A REPRESENTAÇÃO DA INFÂNCIA EM MEMÓRIA DOS MEUS CARVOEIROS E MENINOS CARVOEIROS

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Transcrição:

A REPRESENTAÇÃO DA INFÂNCIA EM MEMÓRIA DOS MEUS CARVOEIROS E MENINOS CARVOEIROS Rafaella de Queiroz Mendes 1 Maria Carolina de Godoy (Orientadora) 2 Resumo: No presente estudo procuramos analisar o conto Memória dos meus carvoeiros de Fausto Antônio e o poema Meninos carvoeiros de Manuel Bandeira. Buscamos compreender possíveis pontos de contato na temática da infância e na caracterização de um espaço de pobreza. Na produção de Fausto Antônio, publicada nos Cadernos Negros: contos afro-brasileiros, volume 36 de 2013, são apresentadas as memórias do protagonista como uma infância de privações e lembranças da sua avó. Há o destaque para a afirmação identitária da personagem que busca em seu passado as referências ancestrais. No poema de Manuel Bandeira, deparamo-nos com a realidade social daquelas infâncias retratadas, e a presença de um eu-lírico que se identifica com os carvoeirinhos. Palavras-chave: Literatura afro-brasileira; Poesia brasileira; Infância. Introdução O artigo aqui proposto faz parte de um projeto mais amplo intitulado Literatura afrobrasileira e sua divulgação em rede da Universidade Estadual de Londrina. Tem como objetivo expor, a partir de análises do conto Memórias dos meus carvoeiros de Fausto Antônio, publicado nos Cadernos Negros: contos afro-brasileiros, e da poesia de Manuel Bandeira o tema da infância. No conto Memória dos meus carvoeiros há o destaque para a afirmação identitária da personagem que busca em seu passado as referências ancestrais. Vemos no conto as imagens resgatadas, vocábulos e termos que ampliam essa memória da infância tão importante à compreensão do passado e do presente do protagonista. 1 Estudante de Graduação de Letras Vernáculas e Clássicas da Universidade Estadual de Londrina (UEL). E- mail: rafa_qmendes@hotmail.com 2 Professora Doutora da Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: mcdegodoy@uol.com 435

Essa proposta de estudo atende à Lei 10.639/03 com o objetivo de levar alunos da graduação, pós-graduação, pesquisadores e educadores a entrarem em contato com autores e obras da literatura afro-brasileira. Para o desenvolvimento desse artigo foram relevantes os estudos de Eduardo de Assis Duarte em sua obra Literatura e afrodescendência (2011), e de Stuart Hall (2006). Para fundamentar observações ligadas à memória utilizaremos dos estudos de Jacques Le Goff (1990) e Maurice Halbwachs (2006). O conto e a poesia O conto de Fausto Antônio relata as lembranças da personagem, memórias que vão tecendo uma narrativa que envolve pobreza e infância. Trata-se de um conto narrado em fluxo de consciência, em parágrafo único. É a representação de um desenvolvimento mental da personagem, que deixa livre todos os artifícios que movem o texto: pensamentos, emoções, memórias, entre outros. Em Cadernos Negros (2013, p. 113), Fausto Antônio é retratado em uma de suas obras como um autor que acerta em cheio no diagnóstico do processo de perda a que está submetido o sujeito na sociedade contemporânea. Neste conto, vemos não uma falta de identidade da personagem, pelo contrário, o narrador-protagonista busca nas suas memórias, ao relembrar o passado, fatos importantes de sua vida que vão progredindo para uma construção identitária. O conto inicia com o narrador acordando com seus olhos ardendo e logo percebe que todas aquelas pessoas reunidas em sua casa estavam no velório de sua avó. Acordei com os olhos ardendo. A sala, que era toda a casa, estava cheia. Havia vozes miúdas, anedotas, e o meu choro infantil e inútil foi acolhido pela minha mãe e tias. O corpo, num caixão humilde, tinha ainda poucas flores e brilhava aos meus olhos atentos. Aturdido, recolhia a lembrança dos gritos de dor e da agonia da tarde. Ela saíra para o hospital gritando de dor. Agora era morta. Agora era a perfeição. (ANTÔNIO, 2013, p.47). 436

