HERANÇA CULTURAL E DESEMPENHO ESCOLAR NA UNIVERSIDADE MARCO CONCEITUAL

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Transcrição:

1 HERANÇA CULTURAL E DESEMPENHO ESCOLAR NA UNIVERSIDADE MARCO CONCEITUAL Samara Cristina Silva Pereira (PIBIC/UFPI) Guiomar de Oliveira Passos Orientadora (UFPI) GT 17 Educação, Cultura e Sociedade INTRODUÇÃO Este trabalho sistematiza as literaturas utilizadas para a construção do referencial teórico da pesquisa intitulada: A herança cultural dos alunos do curso de Serviço Social da Universidade Federal do Piauí: pista para superação de alguns problemas da formação profissional. A intenção é socializar as reflexões realizadas tendo em vista a definição das bases teóricas e metodológicas da pesquisa, em fase inicial de coleta de dados, bem como debater sobre a relação entre educação, cultura e sociedade. Trata se, portanto, de um exercício teórico, cujo objetivo é apreender os conceitos e categorias de análise envolvidos, contando, para tanto, com a contribuição daqueles que partilham das mesmas preocupações. A pesquisa enfoca a relação entre herança cultural e êxito escolar dos alunos do curso de Serviço Social da UFPI. Conforme consta no Projeto, tem sido queixa constante nas conversas e reuniões de professores, especialmente daqueles que ministram disciplinas como Pesquisa Social e Trabalho de Conclusão de Curso a ausência de leitura ou as dificuldades de compreensão dos textos indicados pelos professores do curso de Serviço Social. Os alunos têm dificuldades de comentar e interpretar um texto, analisar e fazer proposições, construir uma problematização, enfim de elaborar um pensamento, construir um texto a partir de outro ou da própria vivência. A apreensão da leitura e mesmo a obtenção de satisfação simbólica com sua prática, como de qualquer bem cultural, dependem, conforme Bourdieu (1992, p.297), da posse do código que permite sua decifração. Ou seja, a leitura, qualquer que seja ela, exige uma disposição cultivada, o que significa nível de instrução e, principalmente, educação familiar, pois desta depende não apenas a eficácia do sistema de ensino como também a familiaridade com o mundo das práticas culturais, em geral, e, especificamente, da leitura. A compreensão dos textos teóricos e científicos pelos alunos do curso de Serviço Social bem como o prazer desses com a leitura supõe: posse dos instrumentos de apropriação da leitura em geral domínio do código, capacidade de interpretação e de atribuir significações, de fazer análises; competências lingüísticas e culturais linguagem legitimada pela área (conceitos, referenciais teóricos) e dos métodos, estratégias e fazer científico dominantes. Propriedades que os recursos didáticos não propiciam, pelo contrário, supõem existirem, ainda que implicitamente. O objetivo da pesquisa consiste em identificar a herança cultural transmitida pelas famílias aos alunos do curso de Serviço Social da UFPI e analisar a relação existente entre essa herança e o êxito escolar dos alunos, tendo por base, os seguintes trabalhos de Pierre Bourdieu: Reprodução Cultural e Reprodução Social (1992); A Escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura (2002); O capital social notas provisórias (2002); Os três estados do capital cultural (2002). Além desses, utilizar se á contribuições de estudiosos brasileiros que, tendo por referência o autor acima citado, abordam a temática, tais como: Longevidade escolar em famílias

2 de camadas populares de Maria José Braga Viana, O trabalho escolar de famílias populares (2000) de Écio Antônio Portes; Ultrapassando o pai Herança cultural restrita e competência escolar (2000) de Ana Almeida. O presente artigo discute os conceitos e categorias centrais para o desenvolvimento da pesquisa, constituindo o arcabouço teórico que servirá como base para investigação do problema proposto. Assim, num primeiro momento, aborda sobre herança cultural, conceituando a, caracterizando o modo como essa é transmitida e sua atuação no processo de aprendizagem, destacando se nesse processo o habitus. No segundo, caracteriza se o papel do sistema de ensino na transmissão do capital cultural. I HERANÇA CULTURAL Para se compreender o que é herança cultural há que se reportar, de início, à idéia de capital e de campo desenvolvidas por Pierre Bourdieu. Em síntese, capital social é o quantum social específico de cada campo, ou seja, a grandeza específica de cada universo relativamente