1 O MUNDO COMO REPRESENTAÇÃO: NOTAS SOBRE A TEORIA SEMIÓTICA DA PERCEPÇÃO Ricardo Gião Bortolotti Unesp-Assis RESUMO: A realidade que vivenciamos não parece oferecer dificuldades nas tarefas cotidianas. Os objetos sempre estão à mão, e não necessitamos de conhecer física, para podermos subir e descer uma escada, ou para dirigirmos um automóvel. Tampouco, necessitamos conhecer os modelos psicológicos da realidade humana, ou os mecanismos intrincados que determinam a personalidade de cada um. A dona de casa segue lavando as roupas de seus familiares e preparando o seu almoço, sem, no entanto, questionar a fórmula química da água. Do mesmo modo, relacionamo-nos, flertamos e criamos filhos, sem, antes, questionarmos a realidade do inconsciente, ou a criação de hábitos de conduta na sociedade em que vivemos. A questão surge, quando a tarefa rompe sua seqüência habitual, dando lugar à dúvida. Esse estado pode motivar um indivíduo à investigação, conduzindo-o ao estabelecimento do hábito normal, como, também, à criação de modelos mais sofisticados de ação, que servem para definir o saber científico. O objetivo deste artigo é expor alguns aspectos sobre nossa percepção do mundo. Para que possamos conhecer ou formar crenças a respeito do ambiente que nos rodeia, necessitamos de apreendê-lo, num processo que culmina na interpretação dos dados que nos chegam pelos sentidos, mesclados com antigas crenças e hábitos de conduta. Por conseguinte, a questão central que se coloca é a de saber como estabelecemos essas crenças a partir de nossa vivência com os objetos que nos rodeiam. Questão deveras difícil, cujo nível de exigência ultrapassa os limites deste artigo. Por isso, propomo-nos apresentar como o conhecimento se processa, a partir das teorias de C. S. Peirce. Obviamente, não parece, da mesma forma, tratar-se de tarefa fácil. Todavia, os elementos que apresentaremos têm o objetivo de esclarecer como opera o signo, enquanto noção central de nossos pensamentos, sejam eles triviais ou sofisticados, sejam determinados por processos inconscientes, ou não. E-mail: bortho@uol.com.br
2 O MUNDO COMO REPRESENTAÇÃO: NOTAS SOBRE A TEORIA SEMIÓTICA DA PERCEPÇÃO Ricardo Gião Bortolotti Unesp-Assis I Para Peirce, o trabalho de nosso pensamento ocorre por meio de signos, dispensando qualquer recurso à intuição de primeiras verdades, ou à cognição a priori. Como bem expõe em suas obras de 1868, Questões referentes a certas faculdades reivindicadas pelo homem (CP-5.213-263) e Algumas conseqüências de quatro incapacidades (CP-5.264-317), o pensamento está em signos, não havendo meios de reconhecer uma intuição, sem o recurso a signos. Ora, com essa recusa, de um dos pilares da tradição filosófica ocidental, Peirce não só nos mostra a inconveniência de supormos primeiras cognições e verdades que ultrapassam a experiência. Partimos da experiência, e tudo o que possamos dizer dela limita-se aos esquemas sígnicos. Assim, a cognição consiste num processo de signos que engendram outros signos, os quais possuem referentes no mundo externo. Tais representações, veremos, derivam de operações inferenciais, uma vez que o pensamento não produz nada além do que retira da experiência, como notamos pela leitura da Logic of 1873 (CP-7.313-361). A noção de signo, amplamente utilizada pelos pensadores, sejam eles contemporâneos ou não, adquire, naquele autor, uma configuração conforme uma lógica triádica, que busca fundamentar-se num instrumental distinto do da lógica tradicional, baseada na ilação sujeito/predicado. Essa nova concepção passa a ser definida com o recurso a suas categorias, em número de três: Primeiridade, Secundidade e Terceiridade. Com elas, Peirce logra explicar o trabalho do signo e de seus derivados. As referências das obras de Peirce são feitas como é usual, ou seja, CP significa Collected Papers of Charles S. Peirce (cf. a referência completa no final do artigo); o primeiro número refere-se ao volume, e o segundo, ao parágrafo.
