ILUMINAÇÃO INTERNA E ILUMINAÇÃO EXTERNA EM BOAVENTURA DE BAGNOREGIO: VISÕES DA CIÊNCIA NO PERÍODO MEDIEVAL

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Transcrição:

ILUMINAÇÃO INTERNA E ILUMINAÇÃO EXTERNA EM BOAVENTURA DE BAGNOREGIO: VISÕES DA CIÊNCIA NO PERÍODO MEDIEVAL Paulo Rogerio Sequeira de Carvalho Bacharel e licenciado em filosofia/ UERJ Pós-graduado em Filosofia Medieval pela Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro. paulofilosofia@hotmail.com RESUMO: O trabalho se propõe a apresentar um tema pouco conhecido e estudado no meio filosófico brasileiro, a saber: filosofia medieval e uma possível filosofia franciscana. A partir da obra de Boaventura de Bagnoregio, parte de dois conceitos seus (Iluminação interna e externa) para abordar parte da visão que se tinha da ciência na Idade Média e compreender um pouco da mentalidade do homem medieval. O trabalho não se propõe a fazer uma defesa deste tipo de concepção de ciência e de mundo, mas apenas a mostrar como se constituía tal visão. Também procuro fazer uma breve distinção entre o pensamento de Boaventura e de Tomás de Aquino. PALAVRAS-CHAVE: ciência, metafísica, ontologia, epistemologia. O pensamento de Boaventura distancia-se do pensamento tomista em relação à certa identificação entre sua teologia e filosofia. Não que no pensamento de Tomás não haja uma interação entre esses dois caminhos. O que ocorre é que no pensamento de Boaventura, filosofia e teologia chegam ao ponto de ser apenas uma ciência: uma ciência das coisas sagradas ou um saber com apenas uma diretriz que é a Sagrada Escritura. Assim, nos escritos tomistas é possível observar uma filosofia separada, mas não totalmente, da teologia e que não deixa de ter como direção o saber a respeito de Deus e de suas coisas. Cada pensamento possui um direcionamento. Seria equivocado dizer que há uma contradição explícita entre o pensamento tomista e o pensamento boaventuriano. Justamente porque cada um segue por um caminho que tem como objetivo único explicar e fundamentar as verdades bíblicas, que se não nos apresentam de maneira clara, ao menos está bem clara a sua exposição e proposta, embora não esteja clara aquela verdade ou o conhecimento que nos queira passar, ou seja: a verdade está ali, mas não uma explicação total ou esgotamento daquilo

que se apresenta sob forma de sentença. Portanto se algum pensamento teológico ou filosófico se distancia das verdades bíblicas, nos parecem estar bem claros a ponto de sabermos que há ali uma contradição que salta a vista. Convenhamos que se caminharmos a fundo a respeito de tudo o que entendemos como verdade fundamentada, cairemos em um profundo vazio. Sabemos que a lei da gravidade diz que quanto mais massa há mais gravidade, mas qual a relação entre massa e gravidade? Não poderia ser o contrário? Menos massa, mais gravidade? Não há, então, uma explicação a respeito dessa relação, logo só sabemos que isso ocorre na natureza e nada mais. Se nosso pensamento nos levar a entender que é possível que a gravidade se dê por outra forma, entenderemos também que a natureza se dá e funciona pela vontade de alguém ou da própria natureza que escolhe um caminho a seguir e não outro. Uma das inexplicáveis maravilhas do mundo é o fato de a natureza se expressar na linguagem da matemática pura. Isso constitui um milagre, porque a matemática possui uma gramática que não mostra a menor consideração para com o mundo externo, mas obtém suas regras unicamente da lógica das relações internas. Portanto, é o oposto da natureza, ou seja, é puro espírito. Entretanto, a natureza finge dominar todas as leis da matemática e orientar-se por elas. 1 Boaventura desenvolve uma doutrina ou teoria do conhecimento que se afasta da tese do intelecto agente, entrando assim no que ele chama de iluminação. Segundo a tese do intelecto agente, o entendimento agente não conhece, mas faz conhecer. Boaventura se pergunta como pode se tornar cognoscente se não conhece. Encontrou na doutrina das razões eternas, verdades que coexistem com o ser de Deus. Neste caso o homem poderia alcançar tais verdades ou razões, mas não quer dizer que o homem conhece tudo no intelecto divino. Boaventura diz que abstraímos as espécies das coisas, que são cópias das ideias. De qualquer forma é preciso que haja uma iluminação divina neste sentido, que dê a capacidade ao homem de reconhecer os exemplares nas espécies ou cópias. Conclui-se que as razões eternas são reguladoras, também, do conhecimento, mas de nada adiantariam sem o auxílio divino ou sem sua iluminação. Seria um ato de busca e ao mesmo tempo de encontro de Deus com o homem. O homem busca, por exemplo, conhecer a Deus e ele vem ao encontro do homem com sua luz que clareia e faz 1 SCHWANITZ, Dietrich. Cultura geral Tudo o que se deve saber. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 325.

