CONSULTA PÚBLICA CMVM Nº 1/2006 NOTAS SOBRE ALGUMAS PROPOSTAS DO PROJECTO DE ALTERAÇÕES AO CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS Com vista a procurar corresponder de modo sintético e o mais possível pragmático, dado o escasso tempo disponível ao meritório esforço representado pelo documento sob consulta, parece útil registar as seguintes anotações soltas relativamente a algumas das propostas do articulado, referenciando-as pelo artigo respectivo: Artigo 64.º Nada a opôr à explicitação do dever de lealdade, que é talvez, de entre a especificação típica de deveres gerais, aquele que mais plausivelmente poderia dar ensejo à dúvida sobre não estar já abrangido pelo conteúdo funcional do dever geral de administrar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado. Artigo 72.º O n.º 1, que consagra a tradicional presunção de culpa em caso de preterição dos deveres legais, parece harmonizar-se mal com o n.º 2, que se reporta a matéria diferente. Quanto a este n.º 2, temos muitas dúvidas que se deva falar em exclusão de responsabilidade, dado que o que se enuncia como factor de exclusão parece antes dever corresponder a uma delimitação negativa da própria ilicitude (delimitação 1
negativa do tipo) e não também mera presunção de licitude, como se refere, para a afastar, no documento de consulta. Pareceria ser preferível uma norma autónoma que sublinhasse esta delimitação de ilicitude, dizendo muito simplesmente que não é sindicável (v. g. judicialmente) o mérito da actuação do adminstrador quando este haja actuado em termos informados, livre de qualquer interesse pessoal e segundo critérios de racionalidade empresarial o que, repete-se, parece não ter a ver com a presunção de culpa do n.º 1 deste artigo 72.º. Artigo 73.º Compreende-se que se não tenha querido afastar de todo a solidariedade, em homenagem à doutrina tradicional e à orientação comunitária (orientação que, no entanto, é de âmbito meramente parcelar e não impõe que se abranja toda a actividade dos administradores). Todavia, continua a justificar-se claramente serem introduzidas normas de diferenciação da responsablidade, muito especialmente entre administradores delegantes e delegados (vulgo não-executivos e executivos), à semelhança do que fez a recente reforma italiana relativamente ao artigo 2392.º do Codice Civile (*). Diga-se ainda que tal diferenciação se afigura também necessária embora não se trate já de delegação no novo modelo anglo-saxónico, entre administradores membros da comissão de auditoria e os demais, e bem assim no conselho geral e de supervisão do modelo dualista ( germânico ) entre os membros da comissão de (*) Sobre este ponto e os dois anteriores, cfr. João Soares da Silva, Responsabilidade civil dos administradores de sociedades: os deveres gerais e os princípios da corporate governance, Revista da Ordem dos Advogados, 1997, p. 624-626 e Catarina Pires Cordeiro, Algumas considerações críticas sobre a responsabilidade civil dos administradores perante os accionistas no ordenamento jurídico português O Direito, ano 137, 2005, p. 105-106, 109-110 e p. 123-124, em especial notas 119 e 184. 2
acompanhamento de matérias financeiras e os demais membros do órgão de fiscalização. Artigo 288.º, n.º 4 A divulgação no sítio da sociedade na internet parece adequada, mas não já o envio, ainda que por correio electrónico, a accionistas, os quais podem ser em número muito elevado e não parecem ter qualquer necessidade carecida de tutela em receber por essa via algo que já está disponível no sítio da internet. Artigo 289.º, n.º 3 Aplicam-se as considerações referidas quanto ao artigo 288.º, n.º 4, aqui com a agravante de a alínea a), do n.º 3, prever o envio por carta, o que é ainda mais injustificadamente oneroso para a sociedade. Artigo 365.º e Artigo 372.º-A Não parece justificado manter a restrição das obrigações convertíveis às sociedades com valores cotados, até porque desfavoreceria este instrumento relativamente a outros próximos que não estão limitados a sociedades abertas (obrigações permutáveis, reverse convertibles, warrrants, etc.). Artigo 374.º Feriria a tradição jurídica portuguesa a hipótese de ter um administrador a presidir à assembleia geral, ainda que aquele seja presidente do conselho de auditoria. A simetria de modelos deveria sofrer aqui uma adaptação, de modo a apontar para o revisor oficial de contas, seguindo-se depois a ordem do nº 4. 3
