contos_kafka 14/12/05 14:25 Página 17 O ABUTRE

Documentos relacionados
MÃE, QUANDO EU CRESCER...

OS XULINGOS ERAM PEQUENOS SERES, FEITOS DE MADEIRA. TODA ESSA GENTE DE MADEIRA TINHA SIDO FEITA POR UM CARPINTEIRO CHAMADO ELI. A OFICINA ONDE ELE

O sapo estava sentado à beira do rio. Sentia-se esquisito. Não sabia se estava contente ou se estava triste

SEGUE-ME! ESTOU CONTIGO NO JEJUM!

O JAVALI DE UMA VIDA. Algures em Portugal foi cobrado pela técnica de Arco um troféu de javali digno de se lhe tirar o chapéu.

ebooksbrasil ebooksbrasil.com

CARLOS MOURÃO (TEXTO) KILMA COUTINHO (ILUSTRAÇÕES E ARGUMENTO)

Ah, que maravilha! disse a mãe, quando eu lhe mostrei o recado que trouxe da escola. Um museu num castelo histórico! Vai ser interessante.

O Menino NÃO. Era uma vez um menino, NÃO, eram muitas vezes um menino que dizia NÃO. NÃO acreditam, então vejam:

A conta-gotas. Ana Carolina Carvalho

Que estúpido, meu Deus! Que estúpido! Como pude não notar durante tanto tempo?! Quase dois anos e eu, sem a menor, a mínima desconfiança.

O Amor se resume em se sentir bem, especial, incrivelmente Feliz. Um estado espiritual destinado a trazer muitas coisas boas. As vezes ele existe em

Cifras de Baden Powell por André Anjos

PAULO COELHO. A Espia. Adaptação de: Ana Rita Silva. Pergaminho

Finalmente chegou a hora, meu pai era que nos levava todos os dias de bicicleta. --- Vocês não podem chegar atrasado no primeiro dia de aula.

Textos e ilustrações dos alunos do 3º ano 1 de junho de 2017 Dia da Criança

Eis que chega meu grande amigo, Augusto dos Anjos, ele com seu jeitão calado e sempre triste, me fala que não irá existir palavra alguma para

Hoje, às 10h, o H, nosso herói, habitante do abecedário, humilde, honrado e honesto, perdeu uma perna enquanto praticava natação. A perna desapareceu

Todos os domingos à tarde, depois do culto da manhã na igreja, o pastor e seu filho de 11 anos saíam pela cidade e entregavam folhetos evangelísticos.

Sou eu quem vivo esta é minha vida Prazer este

DATA: 02 / 12 / 2013 III ETAPA AVALIAÇÃO ESPECIAL DE LÍNGUA PORTUGUESA 3.º ANO/EF ALUNO(A): N.º: TURMA:

Iracema ia fazer aniversário. Não

Um passinho outro passinho

Chordbook Baden Powell

Entidade Mantenedora: SEAMB Sociedade Espírita Albertino Marques Barreto CNPJ: / ALUNO(A): A5

RESUMÃO VOLUME 1 - MOTIVAÇÃO E PROSPECÇÃO

Título: Poemas da verdade e da mentira. Autor: Luísa Ducla Soares. Ilustação: Ana Cristina Inácio. Edição original: Livros Horizonte, 2005

COMPOSITOR CÍCERO BAHIA

Capítulo Especial 2 O Livro da Vida

Um belo dia de sol, Jessi caminhava feliz para sua escola.

Os e mails de Amy começaram no fim de julho e continuaram

setembro O Senhor Polegar A casa do sono O despertador O balão O amiguinho Jogo dos dedos Jogo das mãos Automassagem...

CAPÍTULO UM. Há um contentor por trás da nossa escola. Este é o meu amigo Assis a saltar lá para dentro.

Quando o Sol se apaixonou pela Lua. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Curso Superior de Tecnologia em Jogos Digitais 2016

Mestrado: 2º Ciclo em Ensino de Educação Física nos Ensinos Básico e Secundário Disciplina: Psicologia Educacional Docente: Doutor Nuno Corte Real

Claro que diziam isto em voz baixa, mas ela ouvia-os e ficava muito triste.