3 O signo ocupa o lugar de seu objeto, ou de alguma coisa que determine uma idéia, ou outro signo, chamado de Interpretante. O objeto determina o signo, conforme algum aspecto, compreendido num outro signo. Com efeito, notamos que a relação se dá entre três elementos, reveladores das três categorias: no caso do signo em si, em sua materialidade, corresponde a sua qualidade, ou a categoria Primeira; no caso do objeto, as reações que provoca num outro é da alçada da Secundidade; por fim, o interpretante ou mediação corresponde à Terceira categoria, a qual confere à tríade sua generalidade. Um signo, no seu caráter mediador, triádico, corresponde, pois, à Terceiridade. As categorias fenomenológicas são maneiras de ver o mundo. Consistem na determinação da consciência e traduzem-se nas nossas representações. Por isso, deparamos com uma série de classificações, geradas das articulações entre elas. Conforme Peirce, o signo apresenta-se com dois objetos: um, chamado dinâmico; outro, chamado imediato. O último é essencialmente de caráter sígnico, ou seja, é o que o signo imediatamente nos apresenta; o outro consiste na realidade a ser alcançada ao longo do tempo, sendo o responsável pela representação. Além do objeto, o signo possui três interpretantes, que se estendem em mais três. São eles: o imediato, o dinâmico e o final; o emocional, o energético e o lógico (SANTAELLA, 2000: 61-87). Muito se tem a dizer acerca do signo, de seu objeto e de seu interpretante, porém, para nosso intento, esses elementos são satisfatórios. Com efeito, a leitura do mundo e sua assimilação passam por tais elementos, os quais perfazem o pensamento. Para a compreensão de como o mundo se apresenta como representação, necessitamos de mais um passo; agora, na sua teoria da percepção. II Em 1873, embora Peirce defendesse a observação do mundo externo como fonte de nossos pensamentos, o certo é que ele ainda não possuía uma teoria que explicasse
4 coerentemente a percepção. Posteriormente, ele criou a teoria do percepto, com a qual logra alcançar o trajeto das impressões às representações, ou dos estímulos sensoriais aos signos. No processo de geração do conhecimento do mundo externo, participam, pois, dois elementos: o percepto e o juízo perceptivo. Tais elementos consistem na pedra de toque da cognição, a partir dos quais o processo intelectivo tem lugar. Com eles, o raciocínio e os hábitos de ação são engendrados. Peirce define o percepto como sendo o elemento exterior, que se choca contra nosso eu (CP-1.253), agindo brutalmente sobre nós, diferenciando-se dos elementos mentais ou psíquicos, cuja característica principal é a generalidade. Trocando em miúdos: a condição de algo ser existente consiste no seu comportamento desregrado e bruto. Por outro lado, a característica de um elemento dito psíquico está no fato de ele aplicar-se à pluralidade de situações semelhantes, além de possibilitar o controle sobre si próprio, ou sobre as ações que gera. O mundo real agride nossos sentidos, porém, somente temos acesso a ele através de um juízo, que Peirce denomina de juízo perceptivo, no qual se encerra o percepto, enquanto objeto hipoteticamente apreendido. Tais juízos apresentam-nos os fatos perceptivos (CP-2.143), que significam as mudanças que a consciência sofre diante do real (CP-5.53). É interessante notar que não temos poder de impedir o afluxo de perceptos sobre nós, assim como a sua apreensão no julgamento perceptivo, pelo qual temos oportunidade de conhecê-lo, conforme seja visado como objeto de um signo. Desses juízos, construímos o edifício de nossos raciocínios ou teorias; funcionam como as primeiras premissas de nossos raciocínios. Peirce os define como nossas primeiras hipóteses explicativas do mundo. Com elas, constroem-se outras inferências, resultando na determinação de nossa conduta frente ao mundo dos existentes.