autônomo de relações específicas, chamado campo. O campo constitui parte do espaço social regida por leis próprias, na qual se trava uma luta concorrencial entre atores, hierarquicamente situados, em torno do capital específico a cada universo particular. Assim, temse um quantum ou capital específico para cada campo. No campo cultural o capital apresenta se sob três estados: O estado incorporado é aquele em que o capital cultural está ligado ao corpo e pressupõe sua incorporação, logo, não é transmitido instantaneamente, demanda tempo e dedicação por parte do investidor. Este estado de capital cultural é marcado pela maneira totalmente dissimulada e inconsciente pela qual é feita a transmissão doméstica, na qual a família é o principal transmissor. O estado objetivado consiste em aportes materiais tais como escritos, pinturas monumentos, sendo transmissível em sua materialidade, entretanto, suas propriedades só se definem em relação com o capital cultural incorporado. O estado institucionalizado consiste nos títulos conquistados ao longo do percurso escolar, e representa uma certidão de competência cultural, que será mais bem explorado por aqueles que detêm um elevado capital de relações sociais. Portanto, nos termos de Bourdieu (2002, p.74 75), o capital cultural é um ter que se tornou ser, uma propriedade que se fez corpo e tornou se parte integrante da pessoa, um habitus. Assim, a herança cultural que a família transmite é uma combinação de propriedades, as mais variadas, e um certo ethos, ou seja, um sistema de valores implícitos e profundamente interiorizados, que contribui para definir, entre outras coisas, as atitudes face ao capital cultural e à instituição escolar (BOURDIEU, 2002, p.42). 1.1 A Transmissão do Capital Cultural A criança desde sua educação primeira, a educação doméstica, é colocada em contato com diversos agentes e campos sociais. Esses contatos determinarão seu nível de capital cultural. O meio familiar é, deste modo, fator determinante no acesso e domínio que um sujeito pode ter sobre os bens culturais. O habitus adquirido na família está no princípio da estruturação de todas as experiências ulteriores (BOURDIEU, 1994).

3 O capital cultural que uma família possui, apresentando se sob a forma incorporada, material e/ou institucionalizada, varia em decorrência da sua posição social, de modo que os que estão em posição dominante econômica e culturalmente têm possibilidades objetivas de acesso a estes bens. Isso explica a desigualdade entre os níveis de capital cultural possuídos pelas famílias, e a conseqüente manutenção destas desigualdades. Destarte, os filhos de famílias que estão em posição privilegiada no campo cultural são os que têm maiores chances de acumular capital cultural, e obterem o conseqüente êxito escolar, posto que, conforme Bourdieu (2002, p.42), (...) a ação do meio familiar sobre o êxito escolar é quase exclusivamente cultural. A família transmite o capital cultural que é aperfeiçoado pela escola, possibilitando o domínio dos códigos que servem de acesso a bens como: obras de arte, música, cinema, teatro, leituras, pinturas, entre outros bens. Com o decorrer do percurso escolar a desigualdade frente ao capital cultural tende a se tornar mais severa, pois os que possuem uma grande quantidade deste tendem a acumulá lo, e os que não o tem, ou o tem de maneira restrita tendem a estar cada vez mais em situação de desvantagem. Os bens culturais e as condutas frente a eles têm uma atuação inconsciente e mistificadora sobre o indivíduo, de modo que, por exemplo, a simples presença de uma obra de arte no ambiente em que vive um sujeito provoca alterações no domínio do capital cultural; o sujeito tende a habituar se a ele, faz parte de seu mundo. Assim também em relação aos livros, a presença destes e a observação de leitores ao redor incita à prática da leitura. Portanto, a posse de bens culturais e a atitude familiar frente a estes atuam na transmissão do capital cultural. Em suma, a transmissão do capital cultural feita pela família ocorre mais por vias indiretas que diretas, paulatinamente, de forma osmótica, isto é, sem a necessidade de um aprendizado metódico, quase que de forma dissimulada, como algo que prescinde de um esforço organizado mas que está relacionado com a posição do sujeito no espaço social. É essa forma dissimulada que sustenta a idéia de que a aquisição de conhecimentos e das disposições cultivadas resultam de dons naturais ou vocações e não de mecanismos objetivos. 