SENTENÇA CRIMINAL E APLICAÇÃO DA PENA

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Transcrição:

Coordenadores Américo Bedê Júnior Gabriel Silveira de Queirós Campos SENTENÇA CRIMINAL E APLICAÇÃO DA PENA Ensaios sobre discricionariedade, individualização e proporcionalidade 2017

1 Adriano Texeira 1 I. Considerações iniciais; II. O problema; 1. Casos ilustrativos; 2. Problematização; III. Abordagens para a resolução do problema; IV. Consequência: aplicação da pena proporcional ou orientada às categorias do delito; V. Considerações inais. No âmbito das ciências penais, no Brasil, grosso modo costuma-se dividir os cientistas em basicamente dois blocos: os críticos, que, fazendo o diagnóstico correto das mazelas, injustiças de nosso sistema criminal, enxergam o atuar do poder punitivo do Estado de um ponto de vista externo, preponderantemente crítico; o outro bloco, composto por aqueles que se dedicam à tradicional dogmática penal, à racional interpretação e aplicação do direito positivo, e que supostamente olham o direito, portanto, desde um ponto de vista interno 2, cumpriria uma função 1. Mestre (LL.M) e doutorando na Universidade Ludwig-Maximilian (Munique, Alemanha). Bolsista CAPES/DAAD. 2. Sobre essa distinção cf. HÖRNLE, Tatjana. Moderate and Non-Arbitrary Sentencing without Guidelines: The German Experience. Law and Contemporary Problems, n. 76, 2013, pp. 209 e ss, contrapondo o modelo anglo-americano ao modelo alemão de ensino jurídico.

Adriano Texeira conservadora, legitimante das mazelas do sistema criminal corretamente denunciadas pela vertente crítica. Essa contraposição não é apenas falsa, mas também perigosa, pois ela esconde -- e, o que é mais grave --, inibe a função crítica e liberal que a dogmática penal está destinada a realizar. É verdade que a ciência penal já cumpriu e parcialmente cumpre essa função de meramente revelar o direito ditado por alguma fonte de autoridade, seja ela qual for. 3 Contudo, ela pode, deve e já desempenha uma outra função, mais atenta aos detalhes e aos problemas e aos casos concretos, mais cientí ica na medida em que prenhe de dúvidas e naturalmente aberta, mas também rigorosa, que não se contenta com uma atitude de desconstrução generalista, cheia de certezas, ao mesmo tempo ingênua e c moda. 4 Neste artigo, não tratarei dessa questão nesse nível de generalidade. Tentarei apenas demonstrar a função garantista, crítica, que a dogmática penal pode exercer em um âmbito do qual ela costuma estar dissociada, qual seja a aplicação da pena. Tentarei mostrar a importância da tradicional teoria do delito, sobretudo da evolução das categorias e critérios de imputação do resultado ao autor do crime na aplicação da pena por meio de um tema bem especí ico, ainda pouco explorado no Brasil: a possibilidade ou impossibilidade de consideração das consequências extratípicas do delito na aplicação da pena. Para isso, primeiramente será delineado o problema (II); após, será exposto brevemente, sob uma base empírica mínima, como esse tema é tratado na jurisprudência brasileira e na alemã, bem como na doutrina (III); em seguida, será demonstrado como a solução do problema pressupõe a adoção (ainda que inconsciente) de uma teoria da aplicação da pena proporcional ao fato, teoria essa vinculada às categorias da teoria do delito (IV). Ao inal, deve-se adiantar, serão provavelmente apresentadas ao leitor mais dúvidas do que certezas, mais perguntas do que respostas. No entanto, isso faz parte do modus operandi da ciência. Ademais, sob todos os pontos de vista, é preferível que os problemas ao menos sejam colocados, nominados, e, sobre o alicerce dessa estrutura conceitual comum, debatidos no fórum público da ciência, do que resolvidos de acordo com 3. Luís Greco classi ica essa visão da ciência do direito penal como revelação (cf. GRECO, Luís. Hacia la superación de viejas certezas: la ciencia latinoamericana del derecho penal entre revelación e deconstrucción. Letra: Derecho Penal, Año I, número 2, 2016, pp. 1 e ss). 4. Nesse sentido GRECO, Luís. Op. cit., pp. 4 e ss.

