AUGUSTO GIRARDET E OS DOIS RAMOS DO MESMO TRONCO I Das muitas histórias que atravessam a existência da Escola de Belas Artes, uma sempre esteve presente desde sua criação: a divisão entre as áreas das Belas Artes e as Artes Decorativas ou artes aplicadas à indústria. Quando Lebreton organiza, a convite do governo português, uma proposta de ensino de arte no Brasil com o projeto de uma Escola Real de Artes e Ofícios, já estabelece uma relação entre as duas áreas que se não será cumprida quando da inauguração da instituição, já com o nome de Academia Imperial das Belas Artes (AIBA), continuará pelos séculos seguintes envolvendo propostas estéticas, mas também políticas. Pretendo considerar nesta apresentação a obra gravada de Augusto Girardet, que faz parte do acervo de medalhística do Museu D. João VI, e desenhos produzidos por Eliseo Visconti, aluno da Academia Imperial e artista voltado para a produção gráfica assim como projetos para a indústria. Os textos de Eliseo Visconti e Quirino Campofiorito, bem como o discurso de Rui Barbosa nos ajudarão a compreender os diferentes momentos em que esta questão, via de mão dupla, privilegia um lado ou outro e como os argumentos usados pelas partes envolvidas transformam as situações apresentadas. O ponto inicial Na proposta de criação de uma Escola Real de Artes e Ofícios como primeira instituição de ensino oficial no Brasil, está implícito esse ensino como parte de um processo civilizatório para o país. Junto aos grandes mestres pintores, escultores e arquitetos também vieram oficiais de marcenaria, carpintaria, ferreiros, e gravadores, também chamados abridores de cunho. II Esta aliança entre artes e ofícios, práticas, seriam necessárias nesta terra onde não havia mão de obra especializada. A Escola de Ofícios/ Academia das Belas Artes quando inaugurada trazia em seu bojo uma questão que já existia em sua origem: o ensino da arte, a preparação do artista nas práticas, como força civilizadora. A intenção não conseguiu ser de todo cumprida. Charles Simão Pradier, gravador, retorna à França em 1818, dois anos depois de ter chegado ao Brasil com a Missão. Segundo ele, faltava tudo, desde alunos habilitados a aprender o ofício, até papel apropriado para impressão de gravuras. III Lebreton morre em 1819 e suas propostas para a Escola são transformadas. Lebreton trouxe a proposta do desenho como política para industrializar o país. No entanto em um 1º momento, em 1826, ocorre apenas a escola voltada às artes liberais (o neoclassicismo). 174
A Academia Imperial é inaugurada com o sistema de ensino dos mestres franceses. Ensino neo clássico, centralizador, tratado como um todo, um preparo do artista para se tornar um homem culto no sentido geral. Os mestres deveriam prover todos os conhecimentos necessários à sua formação. Entre discussões, reformas e mudanças no sistema de ensino, novas disciplinas serão agregadas ao longo dos tempos pela mão de diretores como Porto Alegre. O ensino da matemática, estética, estereatomia, o desenho anatômico, vão tornando o ensino descentralizado, especializado. Em 1855, quando do estabelecimento de algumas dessas disciplinas, Porto Alegre diz em seu discurso que as belas artes não são invenções luxuosas e têm aplicação aos altos destinos sociais IV. O destino da Academia, ferramenta no processo civilizatório, seria abrigar uma utilidade científica, mas também social. Podemos assim observar que a proposta que envolve a Academia passa por interesses econômicos e políticos além dos estéticos. Arte, indústria, modernidade Como nos diz Ana Mae Barbosa em seu livro Arte e Educação no Brasil, a principal preocupação com relação ao ensino da Arte no início do século XX era sua implantação e obrigatoriedade nas escolas primárias e secundárias, princípios baseados nas ideias de Rui Barbosa V. Analisando o discurso de Rui Barbosa, O Desenho e a Arte Industrial, de1882 no Liceu de Artes e Ofícios observamos o propósito dos projetos pedagógicos que ele defendia em seus Pareceres sobre a Reforma do Ensino Secundário e Superior: o ensino do Desenho. Para a transformação do país, de economia agrícola para industrial, seria necessária uma preparação da população a nível de aprendizagem de ofícios, de educação pela arte. Diz ele em seu discurso Entre a arte aliada à cultura industrial e as belas artes, não há distinção substancial, não há divisória inseparável, não há heterogeneidade[...] Não é possível aparelhar o artista para as artes industriais sem aproximá-lo até certo ponto da vereda que conduz à grande arte VI. Em sua defesa