Procedimentos para cenas cômicas: a palavra

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Transcrição:

Procedimentos para cenas cômicas: a palavra Fernando Lira Ximenes Instituto Federal de Educação e Ciência do Ceará (IFCE) doutor dramaturgo e professor Resumo: Esta pesquisa é uma extensão das investigações do autor, realizadas em sua tese de doutorado em Artes Cênicas da UFBA, em que se centrou na elaboração de matrizes corporais para cenas cômicas. Nesta nova etapa de reflexão, o foco é o trabalho com as palavras exigido nessas cenas. Inspirados nos argumentos do filósofo Francês Henri Bergson, em sua obra O riso: ensaio sobre a significação da comicidade, são desenvolvidos com alunos do IFCE, participantes do Grupo de Pesquisa em Comicidade, Riso e Experimentos (CRISE), exercícios de composição de matrizes vocais a partir das palavras. Segundo Bergson, o risível se estabelece quando percebemos nos atos cotidianos um desvio no sentido de uma mecânica: o mecânico colado no vivo. Para que as palavras sejam risíveis, deve haver um certo desvio de suas intenções. O que é dito invariavelmente está carregado de um ou mais sentidos. O riso realizado a partir das palavras conduz a um raciocínio que é quebrado com o inusitado. Embora os significados das palavras e das frases sejam importantes para construção do efeito cômico, são buscadas outras formas que fogem ao conteúdo semântico das palavras. Trabalhamos as possibilidades das estruturas do significante das palavras e das frases de gerarem significados. Nessa perspectiva é que um intenso trabalho de composição vocal se faz necessário. Há dois caminhos sobre o trabalho da voz do ator hoje em dia: o primeiro mais praticado é o domínio da oralidade natural, mais cotidiana. Outro, propagado por teóricos como Artaud, Grotowski, Eugenio Barba, trata da voz não como uma representação mimética da palavra, mas como fonte geradora de significados, em que os elementos signos da composição vocal possam gerar a partir do próprio significante, novos significados. A dicção e articulação são elementos que ajudam o ator em se fazer compreender e modificar sua forma de expressão vocal. Palavras-chave: riso, comicidade, ator cômico O riso de Bergson Esta pesquisa desenvolve, com participantes do Grupo de Pesquisa em Comicidade, Riso e Experimentos (CRISE) do IFCE, exercícios de composição de matrizes vocais a partir das palavras, inspirados nos argumentos do filósofo Francês Henri Bergson, em sua obra O riso: ensaio sobre a significação da comicidade.

Para Henri Bergson o riso acontece quando temos a impressão de que a vida se desviou no sentido de uma mecânica. Bergson descreve em sua obra três procedimentos na elaboração das situações cômicas que podem ser também usados com as palavras: repetição, inversão e interferência das séries. Repetição De todos os procedimentos cômicos é o mais adotado e o que mais nos revela o mecânico colado na vida. As repetições devem parecer as mais naturais possíveis e não exageradas em sua quantidade. Praticamente todas as situações cômicas de repetição nos remetem à lembrança da mecânica dos brinquedos de infância. O vaudeville contemporâneo usa esse procedimento em todas as suas formas. Uma das mais conhecidas consiste em fazer certo grupo de personagens transitar, de ato em ato, pelos meios mais diversos, de tal maneira que, em circunstâncias sempre novas, nasce uma mesma série de acontecimentos ou de vicissitudes que se correspondam simetricamente (BERGSON, 2004, p. 67). As repetições podem se sofisticar quando acontecem não somente em graus, mas ao se mudar a sua natureza, repetindo-se apenas uma idéia, por exemplo: um jantar de burgueses, realizado com todas as formalidades e etiquetas próprias da classe. Em seguida, um jantar de pobre, repetindo-se apenas as etiquetas e formalidades dos burgueses. A repetição pode acontecer também em nível de desejos interrompidos sempre na iminência de sua realização. Inversão Esse processo caracteriza-se pela inversão do mundo oficial em que as relações obedecem a certa hierarquia de dominante e dominado. As normas são quebradas de forma a provocar o riso pelo procedimento de inversão de papéis sociais: o elevado é rebaixado, os sabichões são ludibriados pelos bobos, levando a pior, e o dominador sendo dominado; os homens são mandados por suas mulheres, enfim, o sacralizado torna-se profano.

