A IMAGEM FEMININA NOS LIVROS DIDÁTICOS NOS ANOS 1930-40 Resumo NICARETA, Samara Elisana UTP se.nicareta@bol.com.br Eixo Temático: Diversidade e Inclusão Os papéis que a sociedade estabelece para a mulher são construídos e cultivados no ambiente cultural, com a colaboração da escola. Esta pesquisa objetiva discutir a configuração histórica de uma imagem de menina e de mulher na instrução elementar, na escola brasileira das décadas de 1930-40. Pretende-se identificar e discutir os modelos de constituição do gênero feminino presentes no currículo, veiculados ideologicamente, propostos e difundidos nas ilustrações e fotografias presentes em livros didáticos. Será utilizada pesquisa documental com base na análise de 20 livros didáticos com imagens de personagens femininos, utilizados em escolas elementares nos estados sulinos nas décadas de 1930-40. De acordo com o conjunto imagético analisado, a importância da mulher fica restrita ao plano doméstico, onde se ocupa de várias tarefas e da educação dos filhos pequenos. O conteúdo dos livros didáticos mostra que, na medida em que era escolarizada, a menina deveria se aproximar daquele modelo de mulher adulta tradicionalmente apresentado. Na educação escolar das meninas havia uma preocupação em fortalecer a sensibilidade, o medo, a obediência, a afetividade. Quanto à mulher adulta, é apresentada como virtuosa e dedicada à família, além de cultivadora de valores cristãos. Não há uma alteração da imagem social feminina ao longo do tempo, embora, em função da modernização associada àquele período histórico, com o desenvolvimento do mercado de trabalho, se nutrisse alguma perspectiva de formação e assimilação de um novo perfil: a mulher trabalhadora. A escola colaborou no processo de inferiorização da mulher, que é antigo. Assim a perspectiva de gênero indica a necessidade de transformação na Educação Infantil, cujas raízes históricas são identificáveis, apontando direções para as práticas educativas contemporâneas. Palavras-chave: educação. Gênero. livro didático. ideologia. Introdução Até o início do período imperial, em 1822, não havia preocupação com a educação formal feminina na colônia. A família era conduzida pelo homem, sendo, portanto patriarcal, seguindo o modelo português. O pai tinha autoridade absoluta sobre todos, sua palavra era a lei. Como prova de seu poder destaca-se: Escolhia as profissões e os casamentos para os filhos, segundo as conveniências. Aliás, em geral, esses casamentos eram combinados entre
1942 famílias poderosas, para melhor conservarem-se ou serem aumentadas as fortunas e, com isso, o prestígio. (BORGES, 1980, p 19). Se o patriarca era quem determinava como seria a vida e as funções de todos que eram próximos a ele, a mulher, branca rica desempenhava, via de regra: Papel de importância na organização e supervisão das atividades que se desenvolviam no lar. Atividades estas não restritas apenas àquilo que hoje designamos de domésticas. Não diria tão-somente o trabalho da cozinha, mas também a fiação, tecelagem e costura, bem como as confecções de rendas e bordados, a alimentação dos escravos, o serviço dos arredores da casa como jardim, pomar, criação de animais domésticos e, sobretudo, o cuidado das crianças. (IBID., p. 21). Como vimos, a mulher inicialmente, mesmo sendo de famílias de posses, era totalmente empenhada nos afazeres ligados a família e a casa, sua vida se restringia ao lar, a fazenda. Sua educação basicamente era voltada a fazer trabalhos manuais, mandar e organizar a casa, rudimentos da escrita e leitura de livros morais e religiosos. No livro História das Mulheres no Brasil organizado por Mary Del Priore, no capítulo intitulado Mulheres na