CONSEQÜÊNCIAS POSSÍVEIS DA ADI nº 2.588 André Martins de Andrade Advogado Mestre em Direito Comercial USP Doutor em Direito Público UERJ O sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, que combina o judicial review da common law com o controle concentrado do direito continental europeu, almeja dar plena efetividade à Constituição da República a partir da concretização liminar do princípio da segurança jurídica. As situações de vida, entretanto, são tão mais fecundas que as previsões do mais cuidadoso legislador que casos há em que a rigidez no julgamento da ação pode conduzir ao paradoxo de um agravamento do quadro de perplexidade pré-existente. O próximo julgamento pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal da ADI nº 2.588, que trata da tributação dos lucros de coligadas e controladas no exterior, tem todos os elementos para configurar uma dessas situações. É que a boa processualística adstringe o julgador aos termos em que se deu a propositura da ação. Em tema de controle de constitucionalidade, todavia, tais limites hão de ser ultrapassados sempre que necessário para o completo deslinde do tema. Duas correntes diametralmente opostas fundadas em argumentos antagônicos se sedimentaram ao longo dos seis anos de tramitação dessa ADI que pleiteia a inconstitucionalidade do art. 74 da MP nº 2.158-35/01, a tributar os lucros no exterior quando de sua mera apuração. 1
O argumento esgrimido pela Autora (CNI) é o da ofensa ao conceito constitucional de renda, a pressupor a disponibilidade jurídica ou econômica do correspondente acréscimo patrimonial. O precedente de Plenário invocado é o RE nº 172.058-1, em que o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional o art. 35 da Lei nº 7.713 que fazia incidir a tributação sobre a renda do investidor antes de sua disponibilização por parte da sociedade investida. Nesta linha de raciocínio manifestou-se, inicialmente, em voto divergente, o Min. Marco Aurélio, seguido pelos Min. Pertence e Lewandowski, proclamando a inconstitucionalidade do chamado dividendo ficto ou dividendo presumido. Em corrente oposta, alinhou-se o voto da Min. Relatora Ellen Gracie, que afastou a incidência somente no que tange à tributação da coligada, com reparos introduzidos pelo Min. Nelson Jobim, e adotados pelo Min. Eros Grau, no sentido de alcançar os resultados no exterior tanto de coligadas quanto das controladas. Ao se examinarem as conseqüências que poderão advir de um ou de outro entendimento, há de preocupar-se o analista não com os fundamentos contidos em cada um dos votos referidos. A preocupação deflui, ao revés, daquilo que não vem dito pelos eminentes Ministros. Veja-se o primeiro caso, que proclama a inconstitucionalidade do chamado dividendo ficto ou presumido. Ao fazê-lo, resta implícita a idéia de que a distribuição efetiva poderia ser submetida à tributação. Acolhe-se, desse modo, como única regra de tributação internacional compatível com o sistema jurídico brasileiro a chamada regra do 2
diferimento, em que a incidência sobre os lucros no exterior é postergada para o momento de sua efetiva distribuição aos sócios brasileiros. É sabido que o diferimento constitui o instrumento que propicia toda sorte de manobras envolvendo a elisão fiscal mediante a utilização de paraísos fiscais. Tanto assim que a legislação antielisiva voltada ao combate dessas práticas é referida como sendo anti-diferimento. Surge, neste ponto, o primeiro paradoxo. A legislação brasileira que instituiu a tributação de lucros no exterior declaradamente com o objetivo de pôr cobro à utilização desses expedientes por parte das empresas brasileiras, 1 é constitucional somente na extensão em que propicia tais manobras. Pior que isso: reconhecida implicitamente pelo Supremo Tribunal Federal a possibilidade de tributação do dividendo distribuído por subsidiária estrangeira de empresa brasileira, há de suscitar-se nova discussão quanto à violação do princípio da isonomia e da vedação à discriminação do tratamento tributário com