PROTEÇÃO DE VÍTIMAS E TESTEMUNHAS NO PROCESSO PENAL NA ALEMANHA

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Transcrição:

PROTEÇÃO DE VÍTIMAS E TESTEMUNHAS Sem título-18 133

BRANCA Sem título-18 134

REVISTA DIREITO MACKENZIE NÚMERO 2 ANO 1 PROTEÇÃO DE VÍTIMAS E TESTEMUNHAS Ulrich N. Günther* No processo penal alemão a temática da proteção de vítimas e testemunhas é o resultado de novas discussões no campo da política social. Tradicionalmente o Estado enquanto instância garantidora da segurança e ordem públicas estava legitimado na persecução do interesse de punição do autor por parte da sociedade, no âmbito da prevenção geral ou especial. A democratização da concepção e ação autoritárias ** do Estado, efetuada a partir da nova Constituição Alemã, o Grundgesetz de 23 de maio de 1949, colocou em meio à discussões sobre a espécie, a extensão e sobretudo à qualidade da atuação do Estado na sociedade alemã moderna (caráter do Estado como instituição prestadora de serviços). Neste tema abrange também o dever assistencial no âmbito do processo penal, e conseqüentemente faz com que a atenção da política jurídica passasse a enfocar a vítima e a testemunha do delito e da ação penal, pois a vitimização em um delito é uma das piores experiências que o cidadão pode sofrer. As conseqüências psíquicas e financeiras são graves. Depois dessas mais recentes discussões e descobertas no campo da política social, a paz jurídica, tradicionalmente produzida na pretensão punitiva da sociedade diante do autor, teve de ser estendida para uma democracia moderna também e especialmente à vítima (testemunha) de um delito e assegurar-lhe compensações. A testemunha é um meio de prova que pode e em certos casos deve fornecer informações em uma ação penal não-dirigida contra ela. Se ela não for simultaneamente afetada pelo delito, será uma pessoa em ampla escala neutra no processo judicial. Esse caso é relativamente simples.... **Doutor em Direito. Representante no Brasil do Instituto Friedrich Naumann. **O adjetivo autoritárias é a tradução imperfeita do adjetivo alemão obrigkeitlich, que por sua vez remete ao termo Obrigkeit, cuja riqueza de associações na tradição política alemã é incompletamente apreendida em termos como autoridade ou poderes constituídos. (N.T.) 135 Sem título-18 135

REVISTA DIREITO MACKENZIE NÚMERO 2 ANO 1 PROTEÇÃO DE VÍTIMAS E TESTEMUNHAS 136 Incomparavelmente mais complexa é a definição da vítima. A vítima é testemunha, e como tal ela precisa informar sobre a sua percepção dos fatos por ocasião do cometimento do delito. Mas ela é além disso uma pessoa prejudicada, ferida: no delito pode ter sofrido ferimentos tanto físicos quanto psíquicos e/ou danos materiais (vitimização primária), assim como pode ter sofrido danos indiretamente advindos das medidas de persecução penal e das reações da sociedade (vitimização secundária). Desde 1943 a vítima de um delito tinha a possibilidade de apresentar pretensões no âmbito do Direito Civil, por meio de um processo de responsabilidade civil unido a um processo penal (Adhãsionsverfahren). Além disso, as reparações de perdas e danos estiveram e estão disponíveis para a vítima no âmbito do Direito Civil desde a entrada em vigor do Código Civil (Bürgerliches Gesetzbuch BGB) no início do século XX. Mas a vinculação com a ação penal objetiva simplificar e agilizar o reconhecimento judicial dessas indenizações por danos e perdas ou de reparação (Wiedergutmachung). Chama a atenção que esse instituto jurídico não desempenhou nenhum papel maior. Como conseqüência das transformações ocorridas na conscientização da sociedade acerca da responsabilidade na persecução penal, os direitos das vítimas que são dignos de tutela foram modificados desde os anos 80. Em dezembro de 1986 entrou em vigor a Lei de Proteção das Vítimas. Ela atribui à vítima de um delito na fase de instrução do processo penal e no curso da própria ação penal a posição de parte autônoma no procedimento. Por intermédio de um advogado, a vítima tem o direito ao exame dos autos, pode apresentar requerimentos processuais etc. Uma reparação de danos sofridos ainda não está prevista nessa lei. Em 1992, com a promulgação da Lei de Combate ao Crime Organizado, entraram em vigor prescrições jurídicas destinadas à proteção de testemunhas de delitos. Assim a identidade da testemunha pode ser protegida isentando-a de prestar informações referentes à sua pessoa ou à sua residência e ao seu domicílio na audiência principal, quando se deve temer que tais informações ameaçam a sua vida, a sua incolumidade física ou a sua liberdade. A Lei de Combate à Criminalidade de 1994 introduziu pela primeira vez no Direito Penal (sobre delitos cometidos por adultos) prescrições referentes à compensação de danos, que se fundamentam em idéias modernas acerca da compensação entre autor e vítima e da reparação de danos por parte do autor. E posteriormente a sociedade alemã deu outro passo decisivo em 1998, quando o Parlamento Federal promulgou a Lei da Garantia das Pretensões Juscivilistas das Vítimas de Delitos. Essa lei entrou em vigor em 8 de maio de 1998. Autores de delitos tinham extraído, em grau crescente, vantagens comerciais por meio da imprensa sensacionalista, auferindo assim receitas consideráveis sem que a vítima ou as vítimas tivessem obtido assim uma indenização. A sociedade percebeu como imoral e injusta essa situação na qual o autor ainda extrai vantagens financeiras do seu delito, ao passo que a vítima permanece sem indenização. Por isso a referida lei prevê que a vítima tenha um direito legal à penhora dos créditos do autor resultantes de contratos de publicação. Sem título-18 136

