Léa Maria de Novaes Chaves



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UnP UNIVERSIDADE POTIGUAR PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU ALQUIMY ART ESPECIALIZAÇÃO EM ARTETERAPIA E A ARTETERAPIA OS CONTOS DE FADAS Léa Maria de Novaes Chaves São Paulo 2005

Léa Maria de Novaes Chaves E A ARTETERAPIA OS CONTOS DE FADAS Monografia apresentada à Universidade Potiguar, RN e ao Alquimy Art de São Paulo como parte dos requisitos para a obtenção do título de Especialista em Arteterapia. Orientadora: Prof. Dnda Irene Gaeta Arcuri.

São Paulo 2005

CHAVES, LÉA MARIA de NOVAES Os Contos de Fadas e a Arteterapia / Lea Maria de Novaes Chaves. São Paulo: [s.n.], 2005. 47p. Orientadora: Prof. Dnda Irene Gaeta Arcuri. Monografia (Especialização em Arteterapia) UnP/Universidade Potiguar. Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós- Graduação Lato Sensu (RN) e Alquimy Art, (SP), 2005. 1. Arteterapia 2. Contos de Fadas 1. Arteterapia 2. Crianças 3 Arteterapia Gestáltica Arte-terapia Os Contos de Fadas e a Arteterapia Léa Maria de Novais Chaves - São Paulo SP.; 2004 52 p.. Monografia (Especialização em Arteterapia) Universidade

UnP UNIVERSIDADE POTIGUAR PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU ALQUIMY ART OS CONTOS DE FADAS E A ARTETERAPIA Monografia apresentada pela aluna Léa Maria de Novaes Chaves ao curso de Especialização em Arteterapia em / / e recebendo a avaliação da Banca Examinadora constituída pelos professores: Profª Doutoranda Irene Gaeta Arcuri. Orientadora.

Profª Drª Cristina Dias Allessandrini. Coordenadora da Especialização. Profª MsC. Deolinda Florim Fabietti. Coordenadora da Especialização.

Dedico este, aos meus filhos: Alex, Marco André e Fabiano. E aos meus netos:

Stephany, Caetano e João Vitor.

Agradeço a Deus de bondade e misericórdia que alimenta minha alma e me faz extasiar frente à sabedoria de uma criança, para reconhecê-lo como criador das mais belas histórias vivificadas no homem, na mulher e em toda natureza. Minha alma entra em êxtase com Tua criação! Sempre agradecida, Senhor! À coordenadora Irene Gaeta Arcuri pela tranqüilidade com que conduziu o trabalho, tornando fácil aquilo que parecia extremamente difícil. Ao meu marido e companheiro Nicodemos Alves Chaves pelo incentivo e compreensão durante todo o processo. Às minhas amigas Celina Aparecida Simões Grigoleto, Vanessa da Conceição Silva e aos meus amigos Joel Costa Rodrigues e Fábio Vicente de Souza, pela dedicação e disponibilidade que marcaram toda minha trajetória neste curso. Ao Alquimy Art pelo rigor e competência com que conduziu o curso, demonstrando compromisso e profissionalismo. Às minhas companheiras de curso, pelos bons momentos de convivência e em especial à Sueli, com quem fiz o estágio.

EROS E PSIQUE Conta a lenda que dormia Uma Princesa encantada A quem só despertaria Um infante, que viria De além do muro da estrada. Ele tinha que, tentando, Vencer o mal e o bem, Antes que já libertado, Deixasse o caminho errado, Porque a princesa vem. A princesa adormecida Se espera, dormindo espera. Sonha em morte a sua vida E orna-lhe a fronte esquecida, Verde, uma grinalda de era. Longe o infante, esforçado, Sem saber que intuito tem. Rompe o caminho fadado. Ele dela é ignorado. Ela para ele é ninguém. Mas cada um cumpre o destino Ela dormindo encantada, Ele buscando-a sem tino Pelo processo divino Que faz existir a estrada. E, se bem que seja obscuro Tudo pela estrada fora, É falso, ele vem seguro, E, vencendo estrada e muro, Chega onde em sono ela mora. E, inda tonto do que houvera, A cabeça em maresia, Ergue a mão, e encontra hera, E vê que ele mesmo era A princesa que dormia. Fernando Pessoa

RESUMO Este trabalho aborda a conexão entre o Contar História e a Arteterapia. Aqui o Contar Histórias e a Arteterapia são apresentados como instrumentos de resiliência, para todos que a procuram como recurso de equilíbrio. Narra a importância dos contos de fadas ao longo da história como fator estrutural da cultura e psique humana. Relata um trabalho, com um grupo de jovens, desenvolvido em uma instituição que atende adolescentes em situação de risco social. Tendo como base teórica os pressupostos da Arteterapia e da Psicologia descreve a evolução de todo o processo criativo onde não há imposição para que haja uma revolução interna, mas tudo acontece de forma harmônica e a própria pessoa é protagonista de sua transformação. Conclui que o trabalho com os contos propicia o vislumbrar da transcendência do ser humano, fortalecendo sua auto-estima, que volta para a sociedade com novo olhar, depois de ter experienciado alternativas de mudanças, propostas de uma maneira tênue, mas transformadora. Palavras-chave: Arteterapia Contos de Fadas Equilíbrio.