Artigo 375.º e Artigo 377.º, n.ºs 1 e 7 A dúvida expressa a respeito do artigo 372º poderia aplicar-se, mas serão aqui porventura mais fortes as razões práticas que apontam para que a comissão de auditoria, embora composta por apenas alguns dos administradores, tenha um poder autónomo de iniciativa e convocação de assembleia. É, porém, um dos afloramentos da natureza de corpo estranho que o modelo anglo saxónico não deixará de revestir no direito português. Artigo 377.º, nº 5, f) Crê-se que as condições de segurança deveriam ser remetidas para decisão da mesa da assembleia geral, em vez de sobrecarregar a convocatória. Artigos 384.º, nº 3 Discorda-se vivamente e em absoluto da proposta de afastamento do regime de excepção do Estado relativamente a cláusulas de limitação de contagem de votos, regime que, podendo ser teoricamente visto como anómalo em termos abstactos de direito societário, tem justificação substantiva evidente, fundada no interesse público. Seria porventura preceito hoje difícil de introduzir no Código, mas, existindo, parece de elementar prudência e bom senso não o afastar. Artigo 384.º, n.º 9 A segunda das alternativas apontadas para propostas apresentadas após a emissão de voto por correspondência (possibilidade de contagem post-assembleia) parece perfeitamente admissível, quando praticável, embora com cautelas. 4
Já a primeira, porém (considerar os votos por correspondênca como votos contra qualquer proposta posterior), suscitaria viva discordância e iria ao arrepio dos esforços intencionais do movimento de corporate governance para fomentar e valorizar a participação dos accionistas em assembleias. Um dos aspectos centrais dessa participação, conforme é pacificamente reconhecido, é o direito de table resolutions nas reuniões, que generalizadamente se propugna que seja assegurado. Ora, onde esse direito já exista - como em Portugal - onerá-lo com uma (ficcionada) carga de votos contra, provenientes de quem nem sequer conhece a proposta (!) seria desincentivar e dificultar o seu exercício de um modo injustificado, mesmo que se considere que poderia resultar estimulado o voto por correspondência. A solução deve ser, com toda a naturalidade, a de que os votos por correspondência não serão tidos em conta nas propostas posteriormente apresentadas (às quais se não referem), salvo se for deliberado pela própria assembleia que se abra um novo período de recepção e contagem de votos (mas apenas aberto a quem já tivesse votado por correspondência, para não subverter os quorum e maiorias). Esta opção não deve ter de constar rigidamete dos estatutos e deverá poder ser objecto de deliberação por cada assembleia, face à realidade concreta que estiver em causa. Na ausência de deliberação, aplicar-se-á a regra geral de desconsideração. Artigo 405.º O princípio de que o órgão de administração deve apenas subordinar-se às decisões da assembleia geral e do órgão de fiscalização nos casos em que a lei ou o contrato o determinam é um princípio fulcral do direito societário, pelo que parece dever reproduzir-se expressamente quanto aos dois demais modelos, isto é, relativamente quer à comissão de auditoria quer ao conselho geral e de fiscalização do modelo dualista germânico neste último caso, pelo menos, quanto à sua sub-modalidade 5
em que o conselho de administração é eleito pela assembleia, na qual a aproximação ao modelo tradicional é mais nítida. Artigo 407.º, nºs 6 e 7 Não parece de acompanhar a proposta de autonomização na lei da figura do presidente da comissão executiva, sobretudo quando se deixou - e bem, na linha das recomendações da União Europeia a cada sociedade, salvo no modelo dualista, a opção entre modelos societários bicéfalos (Chairman/CEO) ou de cumulação (Chairman e CEO). Trata-se de matéria que deve ser deixada aos estatutos e à prática societária. A transmissão de informação deve incumbir a todos os membros da comissão executiva e a respectiva organização e o papel de presidente devem ser matéria estatutária e de regimento interno. Concorda-se, todavia, com o voto de qualidade previsto no nº 7. Artigo 414º, nº 4 Crê-se que o limiar a considerar deveria ser não 5% mas, pelo menos em sociedades com valores admitidos à negociação, o correspondente ao limiar mínimo de participação qualificada sujeita a comunicação pública, que actualmente é de 2%. Artigo 414º-A Na alínea a) do nº1 o conceito de vantagens particulares não tem definição legal precisa (salvo a que resulta do nº 1 do artigo 16º do CSC) e pode prestar-se a dificuldades e controvérsias indesejáveis, quando se trata de poder aferir com rigor 6