1. 2 Herança Cultural e Posição de Classe No espaço social, os grupos são construídos conforme o volume global de capital que possuem e conforme o peso relativo do capital que define a distribuição neste espaço. Assim, é que numa sociedade, como as desenvolvidas, em que o princípio de diferenciação tem base o capital cultural e o econômico, é a quantidade que os agentes possuem desses capitais que define sua posição na sociedade. A primeira análise, ou seja, a quantidade de capital global de cada agente define sua condição; a segunda é relacional, identifica a posição no espaço social. Os campos sociais são espaços multidimensionais de posições diferenciadas conforme a distribuição do capital que é especifico a cada um deles. Essa distribuição é sempre desigual; há os que possuem mais e os que possuem menos. Os primeiros ocupam as posições mais altas na estrutura de distribuição, são os dominantes; os outros são os dominados. Essas posições dominantes ou dominados constituem o elemento definidor do modo como o sujeito apreende o mundo, e da forma como os agentes se encontram organizados nos espaços sociais, definindo o habitus do sujeito. Os que ocupam posição de domínio têm possibilidade de acesso a um maior volume do bem específico do campo, pois este lhe confere forca e poder. No campo cultural, há segundo Bourdieu (1992, p.299), três posições básicas, conforme a parcela reservada dos consumos culturais: inferior, média, superior. A transmissão do capital cultural em seus três estados objetivado, incorporado, institucionalizado esta

4 relacionado a essa estrutura de posições, no espaço social e, em particular ao peso deste no conjunto das posses. As famílias em posição dominante economicamente podem proporcionar a seus filhos contato com bens culturais (obras de arte, pinturas, escrituras) e seus herdeiros têm maior probabilidade de alcançar títulos escolares. É um percurso natural o ingresso destes na universidade e o acumulo de títulos no percurso escolar, enquanto essa é uma possibilidade quase remota para os membros das camadas populares. Estes quando conseguem, têm uma amarga relação com o universo acadêmico; sentem esse como um mundo muito diferente; [...] um contraste violento; [...] um período de muito problema (VIANA, 2000, p. 56). Trata se, analisa a autora, de uma relação marcada pelo sentimento de humilhação e hostilidade no plano do simbólico, de tomada de consciência de enormes diferenças sociais entre esse universo e suas origens. O capital incorporado, código simbólico repassado por meio da educação familiar, ainda que esteja mais concentrado entre as famílias com posição de destaque no mercado de bens simbólicos também sofre os efeitos da condição de classe em face do tempo livre que a família pode proporcionar aos seus herdeiros tanto em termos do início do empreendimento da transmissão e de acumulação e em termos de satisfação das exigências do prolongado percurso de transmissão quanto o tempo que esse pode ser dispensado de inserir se no processo de acumulação. Nos termos de Bourdieu (2002, p.76) o tempo durante o qual determinado indivíduo pode prolongar seu empreendimento de aquisição depende do tempo livre que sua família pode lhe assegurar, ou seja, do tempo liberando da necessidade econômica que é a condição de acumulação inicial. As condições objetivas em que se encontra o sujeito, portanto, define a herança cultural e o modo como essa é transmitida. A cada posição corresponde um habitus produzido por essas condições objetivas. O que é habitus é o assunto do próximo item. 1.3 Habitus O habitus é outro elemento central do edifício teórico de Pierre Bourdieu, se constitui a partir da herança cultural e orienta a ação do agente, funcionando como elo entre as estruturas e a prática 1, entre o sujeito e o mundo objetivo. É esse conceito que estabelece a articulação entre o individual e o coletivo. O conceito é o seguinte: Sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações e torna possível a realização de tarefas infinitivamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas, que permite resolver os problemas da mesma forma, e às correções incessantes dos resultados obtidos, dialeticamente produzida por esses resultados (BOURDIEU, 1994, p.65). 1 O termo prática é utilizado por Bourdieu para identificar a relação entre uma situação e um habitus (MARTINS, 1987, p.42).