ABSTRACT This monograph approaches the link between Telling Stories and Art Therapy. In this context both are presented as instruments of resilience for all those who search it for self-balance. It tells the importance of the fairy tales through History as a structural factor for the culture and the psyche of mankind. It describes an art therapeutic work carried out with a group of teenagers who attended an institution for those who are exposed to social risk factors. The theoretical bases were drawn from Art Therapy and Psychology fields of knowledge. It tells the evolution of the creative process where there is no enforcement to transformation to occur but it happens in a harmonious way and the very person is the protagonist of the transformation. It concludes that working with stories provide discern the transcendence of human being, enhancing self-esteem and the individual can return to social environment with another point of view, after been experienced changes proposed in a tenuous but transforming way Keywords: Art Therapy Fairy Tales Balance.

SUMÁRIO AGRADECIMENTOS... 05 RESUMO... 07 ABSTRACT... 08 INTRODUÇÃO I... 11 1.1. MINHA HISTÓRIA... 12 1.2. O QUE ME TROUXE À ARTETERAPIA?... 12 1.3. O QUE ME TROUXE A ESTE TEMA?... 13 CAPÍTULO II CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS... 15 2.1. HISTÓRICO DOS CONTOS DE FADAS... 16 2.2. CONTOS DE FADAS COMO RECURSO CURADOR... 18 2.3. HORA DA HISTÓRIA... 20 CAPÍTULO III OS CONTOS DE FADA E A ARTETERAPIA... 23 3.1. RECURSOS TERAPÊUTICOS... 24 3.2. EXPERIÊNCIA PESSOAL... 27 CAPÍTULO IV O CONTO DE FADAS NO PROCESSO ARTETERAPÊUTICO... 29 4.1. INICIANDO O ESTÁGIO... 30 4.2. DETALHANDO A EXPERIÊNCIA... 32 4.2.1. Trabalhando com nomes... 32 4.2.2. Trabalhando os contos de fadas... 34

4.3. OBSERVAÇÃO DO PROCESSO TERAPÊUTICO... 35 CAPÍTULO V A TRANSCENDÊNCIA DOS CONTOS POR MEIO DA ARTETERAPIA... 41 5.1. RESILIÊNCIA DO SER HUMANO POR MEIO DA CONEXÃO ENTRE CONTOS E ARTETERAPIA... 42 5.2. CONEXÃO ENTRE CONTOS E ARTETETRAPIA PARA O EQUILÍBRIO DO SER HUMANO... 44 CONSIDERAÇÕES FINAIS VI 6.1. OS CONTOS DE FADAS COMO PROCESSO DE RESILIÊNCIA POR 46 MEIO DA ARTETERAPIA... REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS VII... 48

INTRODUÇÃO I 11

12 1. HISTÓRIA PESSOAL 1.1. O QUE ME TROUXE A ARTETERAPIA? Só sei que tudo começou assim: Na busca por algo inovador, que facilitasse o meu trabalho com grupos de adolescentes e famílias, inseridas em projetos sociais do Jardim Ângela, na Sociedade Santos Mártires, instituição na qual trabalho desde 1997. Sentindo necessidade de ampliar meus conhecimentos para lidar com o público alvo de educadores, adolescentes e seus familiares dentro do contexto de violência doméstica e urbana, fiquei atraída pela dinâmica da arteterapia. A arteterapia tem como função facilitar a criatividade, o autoconhecimento e as soluções de conflitos internos do indivíduo por meio das expressões plásticas e corporais. Para mim, a grandeza da arteterapia está nas interfaces que apresenta, dando conta da subjetividade individual e criativa, reconhecendo em cada um a sua própria sensibilidade e manifestando suas emoções como a comunicação verbal e não verbal por meio da arte. Na praxe, arteterapia apresenta se dando significado ao símbolo, reconhecendo a busca do equilíbrio, vendo que é possível o indivíduo vislumbrar meios para expressar e comunicar seus sentimentos sem a preocupação com o