1. OUÇAM A PRIMAVERA!

Leitura: Is 6, 1 2 a, 3-8 Leitura do Livro de Isaías

Presente de Aniversário Vanessa Sueroz

O mar na gota de água

Nirtus subiu no telhado da casa. Ouviu o som da respiração do homem que o acompanhava. Começou perguntando sobre a folha seca da árvore no quintal da

O País dos Contrários

Ruben, o menino Hiperactivo. Autor: E. Manuel Garcia Pérez (Psicólogo)

É difícil fazer alguém feliz, assim como é fácil fazer triste. É difícil dizer eu te amo, assim como é fácil não dizer nada É difícil valorizar um

Uma Aflição Imperial.

D. António ia ao encontro das pessoas - ( registo áudio )

REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA GRAVIDEZ: A EXPERIÊNCIA DA MATERNIDADE EM INSTITUIÇÃO DADOS SÓCIO-DEMOGRÁFICOS. Idade na admissão.

O terrível dever é ir até o fim Clarice Lispector

ANEXO VI. Entrevista aos adultos que desistiram do processo de RVCC

Embatuquei. O pajé ficou sorrindo por trás da fumaça do cachimbo.

Era uma vez uma princesa. Ela era a mais bela

1.começo Eu Isabel franca moro com minha mãe chamada Helen,moramos numa cidade chamada nova lux gosto muito de morar com minha mãe mas o marido dela

João. presta atenção!

É verdade! Podemos. E IREMOOOOOOOOS!

CONCURSO DE POESIA INTERESCOLAS VILA NOVA DE GAIA. 2ª Fase do Concurso de Poesia 2015 Biblioteca da Escola Secundária António Sérgio

2 meses. Social e Emocional Começa a sorrir para as pessoas. Pode se acalmar rapidamente (leva as mãos à boca). Tenta olhar para seus pais.

Professora: Daniela 5 ano A

Fernanda Oliveira. Vida na margem IMPRIMATUR

Ursula Nafula Catherine Groenewald Priscilla Freitas de Oliveira Portuguese Level 4

Às vezes me parece que gosto dele, mas isso não é sempre. Algumas coisas em meu irmão me irritam muito. Quando ele sai, por exemplo, faz questão de

UMA HISTÓRIA DE AMOR

um novo amanhã Nota: Este livro contém um enredo que pode agitar algumas mentes

Eu acredito que você está aqui, nessa vida, por uma razão

O melhor amigo Interpretação de Texto para 4º e 5º Ano

ACONTECE NO MINISTÉRIO INFANTIL: ACONTECE NO MINISTÉRIO INFANTIL:

Quem vive numa aldeia sabe que todos

INTERPRETAÇÃO DE TEXTO

de peluche preferido, mas a minha mãe deu lhe vida através da magia com a varinha dela. Ela consegue fazer magia e encantamentos porque é uma fada!

O Sorriso de Clarice

Projeto Identidades. Experiência de vida. Jacqueline Alves

Uma Ponte para a Paz

manhã a minha irmã Inês vai ter o seu primeiro dia de escola. Há mais de uma semana que anda muito irrequieta e não para de me fazer perguntas,

Sérgio Mendes. Margarida e o lobo. Ilustrações de Ângela Vieira

Ursula Nafula Peris Wachuka Priscilla Freitas de Oliveira Portuguese Level 3

Colégio Santa Dorotéia

Versão COMPLETA. O Ribeiro que queria Sorrir. PLIP004 Ana Cristina Luz. Ilustração: Margarida Oliveira

Os meus segundos melhores amigos são a Zoe e o Oliver. Nós andamos todos na mesma escola. É uma escola normal para crianças humanas. Eu adoro-a!

TESTE ESCRITO DE LÍNGUA PORTUGUESA. Nome Nº Turma

Guerra Junqueiro. Três Contos de Guerra Junqueiro

O pai de Laura pegou o livro secreto das princesas

PSY: Você também tratou muito dela quando viviam as duas. A: Depois não percebe que tem de ir apresentável! Só faz o que lhe apetece!