Interferência das séries Bergson (2004, p. 71) apresenta este processo cômico da seguinte forma: [...] uma situação é sempre cômica quando pertencer ao mesmo tempo a duas séries de acontecimentos absolutamente independentes e pode ser interpretada ao mesmo tempo em dois sentidos diferentes. A primeira idéia que nos vem à mente é o quiproquó, recurso cômico utilizado nas comédias clássicas e nas farsas. O quiproquó consiste em se ter duas ou mais situações independentes em que os participantes de uma das situações ignoram completamente a outra. O efeito cômico acontece quando os dois grupos das situações se juntam, ocorrendo equívocos, mal entendidos, oscilando entre o sentido possível e o real, em que cada participante de uma dada situação fala de aspectos inerentes de sua vivência e o outro acredita se está falando da dele. Na interferência das séries contemporâneas, o riso se estabelece por contágio de referências, isto é: o fluxo dos acontecimentos é livre, importando apenas as associações de sentido a que ele remete. Percorre-se o território do irracional, do absurdo, do sonho numa rede de infinitas derivações polifônicas e polissêmicas, encadeando episódios não lineares numa estrutura hipertextual de justaposição de acontecimentos de tempos e espaços discrepantes. Portanto, na medida em que a vida nos parece desviar-se, tal qual um mecanismo que se repete, que se inverte ou que se interpõe como peças de uma engrenagem, acontece o estranhamento. E rimos disso tudo, quando nossas emoções estão anestesiadas para os atos em si, mas nossos sentidos estão atentos para distração do automatismo dessas ações. Isso não significa que haja uma reflexão comparativa em alguns casos pode até haver, mas sim, a percepção de que algo na noção que temos de congruência da vida foi afetado, foi deformado. As Palavras O caráter da personagem cômica não se revela apenas pelas suas ações, mas também pelas suas palavras e das outras personagens. Dessa forma a personagem é o que ela diz de si e das outras personagens, o que essas outras dizem daquela e o que a personagem nega com palavras, mas afirma com o corpo.

Com relação à audiência deste tipo de risível, exige-se grande atenção, rapidez de raciocínio e alto grau de cognição, pois as palavras são voláteis, fixam-se menos na memória do que as imagens físicas das personagens e das situações. Com relação a isso, Bergson acrescenta: Mas, para que uma frase isolada seja cômica por si mesma, uma vez desligada daquele que a pronuncia, não basta que seja uma frase pronta; é preciso também que contenha em si um sinal no qual reconheçamos, sem hesitação possível, que ela foi pronunciada automaticamente. E isso só pode acontecer quando a frase encerra um absurdo manifesto, seja um erro grosseiro, seja, sobretudo, uma contradição em termos (Bergson, 2004, p. 83). Para que as palavras sejam risíveis, deve haver certo desvio de suas intenções. O que é dito invariavelmente está carregado de um ou mais sentidos. O risível das palavras conduz a um raciocínio que é quebrado com o inusitado. Bergson (2004) distingue a comicidade que a palavra exprime do que a palavra cria. A primeira, o que a palavra exprime, tem uma relação com a semântica, que muda quando mudam a época, a sociedade e os costumes, enfim, o contexto. Um sujeito entra num bar abraçado a dois mulherões. Me vê duas cocas. Família? pergunta o balconista. Não. São prostitutas mesmo, mas estão morrendo de sede. A segunda, o que a palavra cria, está atrelada à estrutura fonética, morfológica e sintática da palavra, cuja dificuldade está em manter o efeito cômico na tradução de uma língua para outra. A madre-superiora, no colégio de freiras, conversa com as alunas sobre suas ambições para o futuro. E você, Catarina, o que você quer ser quando crescer? Eu quero ser prostituta, madre. Você quer ser o quê? Perguntou a madre assustadíssima. Prostituta! repetiu Catarina. Ah, que susto! respirou aliviada a madre Pensei que você tinha dito protestante. Todas essas formas risíveis são divididas por Bergson (2004) em duas categorias: a dos jogos de palavras, e as das transformações de palavras. E podem ser sistematizadas em procedimentos análogos aos realizados para comicidade das situações: É possível obter a comicidade se uma determinada frase é dita em um contexto e for repetida (repetição), assumindo um novo sentido, em contexto completamente diferente, ou, se depois de invertida