sala de aula, essa idéia é reforçada: As habilidades com a agulha, os bordados, as rendas, as habilidades culinárias, bem como as habilidades de mando das criadas e serviçais, também faziam parte da educação das moças; acrescida de elementos que pudessem torná-las não apenas uma companhia mais agradável ao marido, mas também uma mulher capaz de bem representá-lo socialmente. [...] Sua circulação pelos espaços públicos só deveria se fazer em situações especiais, notadamente ligadas às atividades da Igreja que, com suas missas, novenas e procissões, representava uma das poucas formas de lazer para essas jovens. (LOURO, 2008, p. 446). À medida que se intensificou o processo de urbanização, o ambiente da cidade lhe propiciava alguns contatos, nas festas sociais e religiosas. Algumas filhas de famílias mais abastadas podiam estudar fora do Brasil, em Portugal, mas a grande maioria era educada em casa. Ainda no século XIX, entre os grupos mais favorecidos economicamente se admitia que era necessária a oferta de uma educação mais consistente culturalmente as mulheres. No decreto imperial de 15 de outubro de 1827, o governo estabeleceu um currículo não profissionalizante para a educação feminina, voltado para a formação de donas-de-casa, composto das seguintes disciplinas: leitura, escrita, quatro operações, gramática, moral cristã, doutrina católica e prendas domésticas.(manoel, 1996, p. 23 citado por ALMEIDA, 2007,
1943 p.3). Apesar de ser um decreto o projeto não se concretizou, não houve condições práticas para execução de nenhum dos programas de estudo, uma vez que escolas não foram criadas para esse fim. Em geral, no Brasil, pouco se cuida da educação das mulheres, o nível de ensino dado nas escolas femininas é pouquíssimo elevado; mesmo nos pensionatos freqüentados pelas filhas das classes menos abastadas, todos os professores se queixam de lhes retirarem as alunas justamente na idade em que a inteligência começa a se desenvolver. A maioria das meninas enviadas à escola aí entram com a idade de sete ou oito anos; aos treze ou quatorze anos são consideradas como tendo terminado os estudos. (LEITE, 1984, p. 74 citado por ALMEIDA, 2007, p.3). Se o foco inicial das leituras femininas era de cunho moral e religioso, na segunda metade do século XIX houve um acréscimo de leituras mais mundanas, falando da vida nas cidades, das relações sociais e culturais. As mulheres puderam, por exemplo, circular pelos salões, um dos novos espaços de convivência em sociedade, falar sobre livros de sua preferência. Tornaram-se leitoras exigentes conquistando um lugar no mercado editorial. Aos pouco foi sendo criada uma nova função social para a mulher, a função de educadora, favorecida pela valorização da instrução feminina. O discurso positivista de forte influência na época fez com que se agregasse as funções de mãe, dona-de-casa e esposa a função de educadora dos filhos da pátria. Dessa forma, nos primeiros momentos do século XX, a forma idealizada de mulher na sociedade brasileira tinha como características: a pureza, doçura, moralidade cristã, maternidade, generosidade e patriotismo. A ela já era permitido o trabalho desde que este fosse uma extensão de seu papel no lar, tais como as de professora e enfermeira. Seu universo de leituras se expandiu e proporcionou uma mudança de vida. A partir da consideração das práticas de leitura recomendadas/permitidas à mulher, voltamos à extensão da função formativa da escola e da família e à antinomia constitutiva da Modernidade: à mulher foi sendo dada a liberdade de ler mais escritos, por outro lado, o acesso a esses escritos era controlado pela família, pela escola e pela Igreja. (ALMEIDA, 2007, p. 04).