uma incompatibilidade. Sugere-se, pois, eliminar esta alínea a), uma vez que o núcleo essencial de hipóteses a cobrir parece resultar suficientemente das demais alíneas. Sugere-se igualmente a eliminação da alínea g), visto que se afigura que as relações familiares devem relevar antes no plano da aferição de independência ou ausência de independência e não no de definição de incompatibilidades. Artigo 414º-B Relativamente à incompatibilidade prevista no nº2 (reeleição por um máximo de 2 vezes) deverá ficar acautelada em disposição transitória a sua aplicação apenas a eleições subsequentes à alteração legislativa, sob pena de retroactividade. Artigo 422º Afigura-se que a alínea c) (presença obrigatória em todas as reuniões da comisão executiva por parte de administradores que são não executivos) onera burocraticamente o exercício de funções e não é essencial à sua eficiência bem pelo contrário, pode afectar a atractividade do cargo e dificultar a aceitação de funções - pelo que se sugere a sua eliminação. O mesmo se diga da alínea f) (registo escrito de todas as verificações). Artigo 423º - E Parece ser levar longe demais a analologia com o conselho de fiscalização o estabelecimento de uma proibição de destituição sem justa causa, que contraria o princípio central da ordem jurídico-societária portuguesa de destituibilidade dos administradores ad nutum - pelo que deverá a proibição de destituição sem justa causa limitar-se, neste modelo, ao revisor oficial de contas. 7
Artigo 423º - G Julga-se que o previsto nos nºs 2 e 3 se deveria aplicar ao revisor oficial de contas e não ao presidente da comissão de auditoria, quer porque se considera inadequada uma acentuação excessiva de função presidencial, quer ainda porque aqui se trata uma estrutura constituída no seio de um conselho de administração cuja natureza é colegial. Artigo 425º e artigo 430º A redacção do nº1 pode sugerir a interpretação (incorrecta) de que a competência do conselho geral e supervisão para designação dos administradores é concorrente com a da assembleia geral, ainda quando os estatutos autorizarem esta última Deve, pois, expressar-se inequivocamente que quando os estatutos autorizarem a designação pela assembleia geral esse poder de designação é exclusivo e afasta a possibilidade de designação pelo conselho geral. O mesmo se aplica quanto à destituição, relativamente ao nº1 do artigo 430º. Quanto à substituição de administradores prevista no nº4, do artigo 425º, é também imprescindível clarificar que o poder de substituição pelo conselho geral e de supervisão apenas se aplica quando cabe a este órgão proceder à designação e destituição. Quando a designação e destituição caibam (exclusivamente, como se referiu) à assembleia geral, a substituição de membros do conselho de administração executivo deve fazer-se nos mesmos termos previstos para o conselho de administração no modelo tradicional isto é, por chamada de suplentes ou cooptação, sujeita a esta ratificação na assembleia geral seguinte. Por outro lado, no nº 6, alínea a), a referência deve ser para todo o artigo 437º e não apenas para os seus nºs 2 e 3 (cfr. infra). 8