13 valor estético, apenas o expressar-se na coerência do seu pensar e sentir, e transformar-se no protagonista de sua própria arte de viver. 1.2. O QUE ME TROUXE A ESSE TEMA? No início do ano de 2003, iniciei uma oficina intitulada: A Contadora de História, e precisei elaborar um material que servisse como subsídio aos participantes, formados por professores de Ensino Fundamental da rede pública e educadores de Centro Educacional Infantil. Para a formatação do material, pesquisei e me deparei com um universo mágico, cheios de fantasias e significados emocionais. Que maravilha! Lançar mão de contos de fadas para trabalhar com crianças e adolescentes em conflitos internos tão difíceis, sendo vítimas de violência doméstica e dificuldades de aprendizagem. A aquisição de habilidades, inclusive a de ler fica destituída de valor quando o que se aprendeu a ler não acrescenta nada de importante à nossa vida (BETTELHEIM, 1998, p. 12). Ao mesmo tempo em que me sentia maravilhada, enfrentava um desafio, pois em minha infância, escutei poucas histórias: Quando se escuta pouco se conta pouco, e isso me incomodou muito, quando vi, realmente, a grandeza dos contos de fadas. Senti que passara a vida vendo os meus filhos crescerem e poucas vezes me dispus a parar meus afazeres para entrar neste mundo mágico, para propiciar aos

14 meus filhos em crescimento uma facilitação do desenvolvimento interno, que os levassem a encontrar o significado da vida mais facilmente. No curso de arteterapia, ao fazer o módulo Oficinas Criativas, vivenciamos o retorno à infância por meio de uma dinâmica, ocasião em que alguém nos contava histórias. Foi difícil perceber que, na minha infância, não houve momentos mágicos e nem contadores de histórias. Ao tomar conhecimento disso, do meu processo pessoal, da minha relação com a fantasia, percebi o quanto esse contato com a realidade foi impulsionador para desencadear a credibilidade na existência das fadas, não permitindo que elas morram. Há muitas crianças que não acreditam em fadas quando um garoto ou garota diz: - Eu não acredito em fadas morre uma fada (BARRIE, 1911). Essa situação me trouxe à reflexão e à necessidade de interromper o ciclo: os meus filhos já estão contando histórias para os seus filhos, e eu, uma avó que ousa se aventurar no mundo encantado das fantasias transformadoras dos Contos de Fadas. Quando constatei essa realidade, essa vontade de viver, acreditar no mundo das fantasias, resolvi desenvolver este trabalho.

15 CAPITULOS li CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS

16 2.1. HISTÓRICO DOS CONTOS DE FADAS Há muito tempo, já no século XlX, ganhamos um presente precioso de Jakob e Wilhelm, conhecidos mundialmente como Irmãos Grimm (2002). Juntos, realizaram importantes pesquisas no campo da tradição popular, deixando um riquíssimo acervo de histórias, lendas, anedotas, supertições e fábulas, preservando a graça pela sua iniciativa, um legado fascinante para a história. Tudo isso acontecia nos primeiros anos do século lx, quando os velhos costumes pouco tinham mudado e as antigas tradições conservavam ainda toda a sua força. A proposta dos irmãos Grimm, guardada as distâncias de tempo e lugar foi seguida por especialistas e escritores no mundo todo. Reconheceu-se a importância da cultura e das tradições populares, recolheram contos populares de tribos indígenas e dos vários grupos e países de todos os continentes, reunindo um vasto acervo de tradições das diferentes culturas do mundo. Os homens pré-históricos reuniam-se dentro das cavernas ou em volta das fogueiras para ouvir os relatos das caçadas. Os índios sentavam-se para escutar respeitosamente o conto de história da tribo, que ao ser contado procurava ensinar e garantir que a cultura e as tradições daquele povo não seriam esquecidas. Depois de um dia exaustivo de trabalho, crianças e adultos ouviam e contavam histórias nos tempos medievais. Nos castelos, o rei e sua corte reuniam-se em elegantes saraus para ouvir contos e relatos de viajantes de outras terras. E, até os dias de hoje,

17 histórias são contadas, inventadas e lidas, para saciar a fome das pessoas, por fantasia e por narrativas. (GRIMM, 2002). A medicina tradicional da cultura hindu oferecia um conto de fadas que personificasse o problema da pessoa psiquicamente desorganizada, para que meditando sobre esta história ela mesma visualizasse a questão que a levava ao sofrimento, assim como à sua possível solução. Assim podemos dizer que a história tem um poder de cura, capaz de elaborar conflitos internos de forma sutil e inconsciente.

