Psicólogo (crp 05 / ) Colaborador da Comissão de Estudantes do CRP - RJ

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Transcrição:

Subjetividade e política: a formação psi em questão. Ana Lucia de Lemos Furtado Psicóloga (crp 05/0465). Conselheira do XII Plenário do CRP-RJ Professora assistente - Instituto de Psicologia - UERJ (aposentada) E-mail: ana.luciafurtado@yahoo.com.br José Rodrigues de Alvarenga Filho Psicólogo (crp 05 / 36. 271) Colaborador da Comissão de Estudantes do CRP - RJ Mestrando em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF) Especializando em Psicologia Jurídica pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) E-mail: Jraf.85@gmail.com O presente trabalho tem por alvo levantar algumas questões sobre a formação do psicólogo no Brasil. Para tanto, a partir de algumas contribuições das obras de autores como Michel Foucault e Félix Guattari, pensaremos a formação em psicologia como um processo atravessado pelas dinâmicas de força do poder disciplinar, por um lado, e, também, como um dispositivo produtor de subjetividades, por outro. O exercício do poder disciplinar caracteriza-se por um investimento sobre os corpos a fim de torná-los corpos economicamente uteis e politicamente submissos, ou seja, corpos dóceis. Para tanto, aquele tece suas redes esquadrinhando os espaços e criando uma visibilidade panóptica que possibilita uma vigilância e controle constante dos sujeitos. Estes, por sua vez, são capturados por estas relações de poder e certos processos de subjetivação são produzidos a partir deste modo de funcionamento disciplinar. 1

De acordo com Michel Foucault (2003; 2004), a partir da época clássica, nasce no Ocidente um novo tipo de poder. Até então, o exercício do poder girava em torno da figura do soberano e estava baseado no direito de fazer morrer ou deixar viver, sendo representado pelo gládio. O ápice de tal poder se dava nos rituais de suplício onde se desencadeava o martírio público do corpo do condenado. O final do século XVII e os primeiros anos do século XVIII foram caracterizados, segundo Foucault (2003;2004), por uma transformação dos mecanismos de poder, emergindo dessas novas configurações um tipo de poder que buscou um investimento detalhado do corpo individual; objetivando adestrá-lo, controlá-lo e vigiálo através de dispositivos que pudessem no mesmo processo em que se exercitava e potencializava a sua utilidade, a sua capacidade produtiva, majorava-se a sua submissão. As disciplinas do corpo, por um lado, e as regulações biopolíticas das populações, por outro, caracterizam a emergência da chamada sociedade disciplinar. Nesta, o exercício do poder não está mais interessado na morte, mas na vida; em sua qualificação e majoração. Assim, segundo Foucault (2003), um dos principais fenômenos políticos do qual o século XIX foi palco é a tomada da vida pelos mecanismos de poder. Ou seja, a vida, o biológico, os fenômenos da existência, se transformam em alvo e objeto de uma tecnologia de poder que não se interessa mais, especificamente, pelo corpo individual, mas, sobretudo, pelo corpo social o corpo espécie. Essa transformação dos mecanismos de poder no limiar da época moderna não ocorre a partir de uma grande ruptura que, de um só e eficaz golpe, tenha banido para a poeira da história o poder de soberania. Trata-se, isto sim, de modulações que vão ocorrendo na sociedade; de uma nova rede de relações de força que vão se constituindo; da explosão de mecanismos e estratégias sutis; de pequenas astúcias dotadas de um grande poder de difusão, arranjos sutis, de aparência inocente, mas profundamente suspeitos, dispositivos que obedecem a economias inconfessáveis, (...), são eles entretanto que levaram à mutação do regime punitivo (...) (FOUCAULT, 2004, p. 120). Assim sendo, não há um local específico que se possa apontar como desencadeadora das transformações; muito menos, se encontrar um sujeito disparador dessas mudanças. Pelo contrário, Foucault (1999a) preocupa-se em expulsar da cena de 2