enxergar coisas que não via antes. Observamos neste ponto certa espiritualidade do pensamento do Doutor Seráfico que, a princípio, pode se diferenciar do pensamento tomista. A origem deste tipo de reflexão mais espiritual viria de Agostinho e do próprio espírito franciscano. Embora pareça um tanto contraditório falar em uma filosofia franciscana, já que o próprio Francisco de Assis dispensava qualquer tipo de sistematização, em uma determinada época tornou-se necessária uma fundamentação de tais princípios, desde que não se opusessem ao espírito da ordem. No texto sobre a Redução das Ciências à Teologia, Boaventura inicia a exposição da doutrina da iluminação citando um trecho de São Tiago que diz ser toda dádiva preciosa e todo dom perfeito provenientes de cima, descendo do Pai das Luzes, que é Deus. Se Boaventura reconhece a verdade escrita ali, não pode contradizê-la. Segue então uma exposição acerca das luzes que podem emanar do Pai, com certa liberalidade, ou seja: não seria apenas uma iluminação passiva, no sentido de apenas o Pai iluminar. Há uma iluminação que pode provir do esforço intelectual humano para ascender a esse tipo de conhecimento. Ele distingue 4 tipos de iluminação: luz exterior, que é a luz da arte mecânica; luz inferior, a luz do conhecimento sensitivo; luz interior, luz do conhecimento filosófico e luz superior, sendo a luz da graça divina e da Sagrada Escritura. Vamos nos ater, aqui, a respeito da luz interior e luz exterior. Ainda no primeiro parágrafo há uma ressalva importante quanto ao caráter de cada uma delas: uma se referindo à verdade intelectual e outra se referindo à verdade da salvação. Em um primeiro momento podemos estabelecer uma relação de dependência entre as duas: a luz interior é iluminada ou tem sua luz sobreposta pela iluminação divina. Em outro momento nos parece que cada uma é independente. Seria neste ponto que figura a imagem do erro? A iluminação interior, como o próprio nome já diz, seria uma iluminação onde aquele que ilumina é o próprio homem que ilumina em uma atitude ativa. A iluminação exterior ou divina seria uma passividade em relação ao divino, não excluindo uma atitude de procura de tal iluminação, sendo, portanto, também ativa por parte daquele que a procura. No quarto parágrafo há uma descrição a respeito do que consiste a luz interior. Por uma análise primeira do texto nos parece que Boaventura coloca o conhecimento filosófico como extra-humano, por assim dizer. Como algo que paira

