACIONAL decreta:

DIREITO EMPRESARIAL PROFESSORA ELISABETE VIDO

Exceção: Art. 156, 3º, II, CF c/c LC 116/03 Vedação da incidência de ISS na exportação de serviços para o exterior.

ITBI - recepção parcial dos dispositivos do CTN Kiyoshi Harada*

ANEXO 5 TERMO DE CONSTITUIÇÃO DE CONSÓRCIO

MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE

OS CONHECIMENTOS DE ACADÊMICOS DE EDUCAÇÃO FÍSICA E SUA IMPLICAÇÃO PARA A PRÁTICA DOCENTE

REGULAMENTO DO CONCURSO INTERNACIONAL DE VÍDEO MINHA CIDADE, MEU PATRIMÔNIO MUNDIAL

INDENIZAÇÃO CONTRATUAL EXIGIDA PELA LEI INTERMUNICIPAL DE PASSAGEIROS

Gerenciamento Total da Informação

Controladoria-Geral da União Ouvidoria-Geral da União PARECER. Recurso contra decisão denegatória ao pedido de acesso à informação. Sem restrição.

O CÔMPUTO DO TEMPO DE PERCEBIMENTO DO SEGURO-DESEMPREGO PARA FINS DE APOSENTADORIA

CÂMARA DOS DEPUTADOS Gabinete do Deputado Federal Francisco Everardo TIRIRICA

IMPOSTO DE RENDA E O ARTIGO 43 DO CTN

EFICÁCIA E APLICAÇÃO DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS

O DÍVORCIO E A SEPARAÇÃO JUDICIAL NO BRASIL ATUAL: FACILIDADES E PROBLEMAS RESUMO

11/11/2010 (Direito Empresarial) Sociedades não-personificadas. Da sociedade em comum

COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA DA ESCOLA DE SAÚDE PÚBLICA DO CEARÁ

BuscaLegis.ccj.ufsc.br

BARDELLA S/A INDÚSTRIAS MECÂNICAS CNPJ/MF Nº / COMPANHIA ABERTA

SOLUÇÃO DE CONSULTA COSIT (COORDENAÇÃO-GERAL DE TREIBUTAÇÃO DA RECEITA FEDERAL) Nº 226, DE 2015 COMENTÁRIOS

Noções Gerais das Licitações

1. REGISTRO RESTRIÇÕES PARA ATUAR COMO EMPRESÁRIO INDIVIDUAL. Falido:... Estrangeiro:... Médico:... Advogado:... Membros do legislativo:...

PROJETO DE LEI Nº. Dispõe sobre a regulamentação da profissão de Produtor Cultural, Esportivo e de Ações Sociais. O Congresso Nacional Decreta:

EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS Instrução Normativa Diretoria Executiva 01/2007 (IN-DE-FAURG 01/2007)

Paula Freire Faculdade Estácio de Sá Ourinhos 2012

PRIMEIRA PARTE DA PROVA DISCURSIVA (P 2 )

COMISSÃO DE TRABALHO, DE ADMINISTRAÇÃO E SERVIÇO PÚBLICO PROJETO DE LEI Nº 4.481, DE 2012 VOTO EM SEPARADO DO DEPUTADO ROBERTO SANTIAGO

AUTORIZAÇÃO DE USO DE BEM PERMANENTE EM AMBIENTE EXTERNO A UFRB

Parecer Consultoria Tributária Segmentos Controle de Ponto do Trabalhador terceirizado

Universidade Federal do Rio Grande do Sul Porto Alegre Brasil University of New South Wales Sydney Austrália Universidade do Povo Macau - China

LEI Nº 8.159, DE 8 DE JANEIRO DE O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte lei:

CONCEITO E EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO ECONÔMICO CONCEITO DE DIREITO ECONÔMICO SUJEITO - OBJETO

COMISSÃO DE CONSTITUIÇÃO E JUSTIÇA E DE REDAÇÃO PROJETO DE LEI Nº 5171, DE 2001

Excelentíssimo Dr. Roberto Monteiro Gurgel Santos, DD. Presidente do Conselho Nacional do Ministério Público:

INSTITUTO DE PREVIDÊNCIA DOS SERVIDORES DO MUNICÍPIO DE GUARAPARI / ES IPG

COMISSÃO DE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

PROJETO DE LEI Nº, DE 2011 (Do Sr. Aguinaldo Ribeiro)