Por último, também aqui se sugere a eliminação da alínea c) do artigo 425º, nº6, por se entender deverem as relações familiares ser ajuizadas em sede de aferição de independência e não de incompatibilidade. Artigo 429.º Não se vê qualquer razão para que, no caso dos administradores serem eleitos pela assembleia geral, a fixação da respectiva remuneração não seja efectuada por esta ou comissão nomeada por esta, pelo menos quando a comissão de remuneração do conselho geral e de supervisão (que é de constituição facultativa) não tenha sido constituída. Quando essa comissão tiver sido constituída, deverá mesmo assim, ser a assembleia geral a deliberar se a fixação de remunerações dos administradores por si eleitos é deferida à comissão de remunerações do conselho geral e de supervisão ou se mantém na assembleia geral ou comissão por ela nomeada. Só faz sentido um poder autónomo de fixação de remunerações pelo conselho geral e de supervisão ou comissão dele quando os estatutos expressamente o estabelecerem, ou nos casos em que seja o conselho geral e de supervisão a ter estatutariamente, (por via expressa ou tácita) o poder de designar e destituir os administradores. Artigo 431.º Para evitar dúvidas, que poderiam ser propiciadas pela anterior configuração do modelo dualista de raiz germânica, afigura-se muito importante, relativamente à competência do conselho de administração executivo, que, onde na proposta se diz gerir as actividades da sociedade, sem prejuízo do artigo 442.º, n.º 1, se diga gerir em exclusivo as actividades da sociedade, sem prejuízo do artigo 442.º, n.º 1. Do mesmo modo, e pela mesma razão, é de eliminar, no n.º 3, a expressão com as modificações determinadas 9
pela competência atribuída na lei ao conselho geral e de supervisão, para clarificar que o disposto no artigo 442.º representa a única modificação ao poder de gestão resultante das competências legais do conselho geral e de supervisão. Artigo 432.º O modelo de relacionamento entre o conselho de administração executivo e o conselho geral e de supervisão não deve assentar numa opção de autonomização (e concentração de poderes) e da figura do presidente do conselho geral e de supervisão. Por isso, nos nº2 e nº4 deste artigo 432º, as referências ao presidente do conselho geral e de supervisão devem ser sustituídas por referências ao próprio conselho geral de supervisão. Por outro lado, no nº5, o membro delegado é delegado do conselho e não do presidente, devendo, consequentemente, dizer-se o direito de assistir a reuniões do conselho de administração executivo é limitado ao presidente do conselho geral e de supervisão ou a um membro delegado designado por este órgão para o efeito. Artigo 433.º Na sub-modalidade do modelo dualista em que a competência para eleição do conselho de administração executivo pertence exclusivamente à assembleia geral, não faz sentido que o pedido de declaração de nulidade ou anulação de deliberação do conselho e deliberações sobre caução e sobre reforma de administradores pertençam ao conselho geral e de supervisão e não à assembleia geral. Por isso, o artigo 433º deverá ser desdobrado, de modo a contemplar diversamente os casos em que a nomeação dos administradores pertence à assembleia geral (hipótese essa em que aqueles poderes devem caber a esta) e os casos em que a 10
eleição e destituição pertence ao conselho geral (hipótese em que as soluções do projecto são aceitáveis). Artigo 437.º Para acolher a possibilidade de serem contempladas práticas internacionais generalizadamente reconhecidas como saudáveis para um relacionamento interorgânico eficiente, no nº1 do artigo 437º, dever-se-á abrir uma excepção para o presidente do conselho de administração executivo, autorizando, se os estatutos o determinarem, que este tenha assento, como membro, no conselho geral e de supervisão, embora eventualmente sem direito de voto. Artigo 441.º A alínea b) deveria ser mais clara no sentido de explicitar que ao conselho geral e de supervisão só cabe designar o presidente do conselho de administração executivo nas hipóteses em que lhe pertença também o poder de designar ou destituir os membros deste. Artigo 442.º Embora sendo a solução actual do código, a profunda alteração resultante da introdução da sub-modalidade de modelo dualista com eleição e destituição pela assembleia geral (por maioria simples) fez com que, nesta sub-modalidade, a resolução de diferendos entre o conselho geral e de supervisão e o conselho de administração executivo deva poder ser objecto de deliberação pela assembleia geral também por maioria simples, em lugar de por maioria de dois terços. 11