Cap. 1 APLICAÇÃO DA PENA, DOGMÁTICA PENAL E TEORIA DO DELITO o arbítrio de cada magistrado, ao qual, se lhe é imposto fazer justiça, sem o trabalho da ciência não tem a quem recorrer senão à sua própria intuição e criatividade jurídicas. Para a visualização do problema, nada melhor que apresentar casos a ele pertinentes: a) Um empresário é vítima de um estelionato por parte de um fornecedor, o que leva sua empresa à insolvência. Em decorrência disso, entra em desespero e se suicida. Sua esposa, grávida de quatro meses, entra em choque e sofre um aborto. 5 b) Uma estudante que trabalhava até mais tarde na biblioteca da universidade, quando vai ao banheiro é surpreendida por um homem que invadiu o local. O homem a estupra. Devido ao trauma causado pelo fato, a estudante não consegue terminar os estudos tampouco ter uma vida sexual normal. c) Um tra icante vende regularmente drogas a um estudante de 24 anos. O uso regular de drogas faz com que o estudante não consiga nem cumprir seus compromissos na universidade, nem trabalhar. Além disso, a im de obter dinheiro para a compra de drogas, passa a cometer furtos e roubos. Em uma das tentativas de roubo, o jovem entra em confronto com a polícia e é morto. d) João e mais três amigos formam uma gangue que praticava roubos. Os três amigos, no entanto, tornam-se religiosos e abandonaram a vida do crime, porém, permanecem amigos de João, que continua a praticar roubos. Em virtude de um desses roubos, os quatro são processados. Durante a instrução, João limita-se a negar a prática do roubo. Ao im, prova-se que apenas João cometera o roubo. Na dosimetria da pena, o magistrado considera a circunstância de que João, com seu comportamento durante a instrução, colocara seus amigos sob suspeita, e majora a sanção. 6 5. Exemplo (adaptado) retirado de SCHÄFFER, Gerhard; SÄNDER, Günther; VAN GEMMERREN, Gerhard. Praxis der Strafzumessung. 5ª ed. Munique: C.H Beck, 2012, p. 167. 6. Caso inspirado em BGH NStZ Neue Zeitschrift für Strafrecht 1986, p. 85.

Adriano Texeira e) Testemunha em um caso criminal, Mariano faz uma a irmação falsa, que leva à condenação do acusado, o qual, em verdade, era inocente. A pena é con irmada e cumprida: o condenado passa anos encarcerado. É natural que, na ixação da pena, o magistrado atente para as consequências do delito, até por força do caput do art. 59, do Código Penal (doravante CP) 7. Por exemplo, em um caso de lesão corporal, o fato de que a vítima icou hospitalizada por longo tempo, inábil temporariamente para o trabalho, é consequência direta e mostra a dimensão da lesão do bem jurídico, a integridade corporal. Lesão esta que, nos delitos de resultado, é componente do tipo penal, pressuposto da punibilidade. É certo que a mera existência da lesão do bem jurídico, justamente por ser requisito do tipo penal, não pode ser evocada para majorar a pena, pois tratar-se-ia de bis in idem. 8 Entretanto, a dimensão da lesão do bem jurídico (ou da incidência de uma das elementares típicas, como a violência no estupro) pode e deve ser levada em conta pelo magistrado no momento de ixação da pena. Os marcos penais mínimo e máximo da norma sancionatória existem justamente para permitir que essa gradação possa realizar-se. Nos exemplos da seção anterior, todavia, as consequências ou desdobramentos do delito distanciam-se, em menor ou maior grau, dos contornos do tipo penal por cuja realização o acusado está sendo processado. Consequências do delito que não guardam qualquer ou que guardam apenas uma distante relação com o bem jurídico protegido pela proibição penal são chamadas na doutrina de consequências extratípicas do delito. Pode-se considerar uma circunstância extratípica do delito, por exemplo, aquela que compõe o tipo de outro dispositivo penal, o qual no caso concreto não é imputado ao agente. No nosso exemplo c acima, o homicídio (ou o resultado morte) é um desdobramento do crime de trá- ico de entorpecentes. O homicídio, no entanto, não pode ser imputado ao tra icante. A questão, tratada nesse artigo, é se essa imputação pode 7. Art. 59, caput: O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e su iciente para reprovação e prevenção do crime. 8. Cf. apenas CARVALHO, Salo de. Penas e medidas de segurança no direito penal brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 355.