18 2.2. CONTOS DE FADAS COMO RECURSO CURADOR Segundo a cultura indígena, a cura dentro dos contos envolve reciprocidade, troca, inteireza e plenitude. (ARIEN, 1997). O amor nos faz mergulhar fundo em nós mesmos, e nos leva a descobrir no outro, a mesma potencialidade de crescimento para uma autotransformação que se dá por intermédio deste momento mágico de comunhão, que é citado nos quatros bálsamos universais de cura: contar história, o canto, a dança e o silêncio. (ARIEN, 1997). Tudo isso ajuda a criança a descobrir seus valores, a conhecer a si mesma, facilitando assim, o desenvolvimento de sua personalidade. O curador dentro da cultura xamânica costuma ser um talentoso contador de história, aproveitando desse dom para facilitar a cura, modificando a história do indivíduo. Os símbolos, contidos nos bálsamos, representam as pontes entre a realidade visível e invisível, e são mecanismos psicológicos de energia transformadora. (ARIEN, 1997). Apresentando enredo e situações aparentemente simples, os contos de fadas trabalhando com a imaginação, mantêm viva a chama da flexibilidade e da resiliência (MACHADO, 2004, p. 31). O conto contribui para facilitar o relacionamento familiar, diminuindo a agressividade dos filhos, levando-os a amar os pais de maneira mais sadia, administrando melhor as fontes de pressão interna e externa de cada um.

19 O imaginário traz benefícios para o desenvolvimento integral de crianças, ajudando na assimilação e integração, uma vez que, aumenta a atenção e a concentração. O imaginário leva a pensamentos únicos. As imagens podem ser descritas por meio de palavras, movimentos, danças e ritmo, desenhos, pinturas, modelagem etc. Dialogando com os personagens dos contos, crianças e adolescentes falam de suas vivências reais, confundindo-se com o personagem. No trabalho efetuado com um grupo de adolescentes, que será relatado mais a frente este aspecto poderá facilmente ser detectado, quando trabalhamos a apresentação da história do Pequeno Polegar. Os contos de fadas fortalecem a imaginação, estimulam a fantasia, facilitando com que cada um personifique o seu problema pessoal, fazendo com que alguns dos seus conflitos internos possam se solucionados, liberando o seu inconsciente, na certeza de que o final do conto é sempre feliz. Desta maneira a criança não tem medo de liberar o seu inconsciente, pois por mais difícil e assustadora que seja a descoberta terá sempre um final feliz. Quando o tema de um conto de fadas consegue nos afetar, significa que ele é, também, um tema de nossas vidas. A partir das imagens do conto de fadas podemos tocar em partes de nossa psique que causam dificuldades e, assim, conter suas vias de desenvolvimento. (KAST, 1997, p. 56).

20 2.3. HORA DA HISTÓRIA Segundo Jette Bonaventure (1992), ler ou contar história é um ato mágico, tanto para quem conta como para quem ouve, o poder de se transformar, de se transportar, incorporando o personagem, vivendo emoções, viajando a lugares fantásticos e tenebrosos, lutando, sofrendo e crescendo. Desta forma, a leitura e a narração de história são fundamentais para a vida do ser humano. O tempo e o espaço místico da narrativa, além de propiciarem o autoconhecimento, despertam um clima de confiança por manifestações artísticas abrem espaço para reflexão e para a discussão, permitindo a construção de novas histórias, cultivando a consciência crítica e colaborando para o próprio processo de amadurecimento, organizando o caos interno. Tanto a criança, como adolescente ou o adulto tem a atenção despertada, o silêncio respeitado e um clima de mistério, de cumplicidade e, de aconchego que é criado entre quem ouve e quem conta as histórias. As imagens e o encantamento passam a fazer parte desse momento mágico. E o mundo do faz-de-conta se torna um momento único. A imaginação nos facilita o processo de individuação, nos possibilita lidar com o inconsciente de modo mais livre, autônomo conquistando o próprio espaço. Os contos de fadas estimulam a nossa imaginação, as imagens internas se confundem com a linguagem figurada dos contos. Ao ouvi-los, do início ao fim, percebemos que a história terá um final feliz, e por isso conseguimos superar os medos, os problemas reais. As imagens nos levam à criatividade para solucionar as dificuldades da vida real, fortalecendo a possibilidade de solução para os problemas.