(inversão) ainda continuar tendo sentido, ou mesmo se exprimir dois sistemas de idéias de todo independentes (interferência das séries). Independentemente da época, cultura ou língua, quando às palavras são aplicados os mecanismos de inversão, repetição ou interferência das séries, elas podem vir a produzir um efeito risível. Mas para que esse efeito ocorra de fato, a fala deve ressaltar a rigidez da palavra, o automatismo do dito e a distração de quem a pronuncia. Procedimentos Tomando os argumentos de Bergson como ponto de partida, buscamos no Grupo CRISE possibilidades das estruturas do significante das palavras e das frases de gerarem significados risíveis. Nessa perspectiva é que um intenso trabalho de composição vocal se faz necessário. Há dois caminhos sobre o trabalho da voz do ator hoje em dia: o primeiro mais praticado é o domínio da oralidade natural, mais cotidiana. Outro, propagado por teóricos como Artaud, Grotowski, Eugenio Barba, trata da voz não como uma representação mimética da palavra, mais como fonte geradora de significados, em que os os signos da composição vocal possam gerar a partir do próprio significantes, novos significados. A dicção e a articulação são elementos que ajudam o ator em se fazer compreender e modificar sua forma de expressão vocal. Inicialmente, procuramos conhecer a fisiologia vocal, a composição física que permite a emissão de voz: aparelho fonador, respiração, laringe, ressonadores. Após o conhecimento e a manipulação da fisiologia vocal, exercitamos a criação de matrizes vocais a partir de imitação. Os atores-pesquisadores do grupo se juntam aos pares, escolhem algumas palavras e cada um, por vez, pronuncia diversas vezes as palavras, enquanto que o outro observa o modo de articulação e procura construir uma matriz vocal dessa observação. Não se pretende com isso uma cópia perfeita, mas apenas que cada ator crie para si um repertório vocal extra cotidiano. Por alterações intencionais dos elementos de composição vocal, pretendemos produzir as palavras sonoramente alteradas: nasaladas, fanhas, gagas, roucas, fanhosas, agudas. Com isso, mais do que o significado próprio das palavras, encontramos a comicidade ao chamarmos a atenção na mecanicidade em que palavras são pronunciadas.

Uma vez que os atores dominem as suas matrizes vocais, passarão ao uso das palavras a partir de um texto dramatúrgico ou não. Nessa etapa, serão aplicados os procedimentos de inversão, repetição e interferência das séries descritos por Bergson REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. BARBA, Eugenio; SAVARESE, Nicola (Orgs.). A arte secreta do ator: dicionário de antropologia teatral. São Paulo: Hucitec/ UNICAMP, 1996. BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. São Paulo: Martins Fontes, 2004. FORTUNA, Marlene. A performance da oralidade teatral. São Paulo: Annablume, 2000. GROTOWSKI, Jerzy. Em busca de um teatro pobre. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976. KEISERMAN, Nara Waldemar. Caminho Pedagógico para Formação do Ator Narrador. Tese submetida ao programa de Pós Graduação em Teatro do Centro de Letras e Artes da UNIRIO, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor, Rio de Janeiro, 2004 XIMENES, Fernando Lira. O ator risível: Procedimentos para as cenas cômicas. Tese submetida ao programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UFBA como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor, Bahia, 2008.