5 O habitus, portanto, não funciona como uma estrutura fixa e previamente elaborada por seu portador, mas como um esquema de pensamento, percepção e ação, utilizado por seu agente conforme a situação que se lhe apresenta. Como mediador entre o sujeito e as estruturas, permite a interiorização da exterioridade através das relações que se dão entre sujeitos e instituições objetivas, fazendo com que estas últimas passem por constantes transformações e reativação, de modo a atender aos interesses e necessidades dos agentes que não apenas cumprem e executam normas sociais, mais também as produzem e as atualizam. A produção e aquisição do habitus obedece a uma ordem cronológica de estruturação que se inicia desde as primeiras experiências do sujeito, por meio da educação familiar, e lhe serve como princípio de apreensão da prática escolar. Em seguida, vem a educação escolar que desenvolverá no sujeito as disposições requeridas à assimilação das mensagens culturais do espaço social do qual faz parte, definindo e fornecendo os instrumentos exigidos à satisfação das necessidades culturais. Nos termos de Bourdieu (1994, p.80): O habitus adquirido na família está no principio da estruturação das experiências escolares(...), o habitus transformado pela ação escolar, ela mesma diversificada, estando por sua vez no princípio da estruturação de todas as experiências ulteriores, e assim, por diante, de reestruturação em reestruturação. As experiências acumuladas ao longo da vivência dos indivíduos acabam por transformar se em habitus. Este é, portanto, produto histórico de diferentes condições de existência, e tende a apresentar variações entre os indivíduos que vivem sob diferentes condições sociais, e uma relativa homogeneidade entre os que partilham uma mesma condição. Também é marcado pela posição social do sujeito apresentando se como algo social, contudo guarda marcas de subjetividade, posto que o sujeito interioriza o mundo objetivo de forma subjetiva, sendo caracterizado também como algo individual. Por meio dele, é possível identificar a posição social do agente, pois transporta em todo tempo e lugar a posição, presente e passada do agente, na estrutura social. Como o sistema de ensino atua nesse processo? Esse é o assunto tratado a seguir. II SISTEMA DE ENSINO, AÇÃO PEDAGÓGICA E CONSERVAÇÃO SOCIAL O sistema de ensino dá continuidade ao processo de transmissão do capital cultural iniciado na família. Assim, a desigualdade na estrutura de distribuição do capital cultural implica uma conseqüente desigualdade no acesso aos diferentes estágios da trajetória escolar; só uma pequena parcela de indivíduos pertencentes às camadas populares chega à universidade. No Brasil, os filhos de camadas privilegiadas constituem grande maioria no ensino superior, especialmente quando se trata de carreiras tradicionalmente prestigiadas, conforme estudo realizado por Portes (2000). Os que constituem as camadas populares, salvo casos de sucessos improváveis 2, só conseguem lograr espaço nos cursos menos prestigiados socialmente. Conforme escreve Bourdieu (2002, p.41) vê se nas oportunidades de acesso ao ensino superior o resultado 2 Cf. Viana (2002, p.47), o termo improváveis é utilizado para fazer referencia a indivíduos cuja probabilidade de chegar à universidade é reduzida.