Prossegue sua obra com o seguinte fragmento a respeito de sua avó Não sei ler, mas sei treler, falava feliz e exaltava a força da oralidade. (ANTÔNIO, 2013, p. 47), em que percebemos a importância da oralidade como expressão da ancestralidade. Sua avó contava, possivelmente, o protagonista contará a mesma história também. Em Memória dos meus carvoeiros conseguimos identificar alguns momentos de memórias além da lembrança do velório da avó, tais como a tentativa de escrita de uma carta a pedido de sua mãe para sua antiga patroa, cortejos e danças na rua, lembrança do emprego de seu pai e de como a comida era escassa em sua época de menino. Encontramos no conto também uma possível analogia com a época de escravidão. Em um primeiro momento seria na seguinte passagem: Assim estão postas as coisas, as lembranças da minha mãe carvoeira, do meu tio Ernesto também carvoeiro e dos avós sujos de carvão, queimados pelo fogo da lenha e pelas palavras interditas por um ditado mudo no papel, que fervilhava de ideias, de vozes, de cores e de memórias que o dono da fazenda suprimia e marcava a ferro. E as marcas cresciam no caderno da quitanda. Não eram suscetibilidades à lida diária e contínua, mas sim o preço da comida e da fome dos meus, que com carvão e alma nunca pagavam o que comiam. (ANTÔNIO, 2013, p 48) Encontramos nesse excerto uma eterna dívida por servidão com o dono da fazenda, que o próprio narrador afirma que cresciam e sua família não suportava pagá-la. Outro fragmento do conto que permite verificar essa analogia é a escrita da carta por pedido de sua mãe, enquanto o garoto a questionava: Mamãe queria mandar uma carta, notícias suas para Dona Amélia. Ela insistia, ela foi uma ótima patroa. Eu, menino sinuoso e escuro como o tempo que não volta, indagava: mamãe, porque a senhora nunca foi registrada? Os seus olhos se enchiam de lágrimas. A conversa encurtava. (ANTÔNIO, 2013, p. 49). E, posteriormente: Mesmo assim, nunca houve uma recusa da minha parte para iniciar a carta, mamãe nunca disse nada da minha insuficiência com as palavras, palavras 437

que ela queria que brotassem dela em mim, como se ela me puxasse seguidamente do seu útero negro e acolhedor. Talvez aí residisse o meu encanto, o meu amor pelo texto que, apesar de materno, era uma recusa à simples ancestralidade. (ANTÔNIO, 2013, p. 51). Diferente da vida de seus antepassados, que eram privados dos estudos e forçados aos trabalhos, escreve essa carta à antiga patroa de sua mãe, que apesar de boa, nunca registrou a sua empregada. Novamente vemos no conto de Fausto Antônio a importância da palavra escrita por meio dessa carta escrita. No decorrer de todo o conto há sempre a retomada para lembranças de sua avó figura muito importante na cultura afro, das histórias narradas, do papel expressivo que teve na vida do protagonista: Uma velha negra que transitava, mesmo sem saber a força muda da palavra escrita, de São Paulo para Campinas. (ANTÔNIO, 2013, p. 47). Este fragmento reforça a condição da oralidade, a importância agregada às histórias narradas por sua avó, para a afirmação da identidade de seus descendentes. Quanto à importância da memória, diz Le Goff: A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia. (LE GOFF, 1990, p. 477) Para Halbwachs (2006, p. 29), ao retornarmos a um lugar onde já estivemos, lembramos de partes esquecidas pela memória, pois quando [...] voltamos a uma cidade em que já havíamos estado o que percebemos nos ajuda a reconstruir um quadro de que muitas partes foram esquecidas. Nesse conto, a memória da personagem é aberta com a morte da avó, permitindo que os fatos do passado venham como lembranças de sua vida. Faz-se importante ressaltar a respeito do conto que o nosso narrador volta para o passado, para assim compreender momentos de seu presente conforme as carapinhas serpenteavam, eu seguia o livro da memória e do verbo reabilitado. (ANTÔNIO, 2013, p. 58). 438