sobre nós e que é alcançado. O conhecimento filosófico poderia ser aqui, entendido como atividade estritamente humana, posto que seja raciocínio ou uma maneira de se buscar entendimento, novamente: uma atividade puramente humana. Poderíamos a partir de então, concluir que verdades morais ou de costumes, verdade das coisas e verdade do discurso são apenas emanações de verdades eternas, alcançadas pela luz interior que é o discurso ou atividade filosófico-racional. Há um momento em que diz ser a faculdade intelectiva iluminada pela luz do conhecimento filosófico. Este trecho parece trazer um problema, ao colocar a luz do conhecimento filosófico como separada do homem em si, como se fosse externa e não interna. Ao mesmo tempo menciona a faculdade intelectiva como diferente do conhecimento filosófico. Este problema poderia ser resolvido se entendermos, aqui, conhecimento filosófico como alguma verdade eterna que é alcançada por tal faculdade, continuando assim como interna ao homem e própria dele. Sobre a quarta iluminação diz o Doutor Seráfico que provém do Pai e está nas Sagradas Escrituras. Podemos fazer uma divisão para melhor entender: nosso conhecimento acerca do mundo pode ser iluminado pelas verdades que constam no Livro Sagrado e por outro lado há questões que podem, ainda, permanecer obscuras para nós. Neste caso a iluminação da Sagrada Escritura pode ser insuficiente, não por não responder aos principais anseios humanos, mas por não estar devidamente clara. Neste caso, ainda necessitaríamos de uma iluminação exterior a nós e exterior ao texto sagrado, que seria a luz do próprio Pai, que inspirou tais textos. Há uma duplicidade e uma unidade: a iluminação continua sendo exterior, por se tratar de um texto já posto e torna-se exterior ao próprio texto na medida em que recorremos a Deus para que nos dê a capacidade de bem interpretá-lo. Essa duplicidade não se refere ao caráter dado por Boaventura ao caráter tríplice de tal luz. Ela é tríplice em relação aos sentidos que toma ou objetivos: um sentido alegórico que ensina aquilo que devemos crer em relação a Deus; um sentido moral que nos dá os parâmetros de costumes que devemos praticar e um anagógico que nos ensina o caminho que devemos seguir para encontrar a Deus. Neste sentido a Sagrada Escritura nos ensina três coisas fundamentais, a saber: a geração de Cristo, as normas de se bem viver e a união de Deus com a alma, respectivamente, fé, costumes e finalidade de ambas ou seu caráter teleológico. Não pretendo, aqui, estender-me a explicação de São Boaventura de

que na verdade há seis iluminações. Vou me ater a uma questão que não necessita de tal reflexão, sendo ela a da relação de tais iluminações: interna e externa. Boaventura prossegue em sua exposição ao nos mostrar que da divisão tripla da iluminação exterior, a primeira deve ser objeto de estudo dos doutores, a segunda dos pregadores e a terceira das almas que buscam a contemplação. Uma refere-se à fé, outra aos costumes e a terceira ao fim de ambas. Neste ponto em que diz ser a união de Deus com a alma objeto de procura dos que busca a contemplação, sendo também o fim das duas primeiras, relaciona a última de forma que as duas anteriores tornam-se dependente desta. Sendo assim, todo o doutor que busca as verdades da fé e todo pregador que busca honrar e pregar os reais e bons costumes devem buscar este terceiro aspecto dessa iluminação exterior tripartida. Seria errado dizer que a luz interior assemelha-se em partes ao que poderíamos chamar também de contemplação? Em um primeiro momento seria uma busca e em um segundo momento, dado o teor de seu alcance uma posterior contemplação de verdades absolutas ou não. Não estou dizendo que haja uma semelhança perfeita entre uma e outra, mas apenas que há uma semelhança entre um aspecto da terceira parte da iluminação exterior com o caráter contemplativo de uma iluminação interior. A filosofia de Boaventura que está totalmente subordinada ao conhecimento da Sagrada Escritura, toma assim seu sentido pleno. O homem como um intelecto que possui um movimento próprio pode voltar-se para as verdades eternas impressas no Livro Sagrado e pode tomar também a atitude de buscar por si só o conhecimento de verdades que busca ou que entende que existam. A garantia da correspondência entre as verdades alcançadas pelo indivíduo e as verdades divinas é dada pelos escritos sagrados que nos direcionam a uma reta busca intelectual. Porém, segundo Boaventura, o caminho poderia ser já feito em direção ao reto caminho fornecido pela Bíblia: o homem possuidor de tais verdades, com o auxílio da luz interna, busca o entendimento e a racionalização do texto bíblico. A contemplação de tais verdades poderia, ainda, ser praticada sem o auxílio da luz interna. Como? Sabemos bem que, pela perspectiva cristã, houve homens que não fizeram uso do pensamento filosófico, por exemplo, e mesmo assim teriam alcançado algum tipo de contemplação do que poderíamos chamar de divino. A manifestação de tais verdades divinas não precisa ser, necessariamente, pela via do

