Centro de Estudos Psicanalíticos Curso de Formação em Psicanálise Ciclo II Quarta-feira noite Reflexão sobre a cantiga Se essa rua fosse minha Paralelos com a Psicanálise Mariana Andrade Araújo São Paulo, Outubro de 2015
Este trabalho é uma tentativa de reflexão e elaboração dos conteúdos apresentados neste Ciclo II a partir da minha análise sobre a cantiga popular Se essa rua fosse minha de Mário Lago e Roberto Martins feita em meados dos anos 30. Esta cantiga se tornou popular e de domínio público, fazendo parte da cultura brasileira. Sendo assim, transmitida de geração para geração, criando-se diversas versões de sua letra. Vou utilizar aqui a versão que me foi passada, porém, com uma rápida pesquisa na plataforma Google com as palavras- chave se essa rua fosse minha podem-se encontrar versões adaptadas de acordo com diferentes regiões. Tanto a escolha da versão da cantiga, quanto os motivos da escolha e o esboço de análise partem da minha percepção, portanto, é imprescindível apontar que ao estudar o cotidiano e a psicanálise, também estamos nos colocando constantemente como objetos de estudo. Como a cantiga faz parte da cultura popular brasileira, tenho certeza que deve haver inúmeras análises sobre ela de diversas abordagens diferentes. Arrisquei-me a analisala sobre minha ótica levando em consideração o que foi estudado no Ciclo II sobre a teoria da Libido e o Narcisismo. Se essa rua Se essa rua fosse minha Eu mandava Eu mandava ladrilhar Com pedrinhas Com pedrinhas de brilhantes Só pra ver Só pra ver meu amor passar Na primeira estrofe fiz um paralelo com o ser falo da mãe. Ser tudo e ter tudo. Ao exemplo das quatro primeiras linhas em que há um paralelismo da construção poética
fazendo uma ideia associativa a outra. Se o eu lírico fosse tudo, fosse completo ele mandaria. A ilusão da onipotência. Quando o eu lírico começa com se, ele fala da impossibilidade de completude, da falta, do desamparo. Essa ideia faz relação com a religião catótica-cristã quando se espera que haja uma renúncia de si para dedicar-se ao outro, portanto, na religião essa renúncia significa a completude em si. A entrada do humano aos céus. Um ser humano etéreo, melhor que os outros por abrir mão de qualquer investimento pessoal. O investimento que o eu lírico se propõe a fazer é pegar um bem de domínio público, tomar posse do que nunca será de ninguém, e revesti-lo com joias de diamantes. O apaixonado se encontra em um momento de alteridade, em que por amar intensamente o outro, desloca energia do seu próprio eu para o outro. A rua aí pode simbolizar caminhos que poderá trilhar na vida. E se fosse dono do próprio destino? A rua também é um espaço intervalar. Um entre, um caminho para e não o destino final. Portanto, há aí a ideia de efemeridade do amor. Esta estrofe é escrita no passado evocando nostalgia. Nessa rua Nessa rua tem um bosque Que se chama Que se chama Solidão Dentro dele Dentro dele mora um anjo Que roubou Que roubou meu coração A segunda estrofe reforça o tom de tristeza da canção. Quando o eu lírico menciona o bosque, ele está falando do canto mais escuro e solitário de si. Se formos integrar as linhas, existe uma brincadeira de palavras com Solidão, dentro dele, que aponta o
esvasiamento que ocorre no luto. No bosque Solidão mora um anjo, que na cultura católica- cristã pode ser interpretado como uma pessoa que faleceu. Este anjo, que interpreto aqui como a morte do amado, roubou, levou o coração do eu lírico. Ou seja, levou consigo toda energia libidinal que ele havia investido. Nesta segunda estrofe a rua e o bosque estão no presente. Representando da estrofe passada para esta a passagem do tempo. Se eu roubei Se eu roubei teu coração Tu roubaste Tu roubaste o meu também Se eu roubei teu coração É porque Só porque te quero bem No se é possível imaginar qualquer cenário. Qualquer escape da situação que é. Se permite colocar para fora diálogos internos de barganha, (que de acordo com o poder bio-médico é uma das cinco fases do luto) possibilitando apostar a libido em outros caminhos que não no anjo. A frase começa com o imperativo. A ordem é que a ação é ligada a consequência. Os enamorados roubaram um ao coração do outro. Foi a saída que encontraram para não serem aniquilados. Lacan aponta o amor como uma posição perversa polimorfa, em que o amador procurar recuperar seu objeto perdido. Tomar algo do outro para completar seu eu. Para o amador ser completo, o amado precisa desaparecer, ser devorado. Roubado o coração. Só é possível a existência do anjo porque há o eu-lírico. Assim como a relação mãe-bebê em que o bebê só existe pelo investimento da função materna.
A posição ocupada pelo trabalho do luto no texto remonta a perda da primeira vinculação amorosa, indiferenciada e confusa. O sujeito tentará resgatar o que se teve no narcisismo primário com a completude imaginária, mas sempre faltará algo. Como a música é recitada, aparenta qualidade da palavra como lembrança de fatos passados. O eu lírico está ruminando, absorvendo, elaborando um luto. Portanto, está em uma dimensão em que seus pensamentos e investimentos libidinais voltam para si. Observação: Chamou-me a atenção durante a breve pesquisa que a quantidade significativa de pessoas que faziam alusão a cantiga popular como sendo anônima. Nenhuma palavra surge misteriosamente. A palavra nos é passada pelo outro. Nós somos constituídos pelo Outro. Achei a palavra anônimo um símbolo cruel de preguiça em saber a origem, quase como um esquecimento proposital dos compositores. A cantiga não surgiu como uma explosão espontânea causada por uma reação química. Ela foi pensada, escrita e composta. Isso me fez pensar na minha própria ferida narcísica e como o ser humano é passível de esquecimento. Canções como esta são lembradas e cantadas por diferentes gerações, perpetuando a cultura identitária brasileira. Faz parte do repertório de cantigas de ninar de muitos de nós. Esta melodia simples transmite, apesar do conteúdo dos versos denso, uma serenidade, que remete a uma nostalgia. Minha intenção no trabalho não foi de esgotar interpretações (que existem em mesma quantidade que existem seres humanos), mas de possibilitar uma elaboração do aprendido neste ciclo de formação de psicanálise.
Referência bibliográfica: FREUD, Sigmund. Conf. N 26: Teoria da libido e Narcisismo. Obras completas. Vol. XVI. 1917 FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. (1915) In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969. v. 14. TRINDADE, Mônica M.M.; SILVA, Vinicius E. da;pinto, Vera M.R. Anais do IX Seminário de Iniciação Científica Só Letras- CLCA- UENP/CJ -ISSN 18089216 Disponível em: < http://goo.gl/jskud6 > Visto em 21 de Outubro de 2015 Autor desconhecido. Desenho Leve de Ronaldo Mirada: relação texto-música e sugestões Performáticas. Disponível em: <http://goo.gl/pyrhjv> Visto em 21 de Outubro de 2015