1944 Não podemos desconsiderar as conquistas alcançadas pelas mulheres, mas fica evidente a liberdade controlada através da educação, que idealizava o perfil de mulher a ser aceito como convencional, que impedia uma transformação social almejada por muitas. A partir de 1930, mesmo a sociedade brasileira sendo machista e patriarcal, as mulheres conquistaram o direito a participação no Ensino Superior e na atividade política nacional. Ao olharmos para a história do Brasil e da humanidade percebemos que ações isoladas ou coletivas contra as mulheres podem ser observadas em diversos momentos. Como forma de analisar essas ações contra a mulher surge o movimento feminista: Na virada do século XIX, as manifestações contra a discriminação feminina adquiriram uma visibilidade e uma expressividade maior no chamado sufragismo, ou seja, no movimento voltado para estender o direito do voto às mulheres. (...) Seus objetivos mais imediatos (eventualmente acrescidos de reivindicações ligadas à organização da família, oportunidade de estudo ou acesso a determinadas profissões) estavam, sem dúvida, ligados ao interesse das mulheres brancas de classe média, e ao alcance dessas metas (embora circunscrito a alguns países) foi seguido de uma certa acomodação no movimento. (LOURO, 1997, p. 15). Neste mesmo período, década de 30, os componentes ideológicos passam a ter uma presença cada vez mais forte na vida política e a educação seria a arena principal em que o combate ideológico se daria. No livro intitulado Tempos de Capanema podemos localizar alguns elementos sobre o papel da mulher na sociedade da época. Era prevista uma diferença de educação para homens e mulheres, tendo por finalidade preparar o indivíduo para a vida moral, política e econômica da nação. Cumpre reconhecer que no mundo moderno um e outro são chamados a mesma quantidade de esforço pela obra comum, pois a mulher mostrou-se capaz de tarefas as mais difíceis e penosas outrora retiradas de sua participação. Assim, se o homem deve ser preparado para a militância, para os negócios e as lutas, a educação feminina terá outra finalidade que é o preparo para a vida do lar. A família constituída pelo casamento indissolúvel é a base da organização social e por isto colocada sob a proteção especial do Estado. O tratamento especial que se reservava às mulheres se desdobraria em dois planos: Por um lado, haveria que proteger a família; por outro, haveria que dar a mulher uma educação adequada ao seu papel familiar. Os diversos projetos e propostas
1945 elaboradas com este objetivo mostram certa evolução, que vai desde uma divisão extrema de papéis entre os sexos até uma atitude mais conciliatória, que chega até mesmo, a aceitar, em 1942, a co-educação, ainda que de forma excepcional. (SCHWARTZMAN et. al., 2000, p. 107-108). O projeto elaborado por Gustavo Capanema, Plano Nacional de Educação de 1937, previa a existência de um ensino dito doméstico, reservado para as meninas entre 12 e 18 anos, e que equivaleria a uma forma de ensino médio feminino. Seu conteúdo era predominantemente prático e profissionalizante, e fazia parte, no plano, do capítulo destinado ao ensino da cultura de aplicação imediata à vida prática ou ao preparo das profissões técnicas de artífices.(ibid., p.108). Era, pois, destinado principalmente a mulheres de origem social mais elevada, que dessa forma poderiam manter-se em um regime escolar estritamente segregado. Instituição escolar, organização curricular e gênero A abordagem das questões de gênero focaliza as diferenças que são culturalmente construídas entre os sexos, explicitando como se edificam as relações sociais entre homens e mulheres. O próprio conceito de gênero tem uma história relativamente recente (SILVA, 2000, p.91). Mesmo que as relações sociais impliquem numa definição de papéis a serem desempenhados por homens ou mulheres, embora o fato das mulheres gerarem e alimentarem os filhos aparentemente não acarretava vínculos predeterminados, é oportuno lembrarmos que esta distinção de papéis está ligada ao trabalho que cada gênero assumiria na sociedade (LOURO, 1997, p.24). Historicamente verifica-se que as mulheres eram absorvidas principalmente em ações domésticas devido ao seu papel de mãe. Suas atividades econômicas e políticas são restringidas pelas responsabilidades nos cuidados com a prole, o enfoque de suas emoções e atenções é particularmente voltado para os filhos e para a preservação de um ambiente harmonioso no seu lar, em qualquer circunstância. Como conseqüência disso temos que: As escolas femininas dedicavam intensas e repetidas horas ao treino das habilidades manuais de suas alunas produzindo jovens prendadas, capazes dos mais delicados e complexos trabalhos de agulha ou de pintura. As marcas da escolarização se inscreviam, assim, nos corpos dos sujeitos. (IBID., p. 62).