Cap. 1 APLICAÇÃO DA PENA, DOGMÁTICA PENAL E TEORIA DO DELITO ser dar de forma oblíqua através da majoração da pena relativa ao crime de trá ico. Mas por que isso é um problema Por duas razões, ligadas, respectivamente, aos dois princípios fundamentais do direito penal: o princípio da legalidade e o princípio da culpabilidade. Do primeiro decorre que o agente só pode responder penalmente por aquilo que era proibido de forma prévia, escrita e determinada. 9 O segundo impõe que o autor do delito só responda por aquilo que causou, e que poderia prever e evitar. 10 uando se pretende levar em consideração as consequências extratípicas do delito na aplicação da pena, corre-se o risco de violar ambos princípios, eis que o agente terá que cumprir parte de sua pena em resposta a algo (a) ou pelo qual ele não foi processado ou que sequer era proibido legalmente; e/ou (b) que não lhe poderia ser imputado. A pergunta que se coloca é, portanto, se e em que medida as consequências extratípicas do delito podem ser conside-. A lei não oferece qualquer resposta a essa pergunta. No CP brasileiro, fala-se apenas em consequências do crime (art. 59, caput), sem qualquer ulterior especi icação. Na lei alemã fala-se em consequências (ou desdobramentos) culpáveis do fato (verschuldete Auswirkungen der Tat, 46 II StGB). Por isso, na doutrina e jurisprudência alemãs, exige-se minimamente que as consequências a serem consideradas na dosimetria da pena tenham um nexo causal com a ação do autor. Segundo a jurisprudência tradicional, no entanto, não é necessário que haja dolo em relação aos desdobramentos do crime, bastando culpa. 11 De todo modo, é assente no mundo jurídico alemão que não atender a esses pressupostos signi ica atentar contra o princípio da culpabilidade. 12 Por isso, 9. _SCHÜNEMANN, Bernd. Nulla poena sine lege? Rechtstheoretische und verfassungsrechtliche Implikationen der Rechtsgewinnung im Strafrecht. Berlim: De Gruyter, 1978, p. 2; idem, Zum Stellenwert der positiven Generalprävention in einer dualistischen Straftheorie. In: SCHÜNEMANN, Bernd; VON HIRSCH, Andrew; JAREBORG, Nils (orgs.), Positive Gene ralprävention. Kritische Analysen im deutsch-englischen Dialog. Uppsala Symposium 1996, Heidelberg 1998, p. 119. 10. SCHÜNEMANN Bernd. Die Entwicklung der Schuldlehre in der Bundesrepublik Deutschland. In: HIRSCH, Hans Joachim; WEIGEND, Thomas (org.). Strafrecht und Kriminalpolitik in Japan und Deutschland. Berlim: Duncker & Humblot, 1989, p. 160. 11. _Cf. ESCHELBACH, Ralf; SATZGER, Helmut; SCHLUCKEBIER, Wilhelm; WIDMAIER, Gunther (orgs.). StGB Strafgesetzbuch. 2ª ed. Colonia: Carl Heymanns, 2014, 46 Nm. 104; criticamente, porém, BLOY, René. Die Berücksichtigungsfähigkeit außertatbestandlicher Auswirkungen der Tat bei der Strafzumessung. ZStW Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft, n. 107, 1995, p. 592. 12. MÜLLER-DIETZ, Heinz. Grenzen des Schuldgedankens im Strafrecht. Karlsruhe: C.F Müller, 1967, p. 81, com referências.

Adriano Texeira alguns autores e parte da jurisprudência sentiram a necessidade de ir além e acrescentar outros requisitos para a consideração na pena das consequências extratípicas, como se verá mais abaixo. A ausência de uma regulação mais detalhada no direito penal brasileiro não signi ica que o magistrado esteja livre para considerar qualquer tipo de desdobramento do crime na ixação da pena. Como dito, o problema reside na concretização dos princípios da culpabilidade e da legalidade, ambos de estatura constitucional. Pelo mesmo motivo é que a ausência de positivação não impede que na práxis judicial se apliquem os modernos critérios de imputação (como as teorias da causalidade e a teoria da imputação objetiva) bem como as teorias sobre concurso de agentes (ex.: teoria do domínio do fato). Como se sabe, a lei penal é, e é bom que o seja, econ mica; é inescapável que critérios dogmáticos, idealmente desenvolvidos em conjunto pela ciência e pela jurisprudência, auxiliem o trabalho do magistrado na aplicação da lei penal. Na jurisprudência brasileira, o tema é tratado de forma confusa, provavelmente em virtude de uma má compreensão da incidência da proibição de dupla valoração ou ne bis in idem, tema sobre o que já me manifestei em outras oportunidades. 13 Parece vigorar um entendimento, principalmente na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, de que os critérios a serem utilizadas na ixação da pena devem ser encontrados justamente fora do delito. Aduz-se que os elementos do tipo e a culpabilidade em sentido estrito não poderiam mais ser invocados para integrar o processo de formação da pena-base. 14 Percebe- -se, pois, que o critério utilizado pelo STJ para avaliar a exasperação da pena-base é um critério negativo: a exasperação tem que se dar por alguma circunstância que não seja inerente ao tipo de penal. Essa posição, contudo, é equivocada ou ao menos pode levar a erro. Como dito acima, o que não pode ser considerado para majorar a pena é a presença, por si, do resultado típico ou de alguma elementar típica. Porém, a intensidade da presença elementar e da lesão do bem jurídico devem ser levadas em conta na ixação da pena. É obvio que um 13. TEIXEIRA, Adriano. Culpabilidade e proibição de dupla valoração na determinação judicial da pena na APn 470/MG, do STF (Caso Mensalão). Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 106, 2014, pp. 13-44; idem, Teoria da aplicação da pena: Fundamentos de uma determinação judicial da pena proporcional ao fato. Madrid-Buenos Aires-São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 122, passim. 14. Assim AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Aplicação da pena. 5ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 67.