21 Quando o tema de um conto de fadas consegue nos afetar, significa que ele é, também, um tema de nossas vidas. A partir das imagens do conto de fadas podemos tocar em partes de nossa psique que causam dificuldades e, assim, conter suas vias de desenvolvimento. (KAST, 1997, p. 56). Sugestões e atividades Selecionar bons contos de fadas versões originais ou mais fiéis a elas. Oferecer um repertório variado e deixar que a própria pessoa escolha seus contos preferidos. Conforme a escolha da criança é possível perceber que tipo de angústia a aflige naquele momento. Estimular a criança a fazer ilustrações a partir das histórias lidas ou contadas. Dar oportunidade para a criança criar um final diferente para a história. Após contar a história, propor atividades com argila, massa de modelar, colagem, pintura, desenhos, dramatizações, projetando na arte seus conteúdos inconscientes ativados pela história. Vale lembrar que: Por meio da repetição é que o conto ganha um significado especial para a criança: assim ela experimenta os diferentes papéis e emoções dentro de uma mesma história. Toda história é um ponto de partida para outras atividades. A moral da história é nenhuma, ou melhor, várias. Quem descobre é a criança. Nunca faça narrativas com intenções didáticas.

22 O mesmo conto pode ser interpretado de várias maneiras, depende do momento que a pessoa vive. As histórias devem ter sempre finais felizes. É preciso que o inconsciente lute, enfrente os obstáculos, mas para vencê-los,deves cumprir o ciclo: medo, luta,vitória; problema a busca de solução. (PAVONI, 1989, p. 53). Os contos são, portanto, atemporais e tampouco se situam num espaço geográfico delimitado. Era uma vez, num país distante... E, viveram felizes para sempre. (PASSERINI,1998, p. 71).

23 CAPÍTULO III OS CONTOS DE FADAS E A ARTETERAPIA

24 3.1. RECURSOS TERAPÊUTICOS O conto de fadas é terapêutico, porque o paciente encontra sua própria solução através da contemplação do que a história parece implicar a cerca de seus conflitos internos neste momento da vida. (BETTELHEIM, 1998, p. 33). A arteterapia está ligada aos contos de fadas quando aborda essencialmente os recursos terapêuticos como facilitadores do processo evolutivo e criativo, como instrumento de organização interna na reconstrução da realidade, como reconciliadores dos conflitos emocionais e como facilitadores da autopercepção e do desenvolvimento pessoal. (BETTELHEIM, 1998). O conto de fada, assim como a arte, é a forma mais antiga de comunicação, preservação da cultura, e facilitador do processo criativo por meio do simbólico. A escuta e a leitura de contos tradicionais pode nutrir, despertar, valorizar e exercitar o contato com imagens internas abrindo possibilidades para que, as questões das crianças estejam enraizadas no sentido de perguntar. Sua experiência pessoal de valores humanos fundamentais pode ser exercitada no contato com os contos tradicionais. Neles, cada narrativa expressa um caminho, um percurso de desenvolvimento, envolvendo necessidade em questões e conquistas: os desafios, provas e obstáculos permeiam as ações de heróis e heroínas que enfrentam situações em que valores humanos como: coragem, liberdade, beleza, determinação e justiça subjugam o medo, a inveja, a covardia e a traição. Por meio de variadas situações humanas desafios, exposição ao perigo, ao ridículo, ao fracasso, encontro do amor, encantamento, humor os contos produzem efeitos em diferentes níveis de apreensão: podem integrar fazer pensar, fazer descobertas, perguntas, questões, provocar o riso, o susto, o maravilhamento.(machado, 2004, p. 29).

25 A riqueza com que se apresentam os contos de fadas, nos remetendo à linha do tempo, nos leva a descobrir valores, forças que havíamos esquecidos pelas circunstâncias do dia-a-dia, da mesmice e da rotina. As regras que temos claras para cumprirmos, as questões sociais e o consumismo, nos condicionam e nos fazem perder a percepção do significado, da essência e do brilho que temos dentro de nós. Sentimentos valiosos que parecem distantes e afugentados, um grande tesouro que nem nós mesmos percebemos ter. A vida nos exige tão pouco e para fazer sentido é necessário que estejamos atentos à nossa imaginação, intuição e percepção para descobrir o que é essencial no mundo. Os contos tradicionais nos trazem essas imagens internas, nos levando à individuação, nos reinventando, nos possibilitando vivenciar os momentos históricos pessoais e familiares. A imaginação nos faz únicos e singulares, facilita a comunicação e o diálogo e ajuda na construção de meios para atingirmos o universo interno. Esse aprendizado que adquirimos por meio dos contos de fadas, nos faz retomar à nossa história pessoal, aos nossos sentimentos, repensando valores, aguçando a nossa intuição, trabalhando a imaginação e a criatividade. O imaginário nos traz pensamentos originais, facilitando nossa relação com a culpa, as frustrações, o medo; encarando o que, muitas vezes, não queremos ver. Vivenciando o nosso processo interno, aprendendo com os diversos contos de fadas a enfrentar os momentos assustadores, despertando-nos para conhecer melhor a vida, as pessoas e o mundo ao nosso redor.

