um novo amanhã Nota: Este livro contém um enredo que pode agitar algumas mentes

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Aurélia Sabala Veiga
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1 um novo amanhã Nota: Este livro contém um enredo que pode agitar algumas mentes

2 um novo amanhã Tradução de Irene Ramalho Oo

3 Prólogo Londres, 1988 Turma, hoje junta-se a nós uma aluna nova. Estavam todos sentados em filas, nas carteiras de madeira, com os uniformes azuis. Provavelmente estariam a olhar para mim, mas eu não tirava os olhos da professora. Tinha uma orelha maior do que a outra (perguntei-me se teria consciência disso) e o cabelo tão comprido que lhe chegava ao peito. Turma, apresento-vos a Veronica Harper. Muitos dos miúdos reagiram com espanto, outros exclamaram bastante alto Uau e, nesse momento, olhei para a turma. O que tinha o meu nome de tão estranho para se comportarem daquela maneira? Alguns começaram a virar-se para trás nas cadeiras para olhar para uma miúda que me fitava com os olhos esbugalhados. Isso mesmo disse a minha nova professora. Esta é a segunda Veronica Harper da turma. Só que os nomes escrevem-se de maneira diferente. A nossa Veronika Harper tem um k em vez de um c, a nova Veronica Harper tem um c em vez de um k. Não é curioso? Dois nomes que se pronunciam exatamente da mesma forma, mas com grafias diferentes, e duas raparigas de 8 anos com o mesmo nome, mas muito diferentes uma da outra. Sorri à Veronika Harper com k. Lembro-me de pensar que era a rapariga mais bonita que alguma vez tinha visto. Por mais fascinante que seja, pode rapidamente transformar- -se numa confusão disse a professora. Costumam chamar-te por algum outro nome, Veronica com c? Respondi com um aceno de cabeça. 9

4 Chamam-me Roni respondi baixinho. Excelente. À Veronika com k chamam-lhe Nika, por isso está resolvido. Agora, podes sentar-te ao pé da Nika, para podermos começar a aula. Sob o olhar atento de toda a turma, aproximei-me da outra Veronica Harper com as pernas a tremer. Nika, presumo que não te importes de mostrar a escola à Roni? sugeriu a professora, sem sequer lhe dar tempo para responder ou fazer um gesto. Ótimo, ótimo. Levantou-se e dirigiu-se ao quadro. Prazer em conhecer-te, Veronica Harper sussurrou-me a Nika quando me sentei na carteira vazia ao lado dela. Igualmente, Veronika Harper respondi eu no mesmo tom. Veronika e Veronica! ralhou a professora sem tirar os olhos do quadro. Era como se tivesse uma superaudição ou algo do género. Espero que não estejam a conversar. Não quero ser obrigada a separar-vos no primeiro dia da Roni. Não, Sra. professora disse a Nika. Não, Sra. professora disse eu. Em todo o caso, seria impossível separar-nos. Já não era possível separar-nos, pois iríamos ser as melhores amigas. 10

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7 Nika Birmingham, 2016 Estou aqui há horas. Provavelmente não passou assim tanto tempo, mas é a sensação que dá. Parece que estou sentada neste desconfortável banco de plástico, com a cabeça nos joelhos, os braços apertados à volta dos joelhos e os sons da esquadra da polícia a pairarem à minha volta, há tanto tempo que sinto a vida a fugir-me por entre os dedos. Há um constante entra e sai, e a conversa dos agentes atrás do vidro à prova de bala do balcão de atendimento chega-me aos ouvidos demasiado abafada para prender o meu interesse. Sempre que alguém abre a porta sou bombardeada pelos ruídos do mundo exterior que, como tudo o resto, lembram-me que provavelmente não devia ter vindo. Ter de esperar para falar com alguém é, seguramente, um sinal de que não era para acontecer. Talvez seja melhor levantar-me e sair. Regressar ao mundo exterior, desaparecer mais uma vez no mar de gente sem rosto e tornar-me tão anónima e invisível como todos os outros. A espera leva-me a pensar e as dúvidas que não tinha antes de aqui estar começam a chegar e vão-se acumulando no meu espírito como pombos a pousar num telhado se o melhor não seria admitir que o que estou prestes a fazer é uma estupidez. Talvez esteja na hora de encarar a brutal realidade e pensar nas consequências, na forma como isto vai afetar a vida de todas as pessoas que conheço. Talvez devesse parar de pensar em justiça e começar a pensar na vida real e no que efetivamente acontece a pessoas como eu. Ouço uma voz a chamar o meu nome. 13

8 Agora é tarde de mais para fugir, já não podes voltar atrás, penso para comigo. Devagar, levanto a cabeça, estico as pernas e pouso os pés no chão, ao mesmo tempo que procuro quem chamou por mim. Cambaleio um pouco quando me ponho de pé, mas recupero a tempo e cerro os punhos, para que não vejam as minhas mãos a tremer. Não há como fugir. Agora, tenho de levar isto até ao fim. Em que posso ajudá-la? pergunta o polícia à paisana. Um inspetor, como tinha pedido. Vem ter comigo, mas mantém alguma distância. Não se quer aproximar demasiado de alguém como eu. Tem uma expressão vagamente aborrecida, desinteressada, mas um tom de voz neutro e cortês. O agente no atendimento comunicou- -me que pediu para falar com um inspetor, mas não lhe quis dizer exatamente do que se tratava? Dou um passo em frente, procurando encurtar a distância entre nós para poder falar sem que me ouçam. Neste momento não está ninguém, a não ser o funcionário ao balcão, mas todo o cuidado é pouco. O assunto requer discrição. Não vou ser capaz, penso. Preciso de fazer isto, mas não consigo. Não vou conseguir dizer nem mais uma palavra. A expressão do inspetor passa rapidamente de vagamente aborrecida e desinteressada a baralhada, a roçar a impaciência. Estou a fazê-lo perder tempo e isso não lhe agrada nada. Inspiro fundo, numa tentativa de afastar as dúvidas e recuperar as certezas que me trouxeram aqui. Eu Isto é A voz falha-me. Não, não sou capaz. Inesperadamente, vem-me à memória o som, aquele que ouvi pela primeira vez há menos de uma semana, tão nítido como então. Enche-me de horror e tenho de me conter para não tapar os ouvidos com as mãos. Com uma determinação renovada, cerro os punhos com força, endireito as costas, olho o inspetor diretamente nos olhos e declaro: Vim vim participar uma tentativa de homicídio. 14

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