Ressalta-se também no conto, o uso de uma linguagem específica em determinada passagem ao se referir a danças, ou mesmo às atividades religiosas. Bumbus e repetidas batidas que insinuavam, em mim, aquilo que era no corpo, nas vozes e nas vivências íntimas dos meus, da vovó benzedeira, mandingueira, partideira, jongueira das noites misteriosas, de papai que gostava do cururu, da tiririca, das palmas, do bater frenético dos pés no chão, de dançar com alma e com o corpo sempre meio arcado, num jeito manco, que só os meus têm. (ANTÔNIO, 2013, p. 52). Apoiando-nos em Eduardo de Assis Duarte (2011), distinguimos dentro dos preceitos estabelecidos pelo crítico para a designação de uma produção afro-brasileira o ponto de vista e a linguagem. Sobre o ponto de vista escreve: O ponto de vista adotado indica a visão de mundo autoral e o universo axiológico vigente no texto, ou seja, o conjunto de valores que fundamentam as opções até mesmo vocabulares presentes na representação. Diante disso, a ascendência africana ou a atualização do tema são insuficientes. (DUARTE, 2011, p. 391). Com relação à linguagem é pertinente constatar que para Assis Duarte trata-se de um dos fatores que instauram a diferença cultural no texto literário, uma vez que a afrobrasilidade tornar-se-á visível também a partir de um vocabulário pertencente às práticas linguísticas oriundas de África e inseridas no processo transculturador em curso no Brasil. (DUARTE, 2011, p. 394). Assim, verificamos que os termos utilizados estão atribuídos de alguma maneira à cultura africana. É o caso da expressão jongueira, ligada ao jongo, dança que faz parte da cultura afro-brasileira, ou mesmo cururu uma canção que supostamente seria de origem luso-afro-brasileira. No conto Memória dos meus carvoeiros o resgate e a afirmação da identidade se efetuam a partir das lembranças da personagem, dessa maneira, o passado e o presente se fundem e a rememoração, ao mesmo tempo em que resgata a infância de escassez, propicia o reencontro com valores ancestrais como o contar histórias e a importância da palavra tão caro a esse eu que se forma. 439

Percebemos que no caso da personagem, há uma forte ligação com suas origens, a que podemos classificar como tradução nos conceitos de Hall (2006). [...] descreve aquelas formações de identidade que atravessam e intersectam as fronteiras naturais, compostas por pessoas que foram dispersadas para sempre de sua terra natal. Essas pessoas retêm fortes vínculos com seus lugares de origens e suas tradições [...]. Elas são obrigadas a negociar com as novas culturas em que vivem, sem simplesmente serem assimiladas por elas e sem perder completamente suas identidades. Elas carregam os traços das culturas, das tradições, das linguagens e das histórias particulares pelas quais foram marcadas. (HALL, 2006, p. 88-89) Procedemos com a análise da obra de Manuel Bandeira. Primeiramente, segue a transcrição do poema: Meninos Carvoeiros Os meninos carvoeiros Passam a caminho da cidade. Eh, carvoero! E vão tocando os animais com um relho enorme. Os burros são magrinhos e velhos. Cada um leva seis sacos de carvão e lenha. A aniagem é toda remendada. Os carvões caem. (Pela boca da noite vem uma velhinha que os recolhe, dobrando-se com um gemido.)/ Eh, carvoero! Só mesmo estas crianças raquíticas Vão bem com estes burrinhos descadeirados. A madrugada ingênua parece feita para eles... Pequenina, ingênua, miséria! Adoráveis carvoeirinhos que trabalhais como se brincásseis! Eh, carvoero! Quando voltam, vêm mordendo num pão encarvoado, Encarapitados nas alimárias, Apostando corrida, Dançando, bamboleando nas cangalhas como espantalhos desamparados! (BANDEIRA, 1996, p. 192) 440