Cap. 1 APLICAÇÃO DA PENA, DOGMÁTICA PENAL E TEORIA DO DELITO espancamento deve ser apenado com mais gravidade que um tapa na cara, conforme o delito de lesão corporal (Art. 129, CP), ou que o uso de extrema violência justi ica um incremento na pena-base do delito de estupro. 15 Em recente decisão, porém, o STJ irmou posição de que meras especulações sobre possíveis danos psicológicos sofridos pela vítima em decorrência de abusos sexuais não podem fundamentar a majoração da pena-base. 16 Contudo, a negativa de considerar essas consequências do crime de natureza psicológica não parece ter sido baseada em considerações normativas, mas sim em considerações de índole probatória, eis que se faz referência à falta de comprovação empírica dos supostos danos psicológicos, como se vê no seguinte trecho do voto do Min. Relator: Assevero e rea irmo que é ilegítima a manutenção do aumento da pena- -base em relação à vetorial consequências, porquanto o juiz apenas fez uma suposição vaga acerca de eventuais danos psicológicos que teria sofrido a vítima. Reitero que a assertiva não veio acompanhada de nenhum dado concreto sobre distúrbio comportamental nem acerca de alteração na vida do ofendido (e as respectivas famílias) a partir do (gravíssimo) evento criminoso. Há ainda outras questões circundantes a esse problema, não são menos di íceis, mas que não serão tratadas aqui, como a do erro sobre as consequências ou sobre a dimensão da lesão do bem jurídico 17 (ex.: o agente acha que está furtando uma pessoa rica, mas na verdade retira da sua vitima um dos únicos bens que possuía para garantir sua subsistência). Já se adiantou que o nosso problema mal foi descoberto, e por isso ainda não foi tratado de forma sistemática no direito e na ciência brasileiros. Por essa razão, serão expostas aqui brevemente as propostas de solução para o problema desenvolvidas no ambiente jurídico-cientí ico alemão, em que esse tema foi tratado de forma mais detida. 15. Precisamente nesse sentido BLOY, René. Op. cit., pp. 579 e ss. 16. AgRg no AREsp 1005981/ES, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 15/12/2016, DJe 02/02/2017. 17. Sobre isso fundamentalmente FRISCH, Wolfgang. Die verschuldeten Auswirkungen der Tat Zugleich ein Beitrag zur Irrtumsproblematik im Strafzumessungsrecht. GA Goltdammer s Archiv für Strafrecht, 1972, pp. 343 e ss.