da necessidade do ensino do Desenho como forma de pensar, como projeto, ele fala da importância do mesmo no currículo primário, secundário e superior. Sua teoria política pensava a educação como forma de desenvolvimento do povo e nesse sentido a educação artística era importante na formação de uma base segura para o desenvolvimento industrial e a projeção econômica do país frente ao mundo industrializado. Nada de modelos importados. Forjaríamos os nossos próprios. Um Brasil parceiro da sociedade moderna. Seus Pareceres sobre a Reforma do Ensino no Brasil, para a Secretaria da Saúde e Cultura foram muito bem vistos, recebeu do Império o título de Conselheiro, mas os mesmos não foram postos em execução. Em sua biblioteca na Fundação Casa de Rui Barbosa, podem ser encontradas 11 obras da autoria de John Ruskin, idealizador do movimento Arts and Crafts junto a William Morris, seu discípulo. Este movimento buscava recuperar a qualidade estética dos produtos elaborados pela indústria. Visconti e Girardet - Artes Industriais A República se instalava, a Academia que passaria a chamar-se Escola Nacional de Belas Artes (ENBA) se esvaziava e uma comissão de jovens artistas colocava em execução um atelier livre com cursos gratuitos de arte no Largo de São Francisco. Eliseo Visconti era um 175
dos inscritos. Ativo na liderança estudantil e vencendo o concurso de prêmio de viagem, já frequentara em Paris a Escola Normal de Ensino do Desenho (École Guerin) e era aluno de Grasset (professor de artes decorativas), alinhado com as propostas de William Morris. VII Em Paris já havia no meio artístico uma opinião favorável a abolir a distinção entre belas artes e artes aplicadas ou decorativas. Em 1901, já no Brasil, Visconti prepara a exposição na qual o catálogo mostra bem claro seu pensamento com relação à fusão entre os dois caminhos. O desenho da capa tem como símbolo uma roseira com as belas artes e as artes aplicadas, como dois ramos, nascendo de um só tronco. Anos mais tarde se queixaria (à Angyone Costa), de que ninguém teria notado o seu esforço. Sua intenção era mostrar que a arte decorativa era o elemento maior para caracterizar a indústria artística do país VIII. Como professor da ENBA requereu que fosse instituída a criação de uma aula de pintura decorativa. IX Continuou desenvolvendo desenhos para várias áreas das artes aplicadas e em 1903 participa de concursos na Casa da Moeda do Brasil (CMB). Vence com projetos de selo e cartão postal, mas nenhum deles é executado. A CMB estava comprando matrizes e desenhos na Europa, além do que não há maquinário para produção gráfica no Brasil. Um pouco antes desse período, em 1892, havia chegado ao país, Augusto Girardet vindo da Itália para ser investido no cargo de professor do curso de Gliptica (gravura de medalhas e pedras preciosas) da ENBA. Seria empossado no cargo somente em 1912 e ao mesmo tempo contratado para lecionar para os gravadores da CMB. Ficaria nesta instituição de 1912 a 1922. Na ENBA sairia em 1934, quando de sua aposentadoria. O ensino da gravura de medalhas e pedras preciosas era ministrado com aulas de modelagem, exercícios de gravação, palestras técnico artísticas, visitas a museus, oficinas, lapidários e à CMB, onde seria possível observar a produção de medalhas a partir do uso dos maquinários de cunhagem. Pode-se observar a necessidade de condições apropriadas para a produção de medalhas assim como conhecimento de processos fabris e de técnicas específicas para resultados satisfatórios da gravação. Por outro lado, faltava certa qualidade artística na formação dos gravadores da CMB, em geral pessoas habilidosas, mas sem preparo artístico e cultural. Isto fez com que se estabelecesse um trânsito intenso e contínuo entre as duas instituições que se prolongou até a extinção do curso de Glíptica em 1971. Este trânsito gerou o aprendizado artístico para os gravadores da CMB e a aplicação do conhecimento técnico para a execução e reprodutibilidade das obras criadas pelos alunos da ENBA. Os dois ramos, as belas artes ou ditas artes maiores e as artes menores, artes aplicadas, aí de fato se completavam em um mesmo tronco. O mestre Girardet se encarregava de acompanhando os alunos das duas instituições, suprir as necessidades próprias de cada um dos lados. Do XIX ao XXI Campofiorito e o Desenho Industrial É possível perceber que desde 1816 ventos diversos sopram a favor ou contra as questões que envolvem o ensino técnico em nossa Escola. Ora um ou outro lado é favorecido dentro de uma série de discussões que acompanham não só visões estéticas, mas políticas de um determinado momento. Para prosseguirmos será necessário distinguir as diferenças entre técnica e tecnologia X. A técnica seria um conjunto de regras práticas para fazer coisas determinadas envolvendo a habilidade para executar e transmitir pelo exemplo, no uso das mãos, dos instrumentos, ferramentas e máquinas. 176