) ) .,. MEB- 50 ANOS ";.. QUANTO AFETO, QUANTA ALEGRIA RENOVADA EM CADA ENCONTRO... VIVA A VIDA! " MARIA ALICE ~ )

Eu em mim Enfim, esse é meu corpo, flor que amadureceu Estalo os dedos é sonho Respiro fundo é brisa Estendo os braços é asa Libero as fibras é voo

Há 4 anos. 1. Que dificuldades encontra no seu trabalho com os idosos no seu dia-a-dia?

Ao Teu Lado (Marcelo Daimom)

Carlota pintava de pintinhas os sonhos que tinha ao acordar. Todas as manhãs, à sua mãe dizia: só mais um bocadinho, que estou a sonhar. A mãe saía.

MORTE E VIDA SEVERINA

Valorıze-se, organıze-se! Cláudio Ramos

NOVAS PALAVRAS DESENHADAS

A Procura. de Kelly Furlanetto Soares

Ilustrações de Luís Valente

ÍNDICE Vamos brincar Girassóis da Haruka O tio e a tia do grupo de proteção. Vermelho... comum à 1 a e 2 a. sériesverde...

J.I. Faria de Baixo 2017/ Agrupamento de Escolas Ferreira da Silva. Cucujães

a confusão do final do ano e as metas para o próximo

Quando amamos muito alguém raramente pensamos na hipótese de lhe acontecer alguma coisa.

Encarte

REMANDO A FAVOR DA MARÉ

Era uma vez. Relatório 2012

Colégio Santa Dorotéia

Transcrição:

contos_kafka 14/12/05 14:25 Página 17 O ABUTRE Era um abutre que me bicava os pés. Tinha já rasgado as botas e as meias e agora bicava os próprios pés. Bicava sempre sem parar, esvoaçava depois inquieto várias vezes à minha volta e retomava o trabalho. Um homem passou por nós, observou por um momento e depois perguntou porque tolerava eu o abutre. «Não tenho com que me defender», disse eu, «ele chegou e começou a bicar-me, e é claro que o quis enxotar, tentei mesmo estrangulá-lo, mas um animal destes tem muita força, também já queria saltar-me para a cara, por isso preferi sacrificar antes os pés. Agora já estão quase esfacelados.» «Imagine-se, deixar-se torturar assim», disse o homem, «um tiro e é o fim do abutre.» «A sério?» perguntei eu, «e o senhor não quer tratar disso?» «Com muito gosto», disse o homem, «tenho só de ir a casa buscar a espingarda. Consegue esperar ainda uma meia hora?» «Não sei», disse eu, e por um momento fiquei hirto de dor, depois disse: «Em todo o caso tente, por favor.» «Muito bem», disse o homem, «vou apressar-me.» Durante a conversa o abutre ouvira serenamente, deixando vaguear o olhar entre mim e o homem. Via agora que ele entendera tudo, levantou voo, curvou-se muito para trás para ganhar ba-

contos_kafka 14/12/05 14:25 Página 18 18 Franz Kafka lanço e como um atirador de lanças enfiou então o bico pela minha boca até ao mais fundo de mim. Ao cair para trás senti-me liberto enquanto no meu sangue que enchia todas as profundezas e transbordava de todas as margens ele se afogava sem salvação.

contos_kafka 14/12/05 14:25 Página 19 UM ARTISTA DA FOME Nas últimas décadas diminuiu muito o interesse por artistas da fome. Antigamente era um bom negócio montar grandes espectáculos deste género por conta própria, coisa que hoje seria completamente impossível. Eram outros tempos. Naquela altura, a cidade inteira dedicava-se ao artista da fome; de dia de jejum para dia de jejum, o público era cada vez maior; todos queriam ver o artista da fome pelo menos uma vez por dia; nos últimos dias, aqueles que tinham comprado uma assinatura passavam todo o dia sentados em frente à pequena jaula; mesmo já de noite havia ainda visitantes, à luz de tochas para aumentar o efeito; quando fazia bom tempo, a jaula era trazida para o ar livre, e era então sobretudo às crianças que o artista da fome era exibido; se para os adultos ele era muitas vezes apenas um divertimento seguido por moda, já as crianças observavam atónitas, de boca aberta e mãos dadas para se sentirem seguras, aquele homem pálido, com uma malha preta e costelas que sobressaíam poderosas, que estava sentado sobre a palha espalhada, desdenhando mesmo uma cadeira, e que por vezes acenava com a cabeça num gesto de cortesia, respondia às perguntas esforçando-se por sorrir, esticava até o