Interpretação do art. 966 do novo Código Civil

Resumo das Interpretações Oficiais do TC 176 / ISO

Novas formas de prestação do serviço público: Gestão Associada Convênios e Consórcios Regime de parceria- OS e OSCIPS

BuscaLegis.ccj.ufsc.br

36) Levando-se em conta as regras da Lei 8.112/90, analise os itens abaixo, a respeito dos direitos e vantagens do servidor público federal:

PROJETO DE RESOLUÇÃO Nº 22/2011

CONTRIBUIÇÕES ESPECIAIS OU PARAFISCAIS (Art.149 c/c 195, CF)

Noções Básicas de Direito para Servidores Públicos: Aspectos Práticos

ACORDO DE RECIFE ACORDO PARA A APLICAÇÃO DOS CONTROLES INTEGRADOS EM FRONTEIRA ENTRE OS PAÍSES DO MERCOSUL

Legislação e tributação comercial

As Questões Ambientais do Brasil

Transcrição:

O TOMBAMENTO COMO FORMA DE PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL Vagner BERTOLI 1 RESUMO: O tombamento como instituto constitucional, que visa preservar o patrimônio ambiental para as futuras gerações. PALAVRAS-CHAVE: Constituição; Tombamento; Preservação; Futuras Gerações. Introdução O tombamento é um instituto constitucional que toma possível a intervenção do Poder Público na esfera privada (direito de propriedade) para proteger o patrimônio ambiental, por meio da preservação de obras e locais de valor histórico, arqueológico, estético e paisagístico, bem como dos documentos, impedindo, assim, a sua destruição ou descaracterização. 1. O Tombamento Historicamente, o instituto do tombamento remonta ao século XII, em Portugal, onde havia preocupação em preservar documentos relativos a bens móveis ou imóveis, de relevante importância histórica ou artística. Diga-se, inclusive, que o nome tombamento deriva de Torre do Tombo, do Castelo de São Jorge, em Lisboa, local em que se guardavam os documentos que deveriam ser preservados. E é exatamente neste sentido que se usa, até hoje, o termo tombamento : registrar os fatos importantes relativos a bens imóveis ou não. Tanto que os assentos referentes ao tombamento são realizados no Livro do Tombo, nomenclatura usada, inclusive, pelo legislador pátrio. Anote-se, também, que a doutrina segue o mesmo caminho. No entender de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, citado pelo eminente ambientalista Paulo Affonso Leme Machado, defme tombamento: É urna intervenção ordenadora e concreta do Estado na propriedade privada, limitativa de exercício de Direitos de utilização e de disposição gratuita, permanente e indelegável, destinada à preservação, sob regime especial de cuidados, dos bens de valor histórico, arqueológico, artístico e paisagístico (1996: p. 647). No mesmo passo, a Secretaria Estadual da Cultura do Governo de São Paulo, em sua página na Intemet, define tombamento como: 1 Mestre em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito de Bauru - ITE. Professor de Direito Constitucional no Curso de Direito da Faculdade Eduvale de Avaré.

(..,) uni conjunto de ações realizadas pelo poder público com o objetivo de preserva,; através da aplicação de legislação específica, bens de valor histórico, cultural, arquitetônico, ambiental e também de valor afetivo para a população, inzpedindo que venham a ser destruídos ou descaracterizados. (http://www.prodam.sp.gov.br/dphlpreserva!prtomb.htm). No Brasil, antes da edição do decreto-lei n 25/37, que visou à organização e à proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, o assunto era tratado em normas individuais (em relação a cada bem a ser tombado). Assim, dada à necessidade de se criar uma disciplina uniforme sobre as edificações, obras de arte, parques arqueológicos e sítios naturais, abarcando todo bem que pudesse ser considerado patrimônio de interesse nacional, o referido decreto-lei ampliou a extensão do conceito de bens que podem ser objeto de tombamento. Confira-se, neste sentido, o seu artigo 1 que, in verbis: Art. 1º Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no País e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vincula ção afatos memoráveis da história do Brasil, quer por excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico. 1ºo Os bens a que se refere o presente artigo só serão considerados parte integrante do patrimônio histórico e artístico nacional depois de inscritos separada ou agrupadamente num dos quatro Livros do Tombo, de que trata o Art. 4 desta lei. Equiparam-se aos bens a que se refere o presente artigo e são também sujeitos a tombamento os monumentos naturais, bem como os sítios e paisagens que importe conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pela natureza ou agenciados pela indústria humana. Com efeito, o decreto-lei n 25/37 foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, qual, inclusive, no seu art.216, parágrafo primeiro consagrou o tombamento como uma das formas de acautelamento e preservação do patrimônio cultural brasileiro. 2. Patrimônio Cultural Ao tratar da cultura, o constituinte houve por bem conceituar patrimônio cultural em seu artigo 216. Verifique-se: Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmnente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: 1. asforinas de expressão; II. os modos de cria, fazer e viver, III. as criações cientificas, artísticas e tecnológicas; IV as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados

às manifestações artístico-culturais; V os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. Realmente, como esclarece Paulo Affonso Leme Machado, a Constituição sistematizou o tema da seguinte forma: o caput se refere à identidade, à ação e à memória dos grupos formadores da sociedade brasileira. Os quatro incisos do mesmo artigo apresentam a relação de bens de natureza material e imaterial que podem ou não se relacionar com os grupos da sociedade brasileira. A distinção que se faz tem como conseqüência que os bens incluídos nos quatro incisos podem ser protegidos mesmo que não tenham direta ou indiretamente vínculos à identidade, à ação e à memória dos grupos formadores da sociedade brasileira (1996: p. 648). Aliás, no tocante à técnica legislativa, é importante dizer que ao prever a proteção de formas de expressão e os modos de criar, fazer e viver, a Constituição consagrou uma cláusula aberta que permite ser preenchida com novos conteúdos, dados no tempo e no espaço, possibilitando proteção dinâmica. De outra parte, há legislação infraconstitucional que completa o tema. O decreto n 3.551/00 instituiu o registro de bens culturais de natureza imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro e também o programa nacional do patrimônio imaterial. De fato, o aludido decreto determina que os registros dos bens culturais que merecerão à tutela constitucional devem ocorrer em pelo menos quatro livros: o Livro de Registro dos Saberes, no qual se registrará o conhecimento e modo de fazer enraizados no cotidiano das comunidades; o Livro de Registro das Celebrações, em que constarão os rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social; o Livro de Registro das Formas de Expressão, destinado à inscrição das manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas e, finalmente, o Livro dos Lugares, em que se inscreverão mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas. Ressalte-se que tais inscrições objetivam a preservação histórica do bem e da sua relevância nacional para a memória, a identidade e a formação da sociedade brasileira. 3. Garantia constitucional do direito de propriedade em face do tombamento Não se desconhece que a Constituição de 1988 considera o direito de propriedade como pertencente à categoria de direito fundamental (art. 5, inciso XXII) que, na sua essência, são intangíveis e não modificáveis (art. 60, 4 ). Todavia, isto não significa que exercício do direito de propriedade seja ilimitado, pois, como determina a própria norma constitucional, o direito de propriedade está condicionado à sua função social (artigo 5, inciso XXIII). Aliás, ao cuidar dos princípios norteadores da atividade econômica (artigo 170, incisos II e nu), a Lei Maior reitera a consagração dos princípios (conexos) da propriedade e da função social. De fato, embora aparentemente contraditórios os aludidos princípios, eles, no contexto