5 Os julgamentos perceptuais são as primeiras proposições de nossos raciocínios (CP-5.116). Eles representam alguns aspectos do real no objeto imediato do signo. Com efeito, os perceptos, compreendidos como signos, na cadeia de pensamento, apresentam-nos o real em seu aspecto geral, subsumido numa fórmula geral, na qual se prefiguram as regularidades com que ele, o real, se manifesta aos nossos sentidos. É assim, como objeto imediato de um signo, que compreendemos o mundo que nos rodeia. Como podemos notar, o percepto é o elemento externo ou físico, e o julgamento perceptual, o elemento geral que unifica, conforme alguns aspectos, a pluralidade de impressões ou sensações, num signo explicativo. Com efeito, com essa teoria, Peirce busca explicar o processo perceptivo através do signo, sem, no entanto, recorrer à intuição, ou à suposição de primeira cognição. Evitaremos os detalhes, mas a teoria proposta tem elementos suficientes para dar conta da percepção e do conhecimento, sem a ajuda da intuição, uma vez que os julgamentos perceptivos, como primeiras hipóteses de nossos raciocínios, são provenientes de associações ou hábitos de pensamentos, os quais são os responsáveis pelos primeiros impulsos na formação da hipótese explicativa. O fato de nossos raciocínios serem falíveis mostra o erro dessas explicações compulsivas, mas necessárias para a garantia de sobrevivência do homem. Em síntese, podemos dizer que o percepto somente pode ser conhecido como objeto imediato, numa representação, conforme seja apreendido inferencialmente numa proposição. Assim, como ele não pode ser conhecido em sua forma reativa, passa a ser trabalhado como um construto mental,... uma imagem, quadro em movimento ou outra demonstração. (CP-2.141 e 5.115). No entanto, mesmo no plano da construção mental, não deixa de ser real (CP-5.568 e MURPHEY, 1961: 372), como podemos asseverar, pela importância da previsão (CP-2.142).
6 Ora, visto dessa perspectiva, o percepto fornece a ocasião para o conhecimento, que se realiza a partir do trabalho interpretativo nos signos, explorados diagramaticamente, ou seja, a apreensão do real na teia semiótica possibilita efetuar experimentos nos esquemas mentais, nos quais estão representados os perceptos. Com esses experimentos, buscamos o significado das hipóteses explicativas, formando, a partir delas, cadeias de inferências. Como as primeiras premissas são explicações ousadas, que integram os perceptos na extensão de crenças já moldadas pela tradição, as inferências realizadas pela imaginação nos diagramas mentais servem para estabelecer hábitos de conduta. Em outros termos, os esquemas da imaginação constituem experimentos mentais, que dão lugar a hábitos (crenças ou signos), os quais, futuramente, quando chegada a ocasião, são confrontados com o real, fonte de nossas sensações. A título de esclarecimento final, para que não haja dúvidas acerca do realismo peirceano, o dualismo notado na exposição desta teoria, como o exposto entre o físico e o psíquico, à luz de seu Idealismo Objetivo, configura-se como um fator de análise, uma vez que a concepção de que tudo é mente passa a valer. No espaço restrito deste artigo, o risco de classificá-la como mais uma teoria nominalista, que recheia a tradição filosófica, é grande. No entanto, sua teoria do signo não estaria completa se não demonstrássemos que nossas experiências somente possuem significado enquanto inseridas num universo de signos. Da perspectiva nominalista, o dinamismo da existência não seria vivenciado no signo, mas como uma realidade estática num esquema atemporal e a-histórico. Referências Bibliográficas BURKS, A. W. (ed.). Collected Papers of Charles Sanders Peirce. Cambridge: Harvard University Press. 1958, v. 7.
7 HARTSHORNE, C; WEISS, P. (eds.). Collected Papers of Charles Sanders Peirce. 4ª. ed. Cambridge: Harvard University Press, 1974, v. 1.. Collected Papers of Charles Sanders Peirce. Cambridge: Harvard University Press, 1932, v. 2.. Collected Papers of Charles Sanders Peirce. 4ª. ed. Cambridge: Harvard University Press, 1974, v. 5. MURPHEY, G. Murray. The Development of Peirce s Philosophy. Cambridge: Harvard University Press. 1961. SANTAELLA, L. A Teoria Geral dos Signos Como as linguagens influenciam as coisas. São Paulo: Pioneira, 2000.