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Transcrição:

2 o Semestre 2014 Ciclo III Quinta-feira - Noite Aluno: Raphael Piedade de Próspero Título: Histeria e manifestações na música contemporânea Este trabalho tem um interesse particular no aspecto da histeria que a torna um impeditivo para o gozo feminino e para uma posição possível que a mulher poderia assumir. Para discorrer sobre isso, o recorte utilizado foi a relação da histeria com as repressões por parte da moral civilizada da época de Freud, e configurações histéricas que ainda se manifestam em um contexto que aparentemente ultrapassaria algumas dessas repressões. Contexto que será ilustrado por letras de funk da música contemporânea. Sobre a história da sexualidade 1, Foucault fala da aphrodisia, no início da era cristã. Trata-se de uma arte erótica e um regime que rege os atos e prazeres, que leva a uma reflexão ética não de saber que atos são permitidos ou proibidos, mas de com que força se é levado pelos prazeres e desejos. O exercício da sexualidade não é considerado um mal em si, mas é necessário delimitar até que ponto convém praticá-lo. Na Idade Média, a carne passa a ser a origem dos pecados e o desejo passa a ser visto como um mal. E no século XIX passamos a ver um paradoxo: uma intensa repressão e, ao mesmo tempo, uma grande obstinação em fazer falar o sexo.

Freud, no texto A moral sexual civilizada, diz que a cultura só é possível pela coerção dos impulsos eróticos e agressivos, mas que esta repressão tem um limite, onde a partir dele não é mais possível abrir mão de gratificação 2. É neste jogo pulsional que os desejos começam a se manifestar por meio dos sintomas, como algo que transborda. Relacionamos facilmente a histeria com esta intensa repressão ao desejo sexual, que por conta da investigação de Freud, tem destaque no período de fins do século XIX e início do XX. E após diversas mudanças culturais, entre elas o clamor do feminismo por direitos igualitários para as mulheres, podemos observar que as histéricas atuais não são as mesmas da época de Freud. Podemos, de uma certa forma, colocar em contraposição com este contexto do século XIX, os exemplos obtidos em manifestações na música, em especial no funk, de como a mulher passou a negar e desafiar esta repressão, buscando uma posição diferente. Seria o funk, do ponto de vista feminista, um avanço no sentido de a mulher tomar uma voz ativa em relação ao seu desejo, e uma tentativa de sair da posição que se submete aos desejos masculinos? A histérica, não se havendo com sua castração, não aceita a condição de furo simbólico que a ausência do falo representa. Para Lacan, ela seduz o homem com sua aparente capacidade de ser o falo mas, no último momento antes do desvelamento, recua receosa de que o homem descubra que o que ela esconde é, na realidade, aquilo que não tem 2. O discurso da histérica interroga a potência do pai, visa demonstrar que o mito edipiano e a lógica fálica desconhecem a existência da mulher 3. Neste trecho de música,

observa-se tanto um movimento de assumir uma voz ativa como uma certa agressividade desafiadora: Vê se para de gracinha Porque eu dou pra quem quiser Que a porra da buceta é minha (Gaiola das Popozudas - A porra da buceta é minha) Observamos que, apesar do aparente desprendimento que permite a cantora falar explicitamente de seus desejos sexuais e afirmar que não é sujeita ao desejo masculino, há uma lógica fálica predominante que ainda se apresenta como obstáculo entre a mulher e o feminino. Ô feiticeira, o que tem pra me dizer? -Vou fazer teu boneco desaparecer Mas na mágica que eu faço, olha o meu boneco cresce -O feitiço que eu faço o boneco desaparece (Mc Mágico e Suzi Feiticeira - Que que isso) O exemplo acima mostra a resposta da histérica à noção na qual ser mulher é submeter-se ao gozo narcísico e violento do homem. Essa resposta é gozar com a impotência e o sofrimento do homem. Após a explicação inicial da estruturação da feminilidade, que se ancorava muito na inveja do pênis, Freud, em 1931, começa a dar atenção para a relação da menina com a mãe na fase pré-edípica 3. De fato, há um