base na origem da renda, como previsto em todos os tratados para evitar a dupla tributação de que o País é signatário. É que, se o legislador infraconstitucional de um lado consagrou a tributação da pessoa jurídica em bases universais (art. 25 da Lei nº 9.249/95), 2 dando efetividade ao princípio constitucional da universalidade, 1 Cf. a Exposição de Motivos que acompanhou o projeto que resultou na Lei nº 9.249/95: 14. Adota-se, com a tributação da renda auferida fora do País, medida tendente a combater a elisão e o planejamento fiscais, uma vez que o sistema atual - baseado na territorialidade da renda - propicia que as empresas passem a alocar lucros a filiais ou subsidiárias situadas em 'paraísos fiscais (...)'". 2 O caput deste dispositivo estabelece que: Os lucros, rendimentos e ganhos de capital auferidos no exterior serão computados na determinação do lucro real das pessoas jurídicas correspondente ao balanço levantado em 31 de dezembro de cada ano. Os parágrafos deste dispositivo regulamentam o cômputo de tais lucros, rendimentos e ganhos de capital na apuração do lucro das pessoas jurídicas domiciliadas no Brasil, inclusive com expressa menção ao método da equivalência patrimonial, cuja receita permaneceu 3
introduzido na Constituição de 1988, de outra parte abandonou a prática por tantas décadas vigente no direito pátrio da tributação tanto do lucro produzido como também do lucro distribuído. Neste passo, consagrou o regime da tributação exclusiva dos lucros no âmbito da pessoa jurídica produtora (lucro produzido), isentando de tributo os beneficiários de sua distribuição (art. 10 da Lei nº 9.249/95). 3 Incompatível com a isonomia constitucionalmente prevista a situação em que o beneficiário brasileiro de uma distribuição feita por uma subsidiária brasileira não sofre a incidência em questão, que, ao revés, recai sobre este mesmo beneficiário brasileiro na hipótese em que a distribuição tenha sido feita por uma subsidiária estrangeira. Em outras palavras, dividendos recebidos por investidor brasileiro de investimento no Brasil não são tributados, mas dividendos recebidos por investidor brasileiro de investimento no exterior são passíveis de tributação integral. Ajuizada nova ADI, agora sobre a inconstitucionalidade da tributação dos dividendos discriminados em função da origem, só restaria ao Supremo Tribunal Federal provê-la por ofensa à aplicação da regra da isonomia em matéria tributária. Pode-se figurar tal situação como segue. isenta de tributação, na dicção do 6º: Os resultados da avaliação dos investimentos no exterior, pelo método da equivalência patrimonial, continuarão a ter o tratamento previsto na legislação vigente, sem prejuízo do disposto nos 1º, 2º e 3º. 3 O art. 10 dispõe que: Os lucros ou dividendos calculados com base nos resultados apurados a partir do mês de janeiro de 1996, pagos ou creditados pelas pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real, presumido ou arbitrado, não ficarão sujeitos à incidência do imposto de renda na fonte, nem integrarão a base de cálculo do imposto de renda do beneficiário, pessoa física ou jurídica, domiciliado no País ou no exterior. 4
Supremo Tribunal Federal Provimento (favorável ao contribuinte) Não pode tributar dividendo ficto Pode tributar a distribuição inclusive de países com tratado (art. 10) Paraíso Fiscal País de trib. normal País com tratado Diferimento Sujeito a contestação Registre-se que tais conseqüências aplicar-se-iam indistintamente a subsidiárias estrangeiras localizadas em paraísos fiscais, em países com tratado para evitar a dupla tributação firmado com o Brasil, e em países com tributação normal (não inferior a 20%), como conceituado pela legislação aplicável. No outro extremo desta situação de verdadeiro descalabro, pode-se mencionar a que decorreria de uma interpretação fazendária exacerbada de 5