Adriano Texeira Como requisito mínimo para a consideração dos desdobramentos do delito na ixação da pena exige-se, como visto, o nexo de causalidade. Este nexo, por sua vez, determina-se, segundo a doutrina dominante, pela teoria da conditio sine qua non: uma condição X é causal para o resultado se, subtraída mentalmente, o resultado igualmente desaparece. 18 Para além da causalidade, a jurisprudência e doutrina tradicionais apegam-se ao critério da previsibilidade 19, ou seja, além de causal, a consequência do delito em questão deve ser objetivamente previsível ao autor. Como se sabe, porém, há muito a dogmática da imputação do delito ultrapassou esse paradigma. Hoje, na Alemanha e em vários países do mundo, há muitos outros critérios normativos de imputação do resultado ainda no plano do tipo objetivo: ao conjunto desses critérios sói denominar-se imputação objetiva. 20 As consequências dessa evolução, contudo, ainda não se izeram sentir no âmbito da aplicação da pena. Entretanto, a tendência é que esse quadro mude paulatinamente, eis que parte da doutrina já há algum tempo exige que um conhecido critério da teoria da imputação objetiva seja levado em conta na aplicação da pena: o critério do 21 Na teoria da imputação objetiva, o sentido da ideia de im de proteção da norma é, conforme expõe GRECO: a norma proibitiva visa a evitar que um certo bem jurídico seja afetado de certa maneira. Se for afetado não esse bem 18. Sobre essa teoria, extensamente e com várias referências, ROCHA, Ronan. A relação de causalidade no direito penal. Belo Horizonte: D Plácido Editora: 2016, pp. 80 e ss. 19. RAUM, Rolf in: WABNIZ, Heinz-Bernd; JANOVSKY, Thomas (orgs.). Handbuch des Wirtschaftsund Steuerstrafrechts. 4ª ed. Munique: C.H Beck, 2014, Nm. 202; MIEBACH, Klaus; MAIER, Stefan in: JOECKS, Wolfgang et al (orgs.). Münchner Kommentar zum Strafgesetzbuch, Tomo II, 3ª ed. Munique: C.H Beck, 2016, 46 Nm. 215-126. 20. Sobre o tema cf. GRECO, Luís. Um panorama da teoria da imputação objetiva. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. 21. FRISCH, Wolfgang. Die verschuldeten Auswirkungen der Tat Zugleich ein Beitrag zur Irrtumsproblematik im Strafzumessungsrecht. GA Goltdammer s Archiv für Strafrecht, 1972, pp. 321, 333; idem, Gegenwärtiger Stand und Zukunftperspektiven der Strafrechtsdogmatik. ZStW Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft, vol. 99, 1987, parte II, pp. 751 e ss. (754); BLOY, René. Op. cit., p. 585; HORN, Eckhard in: WOLTER, Jürgen (org.). Systematischer Kommentar zum Strafgesetzbuch. Colonia: Carl Heymanns, 2001, 46, Nm. 109; WOLTERS, Gereon in: Comentário a BGH, Beschl. 25. 4. 2001 1 StR 143/01, StV Strafverteidiger 2/2002, p. 77; JÄGER, Christian. Wege zu einer dogmatischen Behandlung des Strafzumessungsrechts. In: JUNG/LUXENBURGER/WAHLE (orgs.). Festschrift für Egon Müller. Baden-Baden: Nomos, 2008, p. 303; KINZIG, Jörg; STREE, Walter in: SCHÖNKE, Adolf; SCHRÖDER, Horst (orgs.). Strafgesetzbuch Kommentar. 29ª ed. Munique: C.H Beck, 2014, 46 Nm. 26a; ESCHELBACH, Ralf. Op. cit., 46 Nm. 105 (por forca do principio da legalidade) FISCHER, Thomas. Strafgesetzbuch mit Nebengesetzen. 64ª ed. Munique: C.H Beck, 2017, 46 Nm. 34. 30