26 Tanto a arteterapia como os contadores de história vivem momentos de mudanças, de quebra de paradigmas, numa tentativa de retorno à arte da narrativa, resgatando a importância de contar histórias, estabelecendo uma função cultural, social e educativa. Estamos evoluindo para a prática de um novo tipo de cultura, que busca a unidade, uma maneira mais efetiva de participar e de conviver, em que o ser humano necessita se aproximar das pessoas, expressar suas emoções, rever suas crenças. Isto é possível por meio da arte e dos contos milenares; onde, a imaginação criadora facilita transpor obstáculos, levando-nos a nos ver no outro, rever conceitos, viver o novo, ultrapassando limites, usando a criatividade e compreendendo o significado fundamental da vida humana e sua alma. Ao ler os contos de fadas dos Irmãos Grimm, sentimos que a nossa fantasia irá nos levar a compreender melhor o significado fundamental da vida humana. Ao contar histórias podemos nos despertar de uma maneira encantada, por meio das imagens que constroem e transformam o desconhecido por meio da fantasia, mantendo viva a chama do mistério que produz um efeito fascinante. Esse ato nos faz perceber o significado de valores fundamentais, onde se troca a experiência e nos leva a interagir com o grupo familiar, vivenciando momentos únicos e especiais. Ao ouvir contos e relatos dos familiares, sobre os antepassados, externalizamos os nossos processos internos, facilitando a compreensão por intermédio dos personagens que representam essas histórias vivas, que tecem um profundo diálogo entre passado e presente, contribuindo assim, para a continuidade

27 que dá sentido e valor à vida. Tal processo nos faz recordar de onde viemos, quem somos, e até mesmo, quem poderemos ser. Revivendo, assim, um sentimento de continuidade e pertencimento a uma cultura e a um tempo de grande significação e resgate da nossa trajetória pessoal. (MACHADO, 2004). O trabalho com os contos nos traz para um mundo imaginário, intuitivo, onde se faz necessário amar e deixar ser amado, ser flexível, para ver de maneira misteriosa tudo de bom que se manifesta ao nosso redor. 3.2. EXPERIÊNCIA PESSOAL Recebi em minha casa, no final de 2001, para passarmos juntos as festas de Natal e Ano Novo, a minha sogra, Raimunda, e o sogro do meu filho, Juvenal. Os dois, sentados ao redor da mesa, após o jantar, no maior bate-papo, quando de repente, Juvenal comentou seriamente sobre a preocupação que tinha pelo fato de se aproximar da meia-noite. Era uma sexta-feira 13, noite de lua cheia. Ele relatava, muito seriamente, que como era descendente de uma família que costumava se transformar em lobisomem sentia que os seus pêlos estavam arrepiando. Sua maior preocupação (isto relatado de forma muito convincente) naquele momento, era que sempre que isto acontecia, ele nunca estava longe da sua própria casa, e desconhecia qual seria a reação das pessoas que ali se encontravam. Ao ouvir aquele relato que parecia ser tão real, minha sogra foi se deitar. Ao amanhecer, no café da manhã, antes que Juvenal sentasse à mesa, ela comentou um segredo comigo: Olha, quando foi chegando meia-noite, fui bem devagar e tranquei a porta

28 do meu quanto, pois, fiquei muito preocupada, em dormir na mesma casa com alguém que vira lobisomem. E, bem o sabe Chico, personagem de Ariano Suassuna, que depois de relatar suas histórias mirabolantes, indagado sobre a veracidade de seu relato, responde: Não sei. Só sei que foi assim... (MACHADO, 2004, p. 77). O dom de contar histórias é, na verdade, um exercício constante. Um aprimoramento contínuo de possibilidades internas, de ver o mundo de formas diferenciadas do dia-a-dia. É o trabalho com a imaginação, que mantém viva a chama da flexibilidade e da resiliência. É a conversa com a nossa história pessoal que nos faz sentir, pensar, perceber e compreender a nossa trajetória de vida. (FRIEDMANN; CRAEMER, 2003). As imagens dos contos revelam, alimentam o nosso imaginário retomando as nossas crenças e imagens internas que, ao longo da vida, fizeram sentido. Já pensou se alguém, em noite de lua cheia, realmente virasse lobisomem? Se existisse o Pequeno Polegar? O sapo que se transformasse em príncipe? Este Era uma vez.., Há muitos e muitos anos atrás.. é um lugar onde a imaginação pode manter viva a possibilidade de criar, imaginar e transformar o impossível, vivenciar as possibilidades de um novo encantado existir, com o poder mágico das fadas, bruxas, reis, rainhas, príncipes, princesas...