uma possível decisão do Plenário do Supremo Tribunal Federal na ADI nº 2.588 desfavorável ao contribuinte. Nesta situação, poderia o Fisco pretender inferir que a Suprema Corte teria legitimado o dividendo ficto, de que decorreria a incidência automática da tributação quando da mera apuração dos lucros no exterior, independentemente de tratar-se de subsidiária localizada em paraíso fiscal, em país com tratado vigente com o Brasil para evitar a dupla tributação, ou em país de tributação normal, em uma interpretação que se poderia figurar como abaixo. Mais uma vez, tais inferências, ao menos no que concerne às subsidiárias localizadas em países que tenham firmado acordo com o Brasil para evitar a dupla tributação, se submeterão a novas contestações que irão percorrer o longo caminho dos tribunais até final decisão sobre temas inerentes à aplicação dos tratados, como (1) a subsunção do dividendo ficto ao art. VII (lucros) ou ao art. X (dividendos) dos tratados à luz de sua natureza jurídica, (2) o alcance da cláusula de não discriminação, além do questionamento genérico antes referido no que tange à aplicação constitucional da isonomia. Seria isonômica uma regra que sujeitasse o investidor brasileiro à tributação de um dividendo ficto no que tange ao investimento feito no exterior, ainda que inexistente tal incidência relativamente ao investimento feito por este mesmo investidor, só que no País? 6
Supremo Tribunal Federal Provimento (favorável ao contribuinte) Improvimento (contrário ao contribuinte) Não pode tributar dividendo ficto Dividendo ficto Pode tributar a distribuição inclusive de países com tratado (art. 10) Tributação plena inclusive de países com tratado Paraíso Fiscal País de trib. normal Diferimento Automática País com tratado Sujeitos a contestação Em ambos os cenários instaurada estaria a mais completa insegurança jurídica, com o renovar infindo de sucessivos pleitos acerca de questões periféricas não examinadas pela Corte no julgamento da ADI nº 2.588, seja porque não suscitadas por seu Autor seja com base em divergências conceituais. Em verdade, com base nos votos proferidos pelos que negam provimento integral (Min. Nelson Jobim e Min. Eros Grau) ou parcial (Min. Ellen Gracie) à referida ADI, a Fazenda não poderia inferir a regra da 7
tributação automática a aplicar-se de modo amplo a todas as situações envolvendo a apuração de lucros no exterior. Com efeito, a tributação reflexa no âmbito da sociedade investidora como decorrência da apuração de lucros por parte da subsidiária estrangeira constitui uma sistemática de tributação de lucros e não de dividendos. Trata-se, aí, do regular exercício da soberania fiscal que permite que o Brasil, com base na regra constitucional da universalidade, alcance os resultados apurados pelas subsidiárias estrangeiras de pessoas jurídicas brasileiras, constituindo estas o elemento de conexão propiciador a este exercício de soberania. Naturalmente, no que tange aos países com os quais o Brasil celebrou acordo para evitar a dupla tributação, há de se reconhecer que prevalece a regra da não incidência, tendo em vista, que, com respeito às sociedades constituídas nestes países, o Brasil abdicou da competência tributária, como definido na cláusula VII dos tratados. 4 Assim, o deslinde adequado da matéria contida na ADI nº 2.588 atinente à tributação dos lucros no exterior é o que conceitua a tributação como incidente sobre lucros e não sobre distribuição de dividendos, ficta ou efetiva. Ademais desta circunstância, seria de todo desejável que a Suprema Corte explicitasse que, no caso de lucros de sociedades em países com os quais o Brasil mantenha tratado para evitar a dupla tributação, 4 O art. VII dos tratados que seguem o modelo proposto pela OCDE preceitua que: 1. Os lucros de uma empresa de um Estado Contratante serão tributáveis apenas nesse Estado, salvo se a empresa exercer sua atividade no outro Estado Contratante por meio de um estabelecimento permanente aí situado. Se a empresa exercer sua atividade conforme acima mencionado, os lucros da empresa poderão ser tributados no outro Estado, mas somente no que se refere à parte dos lucros atribuível ao estabelecimento permanente em questão. (...) (tradução livre). 8