entendimento ou da razão. Pode ser que parte dessa contemplação passe pela faculdade do juízo, mas não seria necessária uma flexão ou re-flexão da capacidade humana da razão. Se quiséssemos forçar ainda mais a tese da iluminação poderíamos falar em um caminho cortado e um alcance ainda mais perfeito, posto que foi exercido por outros meios, que não os filosóficos ou discursivos, da razão discursiva. Conclui-se que embora sob um aspecto haja uma relação entre a iluminação interior e a iluminação exterior, pode sim haver uma independência entre tais luzes. Em um primeiro aspecto dessa independência, a do homem que é possuidor de tal faculdade e que não busca na Sagrada Escritura iluminação para seus questionamentos. Por outro lado uma dependência da luz interior em relação à luz exterior sob o prisma da iluminação da segunda sobre a primeira e por outro ainda mais animador: a independência total da iluminação exterior em relação à iluminação interior. Não haveria uma necessidade, digamos, de que somente o indivíduo que faz uso do discurso filosófico receba a iluminação externa por meio do texto sagrado ou do próprio Deus, inspirador e re-velador(?). Basta que procuremos na história exemplos de uma profunda contemplação mística por parte de pessoas que não faziam uso da razão filosófica e que, por sua vez, possuíam alto grau de ascese ao território divino. Não seria uma atitude de passividade total, pois possuíam sua parcela de vontade interna de conhecimento da realidade suprahumana. Um dos maiores exemplares de humanidade exercida dessa forma seria o próprio Francisco. Boaventura era um franciscano. Seria, portanto, correto afirmar que há uma contradição entre Francisco de Assis e o Doutor Seráfico? Uma resposta que pretende ser sensata diria que não. Da mesma forma, como foi dito no início, seria equivocado falar em uma contradição evidente entre o pensamento boaventuriano e tomista, pelo simples fato de que pode haver mais de um caminho para chegar a algum lugar. Embora a reta seja o caminho mais curto entre dois pontos, não é o único. A grande dúvida seria sobre qual dos caminhos é o mais curto e como procurei mostrar pode haver um caminho di-verso do caminho percorrido pelo discurso filosófico para se alcançar as verdades divinas.

REFERÊNCIAS BOAVENTURA, De Bagnoregio. Escritos Filosófico-Teológicos. Introdução, notas e tradução de Luis A. de Boni e Jerônimo Jerkovic. Coleção Pensamento Fraciscano, v. I. Porto Alegre, EDIPUCRS, 1999. CHÂTELET, François. História da Filosofia - A Filosofia Medieval. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1983. CRESCENZO, Luciano de. História da Filosofia Medieval. Editora Rocco, 2006. GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Média. Martin Fontes, 1998.. O Espírito da Filosofia Medieval. Martins Fontes, 2006. LIBERA, Alain. A Filosofia Medieval. Edições Loyola, 1998. SARANYANA, Josep-Ignasi e SALLES, Fernando. A Filosofia Medieval: das origens Patrísticas à Escolástica Barroca. Editora Inst. Bras. de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio, 2006. SCHWANITZ, Dietrich. Cultura geral Tudo o que se deve saber. São Paulo: Martins Fontes, 2007.