suas pesquisas a figura do sujeito constituinte. Pois para ele, este deve ser pensado dentro de uma trama histórica que o constitui e não o inverso. Na verdade, para Foucault, trata-se de pensar a história a partir da perspectiva das guerras e das batalhas; das relações de poder que vão sendo travadas; dos discursos que emergem e os que são silenciados. A história não tem sentido, não quer dizer que ela seja absurda e incoerente. Ao contrário, (...) deve poder ser analisada em seus menores detalhes, mas segundo a inteligibilidade das lutas, das estratégias, das táticas (1999b, p.5). Neste sentido, o papel da genealogia, para Foucault (2005), é o de promover a insurreição dos saberes que são, convenientes e estrategicamente, sujeitados. É fazer aparecer na trama da história às lutas, os combates, os micropoderes que determinam a emergência de certos discursos e o silêncio de outros; a produzirem determinados domínios de objetos; determinadas subjetividades. Des-sujeitar os saberes históricos para que, assim, eles sejam capazes de fazer oposição e luta contra os efeitos de poder de um discurso unitário, centralizador e uniforme, isto é, do discurso cientifico. Assim, a genealogia visa à utilização desses saberes históricos nas táticas atuais. Por outro lado, já não vivemos mais em uma sociedade disciplinar, como a descrita por Foucault, mas numa sociedade de controle (DELEUZE, 1992). A transição de uma a outra, se caracteriza pela crise generalizada nos grandes confinamentos, como a escola, o hospital, a família, a prisão etc. Estas instituições serviam e ainda servem - como instrumentos de controle social, exercendo sobre os indivíduos um poder que concomitantemente em que moldava seus corpos e suas subjetividades, fazia emergir um saber sobre os mesmos. Agora, no entanto, de acordo com Deleuze (1992), já não se trata do espaço fechado das instituições disciplinares e seus mecanismos de vigilância específicos; tratase de mecanismos de monitoramento mais difusos, flexíveis, móveis, ondulantes e imanentes que incidem sobre os corpos e as mentes, prescindido das mediações institucionais antes necessárias. Todavia, como escreve Deleuze (1992, p. 220), não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas. Vivemos hoje, de acordo com Bauman (2001, 2007), numa modernidade líquida, marcada pela fluidez e efemeridade dos relacionamentos e pela vida vivida em 3

condições de precariedade e incertezas constantes. O autor (2005), sustenta a tese de que a produção de vidas humanas refugadas é um dos efeitos imediatos ao processo de modernização que caracteriza as sociedades modernas. Ou seja, a modernidade caracteriza-se pela fabricação em massa de lixo humano, daquelas vidas que se tornaram inúteis ao funcionamento da máquina de produção capitalista e, por isso, são descartáveis. Neste contexto, ainda segundo Bauman, um dos maiores problemas políticos enfrentados pelos Estados na atualidade é, sobretudo, o que fazer com este lixo humano descartável. Giorgio Agamben (2007), por sua vez, sustenta que na atualidade a biopolítica se transformou em tanatopolitica e a bíos vida qualificada dos indivíduos é reduzida a zoé vida natural. As estratégias do biopoder incidem sobre a vida reduzindo-a ao seu mínimo biológico, isto é, tornando-a vida nua, vida sem valor. Ou seja, a vida nua é a vida que se tornou matável, pois, estando fora do ordenamento jurídico da sociedade e não possuindo valor político, qualquer tipo de atrocidade e violência cometida contra a mesma não é considerada crime. Para Sennet (1988), com a emergência do capitalismo industrial em meados do século XVIII, ocorreram mudanças significativas nas esferas da vida pública e da vida privada, trazendo conseqüências para o meio urbano. O esvaziamento progressivo dos espaços urbanos na modernidade foi concomitante as mudanças nos meios de produção e, também, a privatização da vida burguesa, produzindo uma subjetividade individualizada cerceada nos muros do lar e do eu. Neste contexto, pensaremos a subjetividade não como uma essência ou natureza, mas, antes, como um processo que é fabricado a partir de inúmeros atravessamentosagenciamentos sociais, como: os discursos da mídia, as relações familiares, a dinâmica escolar etc. Em suma, pensaremos a subjetividade como diferentes modos de experimentação da vida, isto é, maneiras de sentir, pensar, agir; como diferentes modos de dar sentido ao mundo. Em Micropolíticas: cartografias do desejo, Felix Guattari e Sueli Rolnik (1996) colocam em análise a subjetividade, ou melhor, os processos de subjetivação, como uma produção histórica que se dá a partir de inúmeros agenciamentos/atravessamentos sociais e, por isso, não referendando a mesma a uma suposta natureza humana, compreende-a como àquilo que é produzido, fabricado no registro social. A 4