29 CAPÍTULO IV ESTÁGIO O CONTO DE FADAS NO PROCESSO ARTETERAPÊTICO

30 4.1. INICIANDO O ESTÁGIO O estágio foi desenvolvido no Projeto Redescobrindo o Adolescente na Comunidade (RAC), que atende jovens por meio de oficinas grafite, cursos de pizzaiolo, cabeleleiro, computação, inglês e informática avançada. Os cursos têm duração de 06 meses com 04 horas diárias, nos períodos da manhã ou à tarde. É servido aos participantes na entrada café reforçado e almoço. Inicialmente o grupo era composto por oito adolescentes, na faixa etária entre 12 a 14 anos. Eram jovens que sofreram violência doméstica e abuso sexual e, desses adolescentes, dois estavam em Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida. No início dos trabalhos propusemos atividades com temas e materiais diversos, no desenvolvimento efetivo da arteterapia, no Projeto RAC (Redescobrindo o Adolescente na Comunidade). Inicialmente o grupo era composto por oito adolescentes, na faixa etária entre 12 a 14 anos, que sofreram violência doméstica e abuso sexual e, desses adolescentes, dois estavam em Medida Sócio-educativa de Liberdade Assistida. As sessões tinham duração de uma hora e meia, das 09h30 às 11h00 uma vez por semana, em local cedido pela própria instituição: uma sala ampla, com mesa, cadeiras, televisão e vídeo. Havia, também, um espelho com intuito de trabalhar a imagem do adolescente.

31 Ao entrar um novo adolescente no grupo, fazíamos uma atividade para recebê-lo e realizávamos uma apresentação com troca de bombons, laços de fitas, cartões, lembrancinhas produzidas por eles. No início dos trabalhos propusemos atividades com temas e materiais diversos, no desenvolvimento efetivo da arteterapia. Contudo, ao longo das supervisões do estágio, percebi, por meio de momentos ricos de troca e aprendizagem, que seria mais interessante e proveitoso ter uma seqüência, uma continuidade do tema a ser trabalhado. Um dos objetivos principais era melhorar a auto-estima desses jovens, de modo que pudessem resgatar sua identidade. Propus, então, um trabalho com os nomes dos participantes do grupo. A partir daí, comecei ter um novo olhar para as sessões de arteterapia e pude perceber o processo que vinha acontecendo. Em seguida, iniciamos o trabalho com Contos de Fadas, com a história O Pequeno Polegar. Simbolicamente, esta história vinha ao encontro das dificuldades vividas por aqueles adolescentes: medo, insegurança, ameaça, sentimento de inferioridade. O objetivo para este trabalho era, além de fortalecer a auto-estima, propiciar momentos de descontração, dando oportunidade para que expressassem seus sentimentos, num processo de recuperação de seu processo criativo. Vários materiais expressivos foram utilizados como: giz, giz de cera, giz pastel oleoso; tintas diversas, papéis coloridos, lápis coloridos, grafite, barbante, lã, argila, massa de modelar, contas, sementes, massa corrida, sucatas em geral, tecidos e fitas.

32 A seguir, descreverei o desenvolvimento desses dois trabalhos, que foram significantes para processo de transformação pessoal desses jovens. Utilizarei somente a letra inicial do nome de cada um para preservar a identidade dos participantes. 4.2. DETALHANDO A EXPERIÊNCIA Iniciando o encontro, sempre fazíamos um aquecimento, para que os adolescentes entrassem no espírito da atividade proposta. Ouvíamos músicas escolhidas por eles, desenvolvíamos atividades rítmicas com bolinhas de borracha, trabalhávamos com o corpo, usando, por exemplo, chocalhos, onde todos, em círculo, às vezes trocavam de lugar e de chocalho. Propúnhamos, assim, a união do grupo em uma mesma atividade, melhorando a integração e a energia do ambiente. 4.2.1. Trabalhando com nomes Desenvolvemos um trabalho com foco na individualização do adolescente destacando primeiramente o seu nome como objetivo de restabelecer a organização interior, a partir do sentimento de pertença que o resgate da história desses nomes poderia trazer envolvendo os nomes dos adolescentes e possíveis nomes que eles gostariam de ter. Utilizamos materiais como: cartolina, lápis de cor, cola colorida, purpurina, caneta hidrográfica, papel espelho picado, tinta e papel kraft.