de uma seleção direta ou indireta que, ao longo da escolaridade; pesa com rigor desigual sobre os sujeitos das diferentes classes sociais. Além de enfrentarem dificuldade de acesso ao ensino superior, os desprovidos de capital cultural ou possuidores de reduzido volume desse capital, enfrentam dificuldades por não disporem da competência cultural, especialmente lingüística, exigida por esse grau de ensino, através da comunicação pedagógica. Os professores ao realizarem suas atividades docentes consideram que exista entre ele e o educando uma comunidade lingüística e de cultura, uma cumplicidade prévia de valores, o que só ocorre quando o sistema escolar está lidando com seus próprios herdeiros (BOURDIEU, 2002, p.56). Os professores tendem a homogeneizar os alunos em suas práticas pedagógicas, tratando os de forma igualitária, segundo a tradição jacobina dos ideais de liberdade e igualdade, não considerando a heterogeneidade de herança cultural. Esta ao ser ignorada na comunicação pedagógica resulta numa disparidade entre o nível de informações emitidas pelo professor e as efetivamente apreendidas por estes alunos, comprometendo a aprendizagem dos que não detêm o domínio de práticas culturais cultivadas, como a linguagem. A linguagem, que segundo Bourdieu (2002, p.55) é resultado das condições sociais de aquisição e utilização de um dado locutor, constitui ferramenta privilegiada no universo acadêmico, sendo que os que possuem o domínio deste código alcançam notabilidade e reconhecimento entre os colegas e especialmente entre os professores, acumulando resultados bastante positivos no decorrer do percurso universitário. Todos, independente da posição ocupada no espaço social, estão distantes da linguagem universitária. Ela não faz parte do universo dos estudantes de classes privilegiadas culturalmente, nem dos de classe média e das camadas populares; todos só têm acesso a esse código quando ingressam na universidade. As diferenças de êxito entre educandos estão relacionadas com a herança cultural que o educando possui; os culturalmente prestigiados sobressaem se dos demais pela disposição que apresentam em adquirir e lidar com um novo código tendo em vista sua prévia relação cultivada com a linguagem, e o domínio de esquemas interpretativos. Quanto mais próximo da cultura privilegiada mais desenvolvida será a competência lingüística do locutor; quanto mais afastada, menor essa competência. O percurso escolar dos educandos é marcado, cada vez mais, pelas vantagens e desvantagens cumulativas que se definem frente às exigências da comunicação pedagógica e da herança cultural transmitida pela família, sendo os educandos que encontram no meio familiar a incitação à prática cultural, os que acumulam vantagens no decorrer do percurso escolar. Os que ocupam posição dominada no espaço social, já penalizados por suas deficiências de capital cultural face sua posição de classe, são responsabilizados pelo insipiente resultado alcançado ao longo da trajetória escolar. Assim, o sistema de ensino que se julga democrático, funciona de forma discriminatória, recrutando e selecionando os educandos de forma aristocrática, privilegiando as práticas tradicionalmente cultivadas pelas classes abastadas. Com efeito, o domínio do código universitário é algo resguardo aos filhos de classes abastadas, especialmente a linguagem, que é considerada, conforme Bourdieu (2002, p.56), a parte mais atuante da herança cultural e também a mais difícil de ser atingida. O sistema de ensino, portanto, tem como legítimos herdeiros os educandos dotados de capital cultural. Assim sendo, vê se no ensino superior a continuidade de um sistema de ensino que funciona desde as séries iniciais como instrumento de monopolização dos bens culturais por parte das classes abastadas, e que menospreza o habitus assimilado pelas classes menos prestigiadas culturalmente. O que aparentemente é acessível a todos que ingressam na universidade, a saber o 6