subjetividade é, para Guattari, a matéria prima fundamental de toda e qualquer produção capitalística. Guattari usa a expressão Capitalística ao invés de capitalista, para designar um modo de subjetivação que se tornou hegemônico com a emergência do sistema de produção capitalista. Para o autor, as forças capitalísticas não produzem apenas capitais, produzem subjetividades; modos de experimentação do mundo. A subjetividade, como diz o autor, é a matéria prima fundamental de toda e qualquer produção capitalística. A partir desta perspectiva, nos questionamos: que modos de subjetivação estão sendo produzidos pela formação em psicologia? Que relações de poder estão atravessando a formação do psicólogo no Brasil? Do mesmo modo, questionamos o quanto o ensino da psicologia está, ainda, alicerçado sobre um modelo de educação bancário que toma os alunos como clientes de uma educação vendida enquanto mercadoria. Na história recente da psicologia no Brasil, a clínica ocupou o lugar de protagonista desde os primórdios da regulamentação da psicologia enquanto profissão (FERREIRA NETO, 2004). Todavia, com o passar das décadas, as áreas de atuação dos psicólogos se expandiram e a clínica, apesar de ainda ser um elemento sedutor tanto aos formandos quanto aos profissionais, entra em crise. O surgimento de novas áreas de intervenção implica, por um lado, no desafio de se pensar que efeitos o profissional da psicologia produz onde tem atuado e, por outro lado, que o aumento das áreas de atuação não devem ser separadas de uma reflexão crítica a respeito da dinâmica de funcionamento do sistema capitalista em sua atual fase neoliberal. Ao mesmo tempo em que novas possibilidades de atuação se abrem para os psicólogos, é preciso que coloquemos em análise quais as novas demandas que são endereçadas aos mesmos. Trata-se da construção de pesquisas que sirvam como ferramentas, armas para questionar, criticar o que está posto, mas também, para pensar na criação de novos modos de existência e em novos mundos possíveis. Trata-se, é claro, de um longo e vasto caminho. Pois, para Gilles Deleuze e Michel Foucault (2006), as teorias, os livros, as pesquisas que fazemos na academia, são como ferramentas. Ou seja, instrumentos 5

que podemos e devemos utilizar para questionar e provocar algumas rupturas nos modos instituídos de pensar, agir, sentir, perceber, enfim, viver. Cabe-nos, então, o desafio de nos tornar, como defendia Paulo Freire em sua militância, atores principais de nossas próprias histórias de vida. Para tanto, a partir da análise constante de nossas implicações com os rumos não apenas da psicologia, mas, também, de nossa sociedade e do mundo, chamamos a atenção para o desafio de se criar outros modos de pensar e praticar a formação em psicologia. Que a formação em psicologia se torne, sobretudo, um espaço para a invenção constante de outras maneiras de pensar, sentir e viver. Enfim, que a nossa formação esteja compromissada eticamente com a criação de outros mundos possíveis e de uma psicologia inventiva e questionadora da dinâmica capitalista e disciplinar de nossa sociedade. Assim, levantamos a discussão e sustentamos que a formação em psicologia se torne, sobretudo, um espaço para a invenção constante de outras maneiras de pensar, sentir e viver. Dito de outro modo, que a nossa formação esteja compromissada eticamente com a criação de outros mundos possíveis e de uma psicologia inventiva e questionadora da dinâmica capitalística e disciplinar de nossa sociedade. 6

Referências AGAMBEN, G. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua I. MG: EdUFMG, 2007. BAUMAN, Z. Vida líquida. RJ: JZE, 2007. Modernidade líquida. RJ: JZE, 2001. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. DELEUZE, G. Post-Scriptum sobre as sociedades de controle. In: Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. Pp. 219 226. DELEUZE, G.; FOUCAULT, M. Os intelectuais e o poder. Motta, M. B. (org.) Ditos e escritos IV: Estratégia, Poder-Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. Pp. 37 47. FERREIRA NETO, J. L. A formação do psicólogo: clínica, social e mercado. São Paulo: Escuta, 2004; Belo Horizonte: Fumec / FCH, 2004. FOUCAULT, M. Direito de morte e poder sobre a vida. In: História da sexualidade I: a vontade de saber. São Paulo: Graal, 2003. Pp. 125 152. Vigiar e Punir. A história da violência nas prisões. Petrópolis: Editora Vozes, 2004. Nietsche, a genealogia e a história. Em: FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1999a. Pp. 15-38. Verdade e Poder. Em: FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1999b. Pp. 1-14. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005. GUATTARI, F. & Rolnik, S. Micropolítica. Cartografias do desejo. Petrópolis: Editora Vozes, 1996. 7

SENNET, R. O declínio do homem público: tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. 8