REVISTA DIREITO MACKENZIE NÚMERO 2 ANO 1 PROTEÇÃO DE VÍTIMAS E TESTEMUNHAS No final do ano de 1998, os suportes fáticos da reparação de danos e perdas foram completados por meio de prescrições abrangentes de proteção em benefício das testemunhas de delitos (Lei de Proteção das Testemunhas de 1 de dezembro de 1998). Na audiência principal, as testemunhas especialmente necessitadas de proteção, assim sobretudo aquelas com menos de 16 anos, que foram feridas no delito, mas também pessoas doentes, de saúde frágil, devem ser protegidas do confronto direto com o autor (e.g., vítimas menores de delitos sexuais). Por isso o tribunal tem agora a possibilidade de interrogar testemunhas que se encontram em outro lugar (isto é, não na sala do tribunal). Nesse procedimento todas as partes do processo, inclusive o tribunal, permanecem na sala de audiências e a testemunha é interrogada através de uma linha de áudio/vídeo especialmente instalada. Essa modalidade permite uma interrogação muito mais intensa, direta e flexível do que a já antes existente possibilidade da leitura de atas como meios de prova no processo judicial. Interrogatórios também já podem ser gravados em fita de vídeo durante a fase de instrução do processo, podendo a fita ser utilizada na posterior audiência principal. Os direitos do réu permanecem assegurados, pois tanto ele quanto, se for o caso, o seu defensor têm direitos de co-participação nesses interrogatórios. Tal procedimento permite poupar especialmente as crianças, enquanto vítimas, de múltiplos interrogatórios com conseqüências danosas para os interrogados. A lei enfatiza expressamente que a utilização dessas gravações de áudio/vídeo é exclusivamente admissível para fins de persecução penal e somente à medida que ela se faz necessária para estabelecer a verdade dos fatos. Objetiva-se assim prevenir o abuso na utilização de fitas de vídeo. A lei instituiu adicionalmente a possibilidade de que testemunhas-vítimas com menos de 16 anos e em determinados casos também outras testemunhas possam receber um assistente advocatício para a realização do interrogatório (depoimento testemunhal), às expensas do erário público. Além disso, é possível colocar à disposição das vítimas de delitos especialmente graves mediante requerimento e igualmente às expensas do erário público um advogado da vítima (Opferanwalt) durante todo o período de tramitação da ação penal. As discussões de política jurídica continuam, com a finalidade de reformar o Direito Penal tradicionalmente referido ao autor de tal forma que todas as partes tenham assegurado um processo justo, especialmente as vítimas de delitos. 137 Sem título-18 137