7 conhecimento cientifico e cultural, acaba por tornar se algo acessível apenas às camadas prestigiadas culturalmente. O sistema de ensino tradicionalmente entendido, conforme Bourdieu (1992, p.296), como conjunto de mecanismos institucionais ou habitus (...) pelos quais se encontra assegurada a transmissão entre gerações da informação acumulada, não se constitui em difusor das práticas culturais que poderia minimizar as desigualdades entre as diferentes classes; ao contrário acaba por constituir se em um mecanismo institucional que legitima de forma mistificada a relação de classes, permitindo que o capital cultural retorne às mãos do capital cultural, funcionando eficazmente como mecanismo de conservação social. CONSIDERAÇÕES FINAIS As fontes teóricas estudadas apontam que para investigar a relação entre herança cultural e desempenho escolar dos alunos do curso de Serviço Social da UFPI é preciso: 1 O. Conhecer as condições econômicas, culturais e sociais desses alunos, para verificar suas propriedades (econômicas, culturais e sociais), e determinar sua posição social e condição social. 2 o. É preciso conhecer o ethos transmitido a estes alunos, e por meio deste definir seus valores e atitudes face ao capital cultural e a instituição escolar, bem como suas aspirações escolares. A investigação, portanto, requer uma análise multivariada, envolvendo dados quantitativos e qualitativos e, conseqüentemente, procedimentos técnico instrumentais como o questionário, a entrevista e a história de vida. BIBLIOGRAFIA ALMEIDA, Ana. Ultrapassando o pai Herança cultural restrita e competência escolar. IN: NOGUEIRA, Maria Alice ROMANELLI, Geraldo e ZAGO, Nadir. Família e Escola: Trajetórias de escolarização em camadas médias e populares. 2ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes, 2000, p.81 98. BOURDIEU, Pierre. A Escola Conservadora: as desigualdades frente á escola e à cultura. IN: NOGUEIRA, Maria Alice e CATANI, Afrânio (orgs). Escritos de Educação. Trad. Aparecida Joly Gouveia. 4ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes 2002, p.39 64.. O capital social notas provisórias. IN: NOGUEIRA, Maria Alice e CATANI, Afrânio. Escritos de Educação. Trad. Denice Bárbara Catani e Afrânio Mendes Catani. 4ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes 2002, p.65 69..Os três estados do capital cultural. IN: NOGUEIRA, Maria Alice e CATANI, Afrânio (orgs). Escritos de Educação. Trad. Magali de Castro. 4ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes 2002, p.70 79.

8. Espaço social e espaço simbólico. IN: Razões Práticas: Sobre a teoria da ação. Trad. Mariza Corrêa. 3ª ed. Campinas (SP): Papirus, 1996, p.13 38.. Esboço de uma teoria da prática. IN: ORTIZ, Renato. Pier re Bourdieu/ Sociologia. Trad. Paula Montero. 2ªed. São Paulo: Ática, 1994, p. 46 81 (Coleção Grandes Cientistas Sociais).. Reprodução cultural e reprodução social. IN: A economia das trocas simbólicas. Trad. Sérgio Micele. 3ª edição ed. São Paulo: Perspectiva, 1992, p.296 336. MARTINS, Carlos Benedito. Estrutura e ator: a teoria da prática em Bourdieu.In: Educação e Sociedade, n. 27, São Paulo: Cortez, 1987, p.33 46. PORTES, Écio Antônio. O trabalho escolar das famílias populares. IN: NOGUEIRA, Maria Alice ROMANELLI, Geraldo e ZAGO, Nadir. Família e Escola: Trajetórias de escolarização em camadas médias e populares. 2ª ed. Petrópolis(RJ): Vozes, 2000, p.61 80. VIANA, Maria José Braga. Longevidade escolar em famílias de camadas populares. IN: NOGUEIRA, Maria Alice ROMANELLI, Geraldo e ZAGO, Nadir. Família e Escola: Trajetórias de escolarização em camadas médias e populares. 2ª ed. Petrópolis(RJ): Vozes, 2000, p.45 60.