da moderna hermenêutica constitucional, são vetores axiológicos auto-limitativos, que existem por sucessivas interferências recíprocas que procuraram harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas a concretizar (CANOTILHO: 1998, p. 1.096). Bem por isso, um princípiojamais pode impedir a concretização do outros, eles devem coexistir, em interação dialética, ou ainda, na perspectiva de Karl Larenz, num jogo concertado de princípios (LARENZ: 1989, p. 490). Assim, fica fácil concluir que o direito à propriedade não é absoluto nem ilimitado, já que é inteiramente condicionado pelo princípio da função social. Ou seja, a Constituição somente protege a propriedade que cumpra a sua função social. Com efeito, a respeito do tema, lembra Celso Ribeiro de Bastos que: A função social visa a coibir as deformidades, o teratológico, os aleijões, digamos assim, da ordem jurídica [...J. A chamada função social da propriedade nada mais é do que o conjunto de normas da Constituição que visa, por vezes, até com medidas de grande gravidade jurídica a recolocar a propriedade na sua trilha normal (1989: p. 125). Ainda, neste passo, cumpre ressaltar que a Constituição impõe ao titular da propriedade uma ação (um fazer) comprometida com sua função social, eis que, nos dizeres de Sérgio de Andréa Ferreira, ela pode levar a que o titular do direito seja obrigado a fazer, a valer-se de seus poderes e faculdades, no sentido do bem comum, correspondendo a uma concepção ativa, comissiva, do uso, do exercício da propriedade. E é exatamente neste contexto hermenêutico-constitucional que se insere o tombamento como instrumento de preservação da coisa que, por via reflexa necessária, provoca a interferência estatal no direito de propriedade privada2, o qual, depois de gravado pelo tombamento, será tutelado por um regime jurídico público, e não mais privado, embora o bem continue na posse e domínio do particular3. Neste sentido, o direito de propriedade sobre o bem cultural a ser tombado refoge à esfera privada, para tornar-se direito cultural que é direito comum de todos, também chamado de difuso, transindividual. Bem por isso, o tombamento envolve limitações de exercício das faculdades do domínio reguladas na legislação infraconstitucional, decreto-lei n 25/37, como por exemplos, o direito de preferência da União, Estados e Municípios para aquisição onerosa dos bens tombados (artigo 22 e parágrafos); limitações quanto ao deslocamento dos bens culturais (art. 13 parágrafos 2 e 3 ) e quanto à sua saída do país e à exportação (art. 14 e 15); proibição de destruição e mutilação dos bens tombados, inclusive, da prévia autorização governamental, para restaurá-los (art. 17); direito público de vizinhança (área de entorno) que implica a vedação de construção que impeça ou reduza a visibilidade da coisa tombada (art. 18). Tema interessante no concernente às limitações à propriedade éo da indenização. Isso porque, enquanto na desapropriação é pacífico o dever de indenizar do Poder Público (art. 50, inciso XXIV da Constituição Federal), em se tratando de restrição de um ou mais faculdades do domínio, iii casu, o tombamento (art. 216, parágrafo primeiro da CF), o ressarcimento dependerá do caráter geral das restrições. Isto significa que, se a propriedade tombada está inserida num contexto de outros bens igualmente tombados (a propriedade não está sujeita a gravames desiguais em relação às demais propriedades vizinhas, como por exemplo, as cidades históricas de Ouro Preto e Olinda), nada

há a indenizar pelo Poder Público, eis que a limitação é geral. Por outro lado, se a propriedade é escolhida solitariamente para ser conservada, impõe-se o dever de indenizar,já que, nestes casos, a limitação passa a ser individual e não geral (MACHADO: 1996, p. 687). Diga-se, também, que, em vez da indenização, o particular pode optar pela alienação do direito de construir não utilizado ou o direito de construir em outro local, isenção de impostos, como formas de compensar o ônus suportado. Além disso, como ensina, com muita propriedade Flávio de Queiroz B. Cavalcanti: o tombamento pode provocam sobre a propriedade, vale dizer sobre ofeixe de faculdades componentes do direito de propriedade, três tipos de conseqüências: (a) No primeiro e mais raro, o tombamento não promove qualquer inibição, com ocorre, por exemplo, no tombamento de uni quadro em que seu proprietário não perde o deleite, ou, com o tombamento de bens públicos; (b) Na segunda, o tombamento atinge com tal violência o uso da coisa, que a mesma perde, por exemplo, o seu conteúdo econômico; (c) Na situação mais comum, o tombamento restringe o direito de propriedade, com diminuição de seu potencial econômico, sem, contudo, ocorrer seu complexo esvaziamento. A solução à questão principal de cabimento da indenização dependerá do efeito que o tombamento provoca sobre o direito de propriedade, sendo evidente que, na primeira das situações, isto é, naquela em que não houve dano, não há o que se falar em indenização. 4. O tombamento e o devido processo legal O devido processo legal encontra-se consagrado em nossa Carta Magna no artigo 5., LIV: Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. Modernamente, este dispositivo é analisado sob dois aspectos: o processual (procedural) que implica na observância de um procedimento justo destinado à eventual privação ou à limitação do direito de propriedade e de liberdade e o material (substantive due process) decorrente do próprio sistema constitucional vigente, em que se equacionam os meios, e sopesam a sua adequação, para alcançar os fins previstos na Constituição5. Na esfera da Administração Pública, a presença destes vetores, resulta na observância do procedimento formal para tornar efetivas as garantias do contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (art. 5, LV da CF), a envolver a oposição de razões e a apresentação de postulações, o oferecimento de prova, contraprova e contradita. Em suma: a impugnação, devidamente instrumentalizada, ao ato que o atingirá (FERREIRA: 1997), além da análise material que se refere à competência, objeto, fim, motivo, elementos estritamente vinculados ao princípio da moralidade administrativa (CASTRO: 1989, p. 37). 4.1. Do Procedimento Explicitados os princípios que nortearam o tombamento, cabe tratar do procedimento a ser observado para perfeita regularidade do ato (a contrario sensu, para não maculá-lo de invalidade ou ineficácia). O primeiro passo é a existência de valor cultural na coisa que o Poder Público pretende incluir no patrimônio cultural brasileiro, atentando-se para os requisitos expressamente