A tecnologia envolveria o estudo e conhecimento científico das operações técnicas. Compreende o estudo sistemático dos instrumentos, das ferramentas e das máquinas empregadas nos diversos ramos das técnicas [...]. A tecnologia esteve ligada a um pensar direcionado a um fazer. Rafael Cardoso apresenta e discute muito bem a relação entre o ensino técnico e o artístico XI, e nos diz que no contexto da segunda metade do século XIX, a expressão ensino técnico artístico abrange a provisão de instrução em qualquer dessas modalidades de desenho. Na ENBA apesar da proximidade do estudo do desenho nas duas áreas, artística e técnica, isso nunca se constituiu como uma relação de fácil convivência. O exemplo da defesa em prol da criação de um curso de Desenho Industrial pelo Prof. de Arte Decorativa, Quirino Campofiorito, na década de 60, mostra de forma clara as discussões que se estabeleciam em torno do assunto. Contrários à proposta estão, segundo ele, os seduzidos pela vaidade do ensino das outrora consideradas artes maiores XII. Ainda em seu texto Criação Artesanato Indústria, de 1960, ele discute a necessidade de um aparelhamento industrial, mas também da necessidade da preparação do artista para a produção de um trabalho de arte para a indústria. Cita que, a nós interessa particularmente a produção industrial mais dependente da criação artística aquela em que o padrão estético deve interferir importantemente [...] XIII. Outros tempos Como foi possível perceber, um distanciamento foi criado entre os dois ramos, em alguns momentos da história da Escola. Hoje essa distância está sendo preenchida por múltiplas e ricas possibilidades de encontros. Chegamos aos quase 200 anos da Escola de Belas Artes (EBA) com 11 cursos que compõem seu ensino. Entre esses estão o curso de Comunicação Visual Design e o de Desenho Industrial já com seu mestrado profissional, os quais recebem grande quantidade de alunos. Com os olhares de hoje, encurtando distâncias, vamos aprendendo que boas relações são possíveis e que com uma visão ampliada pode haver mais semelhanças do que diferenças entre os dois ramos do mesmo tronco. 177
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- Doutora em Artes Visuais pelo PPGAV EBA/UFRJ e Profa Adjunto na EBA/UFRJ. Diretora Adjunto de Cultura EBA/UFRJ. Notas Finais I. A expressão diz respeito ao desenho idealizado por Visconti para a capa do catálogo da exposição de 1901, onde de um mesmo tronco nascem dois ramos: as artes decorativas e as belas artes. II. Taunay, Affonso d Escragnolle A missão artística de 1816, Revista do Instituto Histórico e Geographico Brazileiro. Tomo LXXIV, parte I (1911). Typ. Do Jornal do Commercio de Rodrigues & C. Rio de Janeiro. p. 24, p. 106. III. Taunay, Affonso d Escragnolle A missão artística de 1816, Revista do Instituto Histórico e Geographico Brazileiro. Tomo LXXIV, parte I (1911). Typ. Do Jornal do Commercio de Rodrigues & C. Rio de Janeiro. p. 190. IV. Ferrari, Paula (org.). Manoel de Araujo Porto-Alegre: discurso pronunciado na Academia das Belas Artes em 1855, por ocasião do estabelecimento das aulas de matemáticas, estéticas, etc. 19&20, Rio de Janeiro, v. III, n. 4, out. 2008. V. Barbosa, Ana Mae Arte-educação no Brasil São Paulo: Perspectiva, 2012. p. 32. VI. Barbosa, Rui Obras completas de Rui Barbosa, v. IX tomo II (1882), 23 de novembro, O desenho e a arte industrial, Ministério da Educação e Saúde, Rio de Janeiro, typ. Hildebrandt OCRB digital. p. 248 VII. Cardoso, Rafael Catálogo da Exposição Eliseo Visconti Arte e Design, 2008. p. 26. VIII. Cardoso, Rafael Catálogo da Exposição Eliseo Visconti Arte e Design, 2008. p. 27. IX. Brocos, Modesto A questão do ensino de Bellas Artes, Rio de Janeiro, 1915. p. 16. X. Gama, R. A tecnologia e o trabalho na história, São Paulo: Nobel; Edusp, 1986. XI. Cardoso, Rafael A Academia Imperial de Belas Artes e o Ensino Técnico, 19&20, Rio de Janeiro, v. III, n. 1, jan. 2008. XII. Campofiorito, Quirino Artes Industriais e as Tradições do Ensino Artístico no Brasil, Arquivos da Escola Nacional de Belas Artes, n.9 (1963), p. 72-74. XIII. Campofiorito, Quirino Criação Artesanato Industria, Arquivos da Escola Nacional de Belas Artes, n.6 (1960), p. 228. 179