Cap. 1 APLICAÇÃO DA PENA, DOGMÁTICA PENAL E TEORIA DO DELITO jurídico, mas outro, ou se ele próprio for afetado, mas por curso causal completamente diverso, o que se realizou no resultado não foi o risco que se estava a analisar 22. Caso clássico de exclusão da imputação devido à ideia do im de proteção da norma é o do sujeito A que atira em B, ferindo-o gravemente. Levado ao hospital, B vem a falecer em razão de um erro médico grosseiro. Aqui, o comportamento indevido posterior de um terceiro (no exemplo: o médico) não está incluído no im de proteção da norma que proíbe que a atire em B. 23 Na ixação da pena, isso signi ica que podem ser considerados apenas os desdobramentos do delito que ainda estejam compreendidos no âmbito de proteção da norma do respectivo tipo penal. Assim, excluem-se de consideração a lesão de bens ou interesses completamente alheios ao tipo penal realizado pelo autor. 24 Assim, no nosso exemplo do falso testemunho (o caso e ), se considerarmos que se trata de um crime contra a administração da Justiça, a decorrente privação de liberdade do cidadão falsamente condenado não poderia ser levada em conta na aplicação da pena. 25 O motivo para a adoção de mais um critério de imputação no âmbito da aplicação da pena já foi abordado acima. Os modernos critérios de imputação do resultado nada mais são do que concretizações do princípio da culpabilidade e da legalidade, do princípio de garantia do tipo penal. 26 Contentar-se com o paradigma da causalidade signi ica prender-se a um direito penal arcaico. 27 A não ser que se queira varrer os princípios da culpabilidade e da legalidade do âmbito da aplicação da pena, não há motivo para que os modernos critérios de imputação, desenvolvidos nas últimas décadas pela doutrina e pela jurisprudência, iquem restri- 22. GRECO, Luís. Um panorama da teoria da imputação objetiva. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 103. 23. Cf. GRECO, Luís. Um panorama da teoria da imputação objetiva. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, pp. 118 e ss., que mostra que é extremamente controverso na doutrina quando realmente se deve excluir a imputação. Alguns autores querem excluir a imputação apenas no caso de culpa grave ou excepcional de terceiro, outros a querem excluir sempre etc. 24. BLOY, René. Op. cit., pp. 586 e ss.; HORN, Eckhard. Op. cit., Nm. 109. 25. Assim HORN, Eckhard. Op. cit., Nm. 109. 26. MÜLLER-DIETZ, Heinz. Op. cit., p. 81; BLOY, René. Op. cit., p. 585; FRISCH, Wolfgang. Gegenwärtiger Stand und Zukunftperspektiven der Strafrechtsdogmatik. ZStW Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft, vol. 99, 1987, parte II, p. 751 (754); ESCHELBACH, Ralf. Op. cit., 46 Nm. 105. 27. BERZ, Ulrich. Comentário a BGH NStZ 1986, 85, p. 87; BLOY, René. Op. cit., p. 578. 31

Adriano Texeira tos ao plano da tipicidade; eles devem sim ser relevantes também na ixação da sanção penal. 28 O problema, no entanto, mora, como sempre, nos detalhes. De fato, deve-se conceder, muitas vezes não é fácil determinar quais consequências do crime ainda são compreendidas pelo im de proteção da norma. 29 Os casos mais claros são os dos tipo de perigo: quando o bem jurídico protegido, cuja lesão, no entanto, não é pressuposto do tipo penal, é efetivamente lesionado, sem que, no entanto, possa-se imputar o resultado do crime mais grave, tem-se um caso de valoração legítima de uma consequência extratípica do delito 30, como pode suceder, por exemplo, no crime de incêndio, art. 250, CP, do qual resulta morte e este resultado não pode ser imputado ao autor nem a título de dolo nem de culpa. A solução dependerá, muitas vezes, da correta identi icação do bem jurídico protegido pelo tipo penal em questão. Por exemplo, considera- -se que, no crime de estupro, a integridade psicológica, ao lado da liberdade ou autodeterminação sexual, é objeto de proteção da proibição penal. Portanto, em nosso exemplo acima b, as consequências de índole psicológica sofridas pela vítima do estupro podem ser consideradas como um fator agravante da pena. Por outro lado, no caso do estelionato, o quadro é diverso. Reconhecidamente, o bem jurídico do crime de estelionato é o patrim nio. 31 Por isso, se a ruína da empresa da vítima talvez possa ser ainda considerada na aplicação da pena, o suicídio da vítima e o aborto de sua mulher, todavia, não podem, pois a proteção do bem jurídico vida não faz parte do im de proteção da norma penal do delito de estelionato. 32 Perigos ínsitos a outros tipos penais, portanto, tendem a ser excluídos de consideração. Nesse sentido, o Tribunal de Düsseldorf, em um caso de furto de carro para fuga, não permitiu que o perigo de o carro se dani icar fosse considerado como majorante da pena em relação ao delito de furto, pois esse perigo é pertinente a outro 28. Nesse sentido BLOY, René. Op. cit., p. 589, que diz que ao magistrado é defeso criar tipos penais secundários. A valoração de consequências extratípícas, fora do âmbito de proteção da norma, não seria nada além disso; próximo JÄGER, Christian. Op. cit., p. 303. 29. Nesse sentido FRISCH, Wolfgang. Gegenwärtiger Stand und Zukunftperspektiven der Strafrechtsdogmatik. ZStW Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft, vol. 99, 1987, parte II, p. 751 (754). 30. BLOY, René. Op. cit., p. 587; JÄGER, Christian. Op. cit., pp. 300 e ss. 31. Por todos RENGIER, Rudolf. Strafrecht Besonderer Teil I Vermögensdelikte. 16 ed. Munique: C.H Beck, 2014, p. 220. 32. Assim ESCHELBACH, Ralf. Op. cit., 46 Rn. 105.