anseio ativo de ser possuída passivamente, algo que torna a mulher essencialmente feminina, porém ao mesmo tempo a coloca na condição de sujeição ao desejo do homem. Diante deste dilema, quais seriam os possíveis caminhos do vir a ser mulher, que não aprisionariam na lógica fálica, mas também não reduzem ao objeto do desejo do outro? Existe um gozo possível para a mulher que está além do falo? Lacan aponta em uma direção para a compreensão deste complicado caminhar da mulher. Quanto ao furo inominável a ser suportado, além da castração de ordem simbólica, ele reforça a vertente do real 3. O contato com a ausência do órgão remete a mulher a este lugar de abismo e de medo. E este lugar de aspiração mortal e vertigem do absoluto que rompe todo o vínculo humano configuraria um gozo que não se restringe ao fálico. André diz que para Lacan a divisão do sujeito em face ao sexual não é entre dois sexos, mas entre dois gozos: um todo-fálico e outro não-todo, sendo que o primeiro faz o outro surgir como seu mais-além. Suportar e gozar neste lugar seria assumir como um gozo a própria injustiça que lhe causa horror 3. O lugar que é insuportável para a histérica, e buscado pela Mulher, é o desse Outro absoluto. A partir desta noção, o acesso ao gozo feminino não se dá através da representação fálica, porém também não acontece sem esta. É neste ponto que a histérica interrompe o caminho a este gozo suplementar, quando reivindica o gozo fálico evidenciando a falta no Outro e colocando-se enquanto seu objeto de desejo. Soler diz que se uma mulher quer gozar, uma histérica quer ser 4.

Lacan fala do amor como dois meio-dizeres que não se recobrem, e como dois saberes enquanto que são irremediavelmente distintos 4. Albuquerque 4, a partir daí, pensa as seguintes diferenças: o lugar ocupado pela histérica como fazer-se objeto de desejo. O lugar ocupado pelo masoquista ou pelo psicótico como fazer-se objeto de gozo. E o lugar feminino, como o fazer-se objeto de amor. Esta posição, diferente de objeto de gozo e desejo do Outro, implicaria o acesso ao gozo do Outro. Bem, até aqui foi possível compreender que um novo posicionamento da mulher em relação a manifestação de seus desejos de ordem sexual - associado a uma espécie de vitória sobre uma repressão social destes desejos - não representa necessariamente uma superação da lógica do gozo fálico, na qual a mulher acaba presa. Para futuras investigações, ficam então questões como: o que seria colocar-se em uma posição de objeto de amor, e como isso se difere das posições de objeto de desejo e de gozo? O que configuraria este acessar o gozo do Outro colocando-se também como sujeito desejante? Onde é este lugar de Outro absoluto que passa pelo desejo do homem mas vai além dele, em direção a um gozo suplementar ao fálico? Afinal, o que quer uma mulher?

Referências 1 ASSIS, Maria de Fátima e OLIVEIRA, Maria Lúcia Por uma história da sexualidade entre Freud e Foucault: Costuras e Alinhavos 2 DUARTE, Marina e CHATELARD, Daniela Do mal-estar moderno ao pósmoderno: Reflexos sob a histeria, 2014 3 JÚNIOR, Ronis Magdaleno A construção do feminino: um mais-além do falo 4 ALBUQUERQUE, Raquel Coelho Além do falo: uma mulher e o gozo feminino ANDRE, Serge O que quer uma mulher? 1987 FREUD, Sigmund Moral sexual civilizada e doença moderna, 1908 FREUD, Sigmund Sexualidade feminina, 1931 FOUCAULT, Michel História da sexualidade, 1976-84 LACAN, Jacques Seminário IV, 1956-57 LACAN, Jacques Seminário V, 1957-58 LACAN, Jacques Diretrizes para um Congresso sobre a feminilidade, 1960