Bandeira sempre teve um olhar voltado aos problemas do mundo, esse poema é mais um dos que confirmam essa afirmação, assim temas como infância escassa, o trabalho infantil, a fome, são rotineiros em suas produções que apresentam à sociedade aquilo que muitos não fazem questão de enxergar. Ao lermos o poema, depreendemos que a estrutura não condiz com o gênero lírico, segue um caminho mais voltado ao da narração, como se houvesse uma voz contando a história dos personagens. Reporta-se então a um poema narrativo, pois vemos a aproximação de uma representação de crianças marginalizadas perante a sociedade. Em Meninos Carvoeiros observamos um contexto de pobreza, escassez, trabalho escravo e infantil. Logo no começo de sua obra, o poeta já descreve as crianças muito distantes da realidade do mundo infantil, uma vez que deveriam estar envolvidas com brincadeiras, parques, escolas. Muito pelo contrário, são apresentados Os meninos carvoeiros/ Passam a caminho da cidade/ Eh, carvoero!/ E vão tocando os animais com um relho enorme. Assim, ao adjetivar as crianças como carvoeiros evoca mais uma vez a pobreza em que aquelas pequenas crianças estão inseridas. Com o decorrer da leitura de seu poema é possível perceber a pobreza sendo cada vez mais evidenciada, como ao falar do burro magrinho ou da quantidade de carvão que carregavam. Manuel Bandeira denuncia em seu poema, por meio de uma linguagem clara, as crianças que trabalham nas ruas e que são privadas de suas infâncias, levadas para longe do que seria um direito básico, como a escola. Considerações finais Em ambos os casos conto e poema nos deparamos com a figura de crianças desprotegidas, rendidas aos desapontamentos da realidade de sua vida, assim como o tom de memorialismo presente nas obras. No poema, a essência está diretamente ligada à miséria e ao trabalho completamente degradante, uma vez que se trata de um trabalho infantil realizado em uma carvoaria. 441

Imagens desumanas em um âmbito de exploração e, também, contrastantes com a idealização da infância, por meio das brincadeiras. Constatamos que temas como a infância, o memorialismo, a pobreza se estendem na literatura e o faz recorrente de tempos antigos a nossa contemporaneidade. Atendendo à proposta de Lei 10.639/03, alterada pela Lei 11.645/08, que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas brasileiras, o conto Memória dos meus carvoeiros de Fausto Antônio pode ser utilizado como um material didático a ser trabalhado em sala de aula, tanto para inserção da literatura afro-brasileira no contexto escolar, como para abordagem de temas nem sempre presentes em nossa arte literária, como o caso de uma infância de privações. Além do trabalho com o conto, é possível estabelecer um contraponto com o poema de Manuel Bandeira. São produções literárias que abrem caminhos para se trabalhar a diversidade étnica e social contribuindo de forma positiva para valorização de identidades. Referências ANTÔNIO, Fausto. Memória dos meus carvoeiros. In: RIBEIRO, Esmeralda; BARBOSA, Márcio (Org.). Cadernos negros: contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, 2013. Vol. 36. BANDEIRA, Manuel. Poesia completa e prosa. 4.ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996. BERND, Zilá. Introdução à literatura negra. São Paulo: Brasiliense, 1988. BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana. Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá: Eduem, 2003. CANDIDO, Antonio. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1974. CAMARGO, Climene Laura de; ALVES, Eloina Santana; QUIRINO, Marinalva Dias. Violência contra crianças e adolescentes negros: uma abordagem histórica. Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2005. CAVALLEIRO, Eliane. Educação anti-racista: compromisso indispensável para um mundo melhor. In: CAVALLEIRO, Eliane (Org.). Racismo e anti-racismo na educação: repensando nossa escola. São Paulo: Selo Negro, 2001. 442

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