contemplado no artigo 216 da CF: seja portadora de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. O procedimento regrado pelo Decreto-lei n 25/37, de fato, inicia-se com uma peça inicial que deve conter a indicação do bem que se pretenda tombar. Em seguida, deve-se proceder à notificação do proprietário para anuir ao tombamento ou para o impugnar. No caso de contestação, o principal argumento versará sobre o valor cultural e natural do bem tombado e da necessidade da restrição. Ressalte-se que não havendo impugnação poderá ser determinado o tombamento pelo Ministro da Cultura (esfera federal) ou Secretário da Cultura (na esfera estadual). Por outro lado, se apresentada defesa, a Administração deve responder ao proprietário, com base em laudos técnicos. A decisão incumbe ao Ministro da Cultura ou Secretário da Cultura, dependendo da natureza do tombamento, federal ou estadual. Autorizado o tombamento do bem imóvel, órgão competente deverá expedir o Auto de Tombamento, que será registrado e averbado na matrícula do imóvel (art. 246 da Lei n 6.015/73)6 que é o que caracteriza o término do processo de tombamento e prova de que ele foi efetivado. Conclusão Como já mencionado, o tombamento data do século XII, quando já existia a preocupação em resguardar o patrimônio cultural para as próximas gerações, guardando assim a identidade de um povo em sua época. O legislador constitucional, demonstrando a mesma preocupação, erigiu como norma constitucional o tombamento, assegurando, assim, a preservação do patrimônio cultural, podendo, por meio dele o Poder Público exercer efetivamente a sua tutela, protegendo os documentos, obras e locais de valor histórico, paisagístico, estético e arqueológico. FALLINGAS FORM OF PRESERVATION OF THE CULTURAL PATRIMONY BERTOLI, Vagner. ABSTRACT: The falling as constitutional institute, that aims preserv the environmental patrimony to future generations. KEYWORDS: Constitution; Falling; Preservation; Future Generations. Referências Bibliográficas BASTOS, Celso Ribeiro & MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1989. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Editora Almedina, 1998. CASTRO, Carlos Roberto de Siqueira. O Devido processo legal e a razoabilidade das leis na Nova Constituição do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1989. CAVALCANTI, Flávio de Queiroz B. Tombamento e Dever do Estado de Indenizar. Revista

Jurídica. São Paulo: RTJ dos Estados, n 130. FERREIRA, Sérgio deandréa. O tombamento e o devido processo legal. Revista Jurídica. Rio de Janeiro: Revista de Direito Administrativo, n 208, 1997. FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2001. LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Trad. de José Lamego. 2. ed. Lisboa: Fundação C. Gulbenkian, 1989. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1996. MELRELLES, Hely Lopes. Tombamento e indenização. Revista Jurídica. Rio de Janeiro: Revista de Direito Administrativo, n 161, 1995. SIQUEIRAE SILVA, Paulo Fernando de. Prática da Lei n 6015/73. Tombamento. Decreto Lei 25 de 1937. Estudos de Direito Registral Imobiliário, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1998. TUGLIO, Vania Maria. Patrimônio histórico. Uma lacuna legal. Webgrafia MARCHESAN, Ana Maria Moreira. A proteção constitucional ao patrimônio cultural. (http:// www.mp.rs.gov.br/hmpage2.nsf/pages/cma_patcul) htpjiwww.mp.sp.gov.br/caoumajdoutrinajamb/teses/patrimoniohistorico).