Do fenômeno ao sintoma: impasses e possibilidades na escuta do sujeito na instituição Claudia Escórcio Gurgel do Amaral Pitanga Doris Rinaldi O presente trabalho tem a intenção de discutir os impasses e possibilidades da inserção da psicanálise no espaço institucional, especificamente em uma instituição de reabilitação motora, que é designada como prestadora de serviços do SUS (Sistema Único de Sáude), para o atendimento interdisciplinar ao paciente portador de deficiências (PPDs). É uma instituição regida pelo discurso médico/pedagógico que tem como características principais a busca da funcionalidade motora, integração e inclusão social. Neste cenário o corpo se apresenta como a via privilegiada de manifestações do sujeito, na tentativa de constituição de uma demanda ao Outro. A resposta médica a esta demanda, através dos procedimentos e técnicas que tem por objetivo a remissão dos sintomas, pode, contudo, reforçar o tamponamento daquilo que é do inconsciente, mantendo um gozo localizado no corpo (PITANGA, 2006). No Setor de Psicologia desta instituição a psicanálise é o instrumento teórico/clínico utilizado nos atendimentos, na aposta da emergência dos efeitos do sujeito do inconsciente, que possibilite um diálogo com o discurso médico. Às dificuldades de sustentar uma escuta no espaço institucional com essas características, somam-se as dificuldades muito peculiares encontradas na clínica de uma categoria de pacientes que apresentam os chamados fenômenos psicossomáticos (FPS), mais precisamente quando se configuram como doença psicossomática, que ameaça a vida do sujeito pela sua gravidade, interferindo na sua qualidade de vida. Nas entrevistas preliminares essas dificuldades dizem respeito a um desafetamento, aonde a instância simbólica parece estar elidida. Parecem ter abandonado seus corpos à sorte da biologia e dos procedimentos médicos. O discurso reproduz o discurso médico, traduzindo a posição em que estão identificados, ou seja, a objetos, assujeitados pela lesão que carregam, apontando para um ponto na estrutura psíquica do sujeito que ele não tem condições de significar. Nessas entrevistas não se
apresentam as condições mínimas para um trabalho analítico. O que impulsiona, então, o analista a se perguntar: há possibilidade de trabalho analítico nestes casos? Ainda que saibamos que a psicanálise se dá no um a um, temos a tarefa, amparados pelo ensino de Jacques Lacan, de construir algo que se possa chamar de uma clínica do paciente psicossomático, fazendo frente a sua especificidade. Distinguimos três direções nas elaborações lacanianas sobre o campo da psicossomática, a saber: a dimensão narcísica, a dimensão significante e a dimensão do gozo. Pela via do narcisismo a psicossomática é abordada pela estruturação do eu que se efetua em torno da identificação a uma imagem especular do corpo próprio, o que demarcaria a linha divisória do narcisismo que delimita o que é do campo da neurose e o que é o campo da psicossomática. Esta idéia sugere que algo do corpo não se rendeu a entrada da linguagem, permanecendo na condição de organismo. Não foi marcado pelo simbólico, o que faz distinção entre os FPS e os sintomas de conversão histérica. Esta distinção com relação ao sintoma histérico tem uma conseqüência importante com relação ao alcance do trabalho analítico, pois os FPS não são passíveis de decifração e, conseqüentemente, não são acessíveis à interpretação. Dizem respeito a uma escrita, mas uma escrita ilegível. A dimensão significante está relacionada ao que Lacan trabalhou em seu Seminário, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964), com o conceito de holófrase, como a gelidificação do par de significantes S1 e S2. Nesse quadro a psicossomática está incluída como um dos efeitos entre a debilidade mental e a psicose. O efeito psicossomático se refere à direta inscrição no corpo material do sujeito, marcando-o como um signo, que não se converte em sintoma. Na Conferência em Genebra sobre o sintoma (1975), Lacan descreve a lesão como uma escrita ilegível que se assemelha a hieróglifos, o que remete a uma forma de configuração do traço unário, que tem como conseqüência uma fixação de gozo. Isso nos conduz à terceira via de abordagem do campo da psicossomática, o gozo. Um trabalho analítico possível seria na direção de uma intervenção na economia de gozo que produzisse um distanciamento entre o traço e a inscrição corporal pela mediação do simbólico. É esta a direção indicada pelo ensino de Lacan. Mas passamos a fragmentos de um caso, pois isso pode nos ensinar sobre o alcance dessas elaborações. Trata-se de uma jovem atendida no centro de reabilitação que apresentava uma doença psicossomática chamada Miastenia Gravis. A paciente além dos efeitos