prevaleceria a regra de não incidência prevista no âmbito dos acordos internacionais. A conclusão necessária seria a de que a tributação automática restringir-se-ia às hipóteses de lucros apurados em sociedades constituídas em paraísos fiscais, como era o intento inicial do legislador, bem como às sociedades constituídas em países de tributação normal, neste caso, porém, com crédito automático do imposto pago naquele país, sem a limitação temporal prevista por regra espúria introduzida a posteriori na sistemática infraconstitucional. 5 Esta conclusão impõe-se como única via para dar efetividade normativa ao princípio da universalidade da tributação, inserido na Constituição da República (art. 153, 2º, I), completando-se as figurações anteriores como abaixo. 5 Art. 1º, 4º, da Lei nº 9.532, de 10/12/1997: 4º. Os créditos de imposto de renda de que trata o art. 26 da Lei nº 9.249, de 1995, relativos a lucros, rendimentos e ganhos de capital auferidos no exterior, somente serão compensados com o imposto de renda devido no Brasil se referidos lucros, rendimentos e ganhos de capital forem computados na base de cálculo do imposto, no Brasil, até o final do segundo anocalendário subseqüente ao de sua apuração. 9
Supremo Tribunal Federal Provimento (favorável ao contribuinte) Improvimento (contrário ao contribuinte) Não pode tributar dividendo ficto Dividendo ficto Equivalência patrimonial = Lucros Pode tributar a distribuição inclusive de países com tratado (art. 10) Tributação plena inclusive de países com tratado Não pode tributar lucros e dividendos de países com tratado (art. 7º) Paraíso Fiscal Automática País de trib. normal Diferimento Automática Diferim. ou Autom.c/crédito País com tratado Não incidência Sujeitos a contestação Sem contestação Como alternativa à solução deste verdadeiro imbroglio legislativo que se formou em torno da tributação de lucros no exterior, poder-se-ia cogitar de uma iniciativa legislativa, na linha da sugestão apresentada abaixo, que teria o condão de pacificar a matéria, gerando, inclusive, a perda de objeto da ADI em tramitação, ao promover uma aplicação da legislação de incidência rigorosamente em linha com os princípios constitucionais vigentes. 6 6 Para aprofundamento do tema, consultar: ANDRADE, André Martins de. A Tributação Universal da Renda Empresarial: Uma proposta de sistematização e uma alternativa inovadora. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2008. 10
MEDIDA PROVISÓRIA Nº 2.158-35, DE 24 DE AGOSTO DE 2001 Art. 74. Para fins de determinação da base de cálculo do imposto de renda e da CSLL, nos termos do art. 25 da Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995, e do art. 21 desta Medida Provisória, os lucros auferidos por controlada ou coligada no exterior serão considerados disponibilizados para a controladora ou coligada no Brasil na data do balanço no qual tiverem sido apurados, na forma do regulamento. Parágrafo primeiro Os lucros apurados por controlada ou coligada no exterior até 31 de dezembro de 2001 serão considerados disponibilizados em 31 de dezembro de 2002, salvo se ocorrida, antes desta data, qualquer das hipóteses de disponibilização prevista na legislação em vigor. Parágrafo segundo Os lucros auferidos no exterior por controlada ou coligada estabelecida em países com tributação igual ou superior a vinte por cento serão considerados disponibilizados quando da ocorrência das hipóteses de disponibilização previstas na Lei nº 9.532, de 10 de dezembro de 1997. Parágrafo terceiro Não haverá incidência do imposto de renda e da CSLL sobre os lucros auferidos por controlada ou coligada estabelecida em países com os quais a República Federativa do Brasil tenha firmado convenção destinada a evitar a dupla tributação e prevenir a evasão fiscal, ressalvada a hipótese da parcela dos lucros atribuível a controlada ou coligada em países com tributação favorecida de que participe a controlada ou coligada no exterior. * texto proposto em itálicas 11