1946 Percebemos que a tradição sobre a condição feminina passada pela família, cuja encarregada seria na maioria das vezes as mães das futuras moças, consistia em impor regras de comportamentos, atividades que uma dama poderia realizar, limitando-se a afazeres ligados ao lar. Mas esse processo teria uma continuidade, o mesmo cuidado passando a ser atribuído à escola elementar. As duas instituições, responsáveis tanto pela formação do indivíduo como também pela manutenção da cultura social atuam em consonância, agindo em parceria na consolidação de certas marcas da formação humana que se faziam presentes na sociedade. Observa-se que desde a infância as meninas recebiam, através dos materiais didáticos escolares, mensagens próprias a algumas esferas da vida, e, portanto, eram levadas a aprender e a reproduzir as marcas da tradicional formação social e cultural prevista para a formação do feminino. Essa conformação a um papel específico pode ser interpretada do seguinte modo, percebendo-se aí as influências formativas institucionais: É a identidade de gênero que possibilita à criança reconhecer-se como pertencente ao gênero masculino ou feminino, com base nas relações sociais e culturais que se estabelecem a partir do seu nascimento. A identidade de gênero ultrapassa a concepção do aprendizado de papéis, que pode tornar-se muito simples, uma vez que caberia a cada sexo conhecer o que lhe convém ou não, adequando-se a essas expectativas. [...] Além disso, a maneira como a família, a escola, agem em relação às meninas e aos meninos são fundamentais no processo de constituição da identidade de gênero. (SOUZA, 2005, p. 2). Esta identidade de gênero, portanto, está relacionada intimamente com a forma como a escola trabalha esta questão. Em muitos casos, se apóia na maneira com que o professor produz ou reproduz certos papéis na sala de aula, que estão socialmente consolidados. Tais prerrogativas estão materializadas e cristalizadas, sendo esses papéis impressos no currículo, enquanto elemento constitutivo e transformador de uma sociedade. Outro ponto conflitante é a intervenção do professor com relação aos estereótipos formados quanto ao gênero. Clássicos exemplos: menina brinca de boneca e menino brinca de carrinho; a cor da menina é rosa e do menino é azul; as meninas são mais calmas e dedicadas enquanto que os meninos são mais
1947 agitados e desleixados. Na escola estes estereótipos também podem se referir à aprendizagem: os meninos gostam mais de matemática, já as meninas preferem Língua Portuguesa. Isso nos leva a perguntar sobre até que ponto existe uma consciência dessa modelagem ou desse determinismo social. Portanto, na organização curricular, o professor e os livros didáticos podem se somar na conformação da identidade das crianças. Os manuais, livros didáticos, livros de classe ou ainda livros-texto, como são chamados, podem representar uma fonte privilegiada para compreender o fazer educacional de uma época, seja quanto ao interesse por questões relativas a educação, a cultura ou as mentalidades, a linguagem ou as ciências. Sendo assim, para Choppin (2002, p. 14) o livro didático pode estar inscrito na realidade material, participando do universo cultural, sendo um depositário de um conteúdo educativo e ideológico. Pode ainda, assumir o papel de transmitir às jovens gerações os saberes, as habilidades, relações de poder - tudo isso possuindo valor e utilidade em um dado contexto formativo. Sob tal ótica, os livros são julgados indispensáveis à sociedade para sua perpetuação. Considerações Finais Ao focarmos o interior da escola escolhemos direcionar nosso olhar para a problemática de analisar os materiais curriculares, tais como os livros didáticos, uma vez que transmitem os estereótipos de gênero, fruto de um currículo educacional que reflete e reproduz a sociedade mais ampla. Disso decorre que, quando o professor se utiliza do livro didático como instrumento de trabalho, configura uma fonte de inculcação política, cultural e ideológica na sociedade. E é a partir de sua prática diária que auxilia para consolidar ou modificar as regras sociais preestabelecidas. Este argumento nos permite verificar que identidades são atribuídas a homens e mulheres no processo formativo do qual a educação escolar se imbui. REFERÊNCIAS ALMEIDA, N. M. A. Revistas femininas e educação da mulher: o Jornal das Moças. In: 16 CONGRESSO DE LEITURA DO BRASIL (COLE) CADERNO DE ATIVIDADES, Campinas, 2007.
1948 BORGES, W. R. A Profissionalização feminina: Uma Experiência no Ensino Público. São Paulo: Loyola, 1980. CHOPPIN, A. O historiador e o livro escolar. História da Educação / ASPHE. Pelotas, UFPel Semestral. V.06, n.11, p. 5-24, abril, 2002. LOURO, G. L. Gênero, Sexualidade e Educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes, 1997. LOURO, G. L. Mulheres na sala de aula. In: PRIORE, D. M. História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008. SCHWARTZMAN, S; BOMENY, H. M.;COSTA, V. M. R. Tempos de Capanema. São Paulo: Paz e Terra, 2000. SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade; uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. SOUZA, Fabiana Cristina de. Diferenças de Gênero na Escola: interiorização do masculino e do feminino. In: REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS- GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO ANPED, 28, 2005, Caxambu / MG.