debilitantes desta doença apresentava problemas gástricos, respiratórios e alergias. Apresentava, ainda, reações somáticas, formando um quadro onde o seu corpo era palco de uma série de manifestações. A paciente foi encaminhada pelo médico para acompanhamento psicológico por apresentar uma doença que, segundo ele, teria relação com o aspecto emocional. Foi assim que ela chegou ao setor de psicologia. Logo as características do seu discurso ficaram muito evidentes, tais como a aderência ao discurso médico, a fala descritiva e concreta onde aparentemente a angústia não está presente. Apresentava um desafetamento, um descaso pela sua condição física. Não apresentava sinais de uma transferência que poderia se considerar analítica, não formulando uma questão que poderia endereçar à analista. Esta era colocada como expectadora da descrição de seus tratamentos como se tivesse falando de outra pessoa. O seu corpo era entregue sem questionamentos a exames que causavam dor. Cometia excessos com o seu corpo, indicando que não conhecia os seus limites. A sua história de vida foi relatada quase por acaso e, aos poucos, pode se verificar alguns elementos que se constituíram como fundamentais. O nome que recebeu de sua mãe, Maria das Dores, quando era ainda pequena, a própria história do seu nome próprio como uma homenagem à avó doente e uma identificação ao pai doente, deixam claro a que significante estava identificada. Não via o seu nome como próprio, tinha a sensação de que portava o nome da avó, como o seu próprio corpo. Na insistência deste trabalho por alguns anos ficou evidente que a não verbalização de uma seqüência de acontecimentos correspondia ao aparecimento de eventos somáticos. A hipótese estrutural pela qual se trabalhava era de neurose histérica, mas havia um ponto na sua estrutura subjetiva onde a instância simbólica estava afetada de forma enigmática. As manifestações eram respostas a eventos da sua vida onde a mediação simbólica não comparecia, tendo como conseqüência uma direta inscrição no corpo. As pontuações da analista eram realizadas, porém não se verificava um efeito palpável. O relato de um sonho trazido pela paciente, entretanto, demarcou de maneira decisiva um deslocamento da posição subjetiva da paciente. Chegou para a sessão abatida dizendo que não dormiu bem à noite. Disse ter tido um sonho que precisava contar. Sonhou que assistia o seu próprio corpo sendo autopsiado. Olhava o médico examinar seu corpo inerte. As associações que se seguiram a este relato levaram a um redimensionamento do trabalho analítico, pois este sonho lhe causou grande impacto, o que fez com que ela fosse apresentada à experiência de angústia. Passou então a endereçar à analista, remetendo às intervenções feitas em todo o percurso de trabalho ao
fato de que o seu corpo estava entregue à própria sorte. Passa a ter medo da morte e a se preocupar. Passa a fazer questionamentos, apresentando a partir daí um demanda de saber à analista sobre aquilo que porta e manifesta pelo corpo, tomada que estava pelo horror. A doença e as suas manifestações assumiram a partir daí um novo estatuto, de sintoma no sentido analítico. A passagem efetuada, do fenômeno ao sintoma, apontou, nesse caso, para uma possibilidade de alcance do trabalho analítico que, em determinadas condições, pode atingir o limite do encontro da linguagem com o corpo. Neste caso, através do sonho, significantes holofraseados, os quais faziam uma direta inscrição, puderam ser desfixados, postos ao trabalho de análise. Deste modo, se faz uma entrada da operação simbólica, colocando em curso um trabalho psíquico.
Referências Bibliográficas LACAN, JACQUES - O Seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. [1954-1955], Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1986. - O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise [1964], Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998. - O Seminário, livro 23: o sinthoma, 1975-1976],Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2007. - O lugar da psicanálise na medicina [1966]. In: Opção Lacaniana, n 32, dezembro, 2001. - Conferência em Genebra sobre o sintoma [1975]. In: Opção Lacaniana, n 23, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise do Campo Freudiano, São Paulo, Editora Eólia, dezembro, 1998. PITANGA, C., E., G, A. Psicanálise e psicossomática: por uma análise possível. Dissertação de mestrado do Programa de Pós-Graduação em psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2006. RINALDI, D., L. Clínica e política: a direção do trabalho psicanalítico no campo da saúde mental. In: Psicanálise, clínica e instituição, (orgs, Mello, M., Altoé, S.), Rio de Janeiro, 2005.