contos_kafka 14/12/05 14:25 Página 20 20 Franz Kafka braço por entre as grades para dar a sentir a sua magreza, mas que depois voltava a afundar-se em si mesmo, já não dava por ninguém, nem sequer pelo bater das horas para ele tão importante no relógio que era a única mobília da jaula, olhava apenas em frente de olhos quase fechados e de vez em quando bebia de um copo pequeníssimo de água para molhar os lábios. Para além dos espectadores ocasionais, o público escolhia também três vigias permanentes, muitas vezes talhantes, facto curioso, que tinham por tarefa observar o artista da fome dia e noite para que ele não se alimentasse de alguma maneira secreta. Não era mais do que uma formalidade introduzida para satisfazer as massas, os iniciados sabiam bem que durante o período do jejum o artista da fome nunca, em circunstância alguma, mesmo se a isso o obrigassem, comeria o que quer que fosse; proibia-o a honra da sua arte. É claro que nem todos os vigias o compreendiam, por vezes os grupos nocturnos montavam vigia com grande desleixo, juntavam-se de propósito a um canto afastado onde se perdiam absortos num jogo de cartas, com a clara intenção de permitir ao artista da fome uma pequena merenda, na opinião deles escondida por entre umas quaisquer provisões secretas. Nada lhe era mais penoso de suportar do que estes vigias; deixavam-no triste; tornavam o jejum muito mais difícil; por vezes ignorava a sua fraqueza, e enquanto tivesse forças cantava durante o período de vigia para assim lhes mostrar como eram injustas as suas suspeitas. Mas pouco ajudava; admiravam-se então com a perícia com que conseguia comer enquanto cantava. Preferia de longe aqueles vigias que se sentavam muito perto da jaula e que, não se contentando com a escassa iluminação nocturna da sala, lhe apontavam as lanternas eléctricas que o empresário punha à sua disposição. A luz crua não o inco-

contos_kafka 14/12/05 14:25 Página 21 Contos 21 modava mesmo nada, de qualquer modo nunca conseguia dormir, e dormitar um pouco era coisa que podia sempre fazer com qualquer luz e a qualquer hora, mesmo numa sala sobrelotada e ruidosa. Tinha sempre gosto em passar a noite em branco com estes vigias; estava pronto a rir com eles, a contar-lhes histórias da sua vida de viagens, a ouvir também as histórias deles, tudo apenas para os manter despertos, para mais uma vez mostrar que não tinha nada que se pudesse comer na jaula e que jejuava como nenhum deles era capaz. Mas nunca se sentia mais feliz do que quando chegava a manhã e aos vigias era trazido um pequeno- -almoço sobreabundante, pago pelo artista da fome, a que eles se lançavam com o apetite de homens sadios depois de uma noite passada a custo em vigília. Havia ainda gente que queria ver neste pequeno-almoço uma tentativa ilegítima de influenciar os vigias, mas era já ir longe de mais, e quando alguém os convidava a fazer a vigia nocturna sem pequeno-almoço, apenas por amor à causa, logo recusavam e faziam-se desentendidos, mas sem com isso perderem as suas suspeitas. Suspeitas como estas, na verdade, eram inseparáveis do espectáculo da fome. Ninguém podia passar dias e noites inteiros a vigiar o artista da fome, ninguém podia assim ver com os próprios olhos que ele jejuara sem interrupção nem falhas; só o próprio artista da fome o podia saber, ele era assim o único espectador da sua fome inteiramente satisfeito. Por uma outra razão, contudo, mesmo ele nunca estava satisfeito; talvez não fosse a fome a causa daquela magreza que obrigava muitos, mesmo contrariados, a evitar as exibições por não suportarem olhá-lo, talvez a magreza se devesse antes a um descontentamento consigo mesmo. É que só ele sabia, nem sequer um iniciado o podia saber, como era fácil passar fome. Era a coisa mais fácil do mundo. E ele