33 Questionava pausadamente, sobre o nome de cada um. As questões para reflexão sempre abordando o nome do adolescente. Qual o seu nome? Fale o seu nome alto, como é ouvir o seu nome? Foto 1 Trabalho com o nome. nome? Você gosta do seu nome? Você sabe por que seus pais escolheram esse Foi pedido que escrevessem seus nomes de várias formas, com vários tipos de letras, utilizando diversos materiais. Ainda como parte da atividade, diversas vezes, pedi que mantivessem os olhos fechados, a respiração bem tranqüila, e sempre que respirassem fundo, imaginassem o seu nome no alto, bem colorido, reluzindo como uma grande luz dourada, entre as nuvens. Em seguida, deveriam abrir os olhos e reproduzir no papel o seu nome como viram ou imaginaram.

34 Todos se sentiram muito bem, em ver o seu nome refletido no alto, em cor de ouro. A. disse: Foi bom ver o meu nome. Eu me senti legal. Ver meu nome lá no alto, no céu, perto do Sol, fiquei gostando mais do meu nome, me senti importante com o Foto 2 Representando o nome. meu nome lá no alto. Nunca havia observado o meu nome, só agora que vi o quanto ele é bonito. 4.2.2. Trabalhando os Contos de Fadas O personagem do conto O Pequeno Polegar, mesmo com toda sua fragilidade, que era também, uma característica desses adolescentes, era compensada por toda sua inteligência e esperteza. A partir das características desse personagem, pudemos trabalhar também com o medo da violência, na parte da história em que o pai do Pequeno Polegar ameaça matar o lobo e o personagem estando dentro da barriga do lobo corre o risco de morrer também junto com o lobo. Trabalhamos o desamparo, a separação, a fome, pois todas essas dificuldades simbólicas são reais para esses adolescentes, que diante da história, vivenciavam o personagem tentando encontrar meios para solucionar os diversos conflitos.

35 Ao contar e recontar a história diversas vezes, os adolescentes internalizaram o personagem. E, pelas apresentações teatrais, eles foram misturando a sua realidade de vida com a dos personagens. Foto 3 - Montagem da peça. Mesmo representando diversos personagens da história, em alguns momentos, todos os adolescentes contavam experiências identificando-se com o Pequeno Polegar e também outros personagens. Eles falavam de si, fazendo de conta que falavam do Pequeno Polegar, da vaca, do lobo, do pai, da mãe, dos ladrões, do cavalo. E, puderam perceber como alguém que parece ser tão insignificante e frágil vence pela esperteza, criatividade, inteligência e, que, apesar da maldade e voracidade do lobo, existe um poder maior que é a descoberta da motivação interna, a força do uso do potencial criativo de cada um que é mágico como a magia de uma fada 4.3. OBSERVAÇÃO DO PROCESSO TERAPÊUTICO Um dos adolescentes do grupo, A., 13 anos, adolescente, filho de pais alcoolistas, vítima de abuso sexual e violência física, foi encaminhado ao Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDECA), pela escola que

36 freqüenta, com a queixa de que ele não conseguia aprender nada e que tinha um comportamento agressivo com os colegas e professores. Contudo com todos estes problemas de ordem familiar e dificuldades de aprendizagem, sempre foi muito presente em todos os encontros do grupo, freqüentando-os com muito entusiasmo e prazer. Percebi no período do estágio, o quanto à arte utilizada num processo terapêutico, facilitou o desenvolvimento da sua criatividade e seu trabalho com a imaginação, sendo, também, um veículo rico e importante para sua comunicação e expressão. Fotos 4 e 5: desenhos de A. No início dos trabalhos, A. não se concentrava muito no que fazia, querendo acabar rapidamente e de qualquer jeito, usando apenas duas cores: preto e vermelho. Apesar de distribuir um farto material, ele não fazia uso, deixando seu trabalho sem criatividade. Sempre apresentava muita dificuldade em se expressar verbalmente, mesmo quando solicitado. O momento mais significativo em seu processo terapêutico ocorreu quando se prontificou a contar a história de forma clara e com detalhes. Isso aconteceu

37 repetitivamente, por vários encontros, onde representou por meio dos personagens que confeccionou, a sua própria vivência. A. falava de si como se fosse o próprio personagem, o que dificilmente faria por si só. Pude observar, então, o quanto esta história foi importante, e como ajudou A. a olhar o mundo de forma diferente e fazê-lo perceber sua capacidade no aprendizado. Quando A. chegou até o Projeto RAC, encaminhado pela escola, o pai dizia: Ele é muito burro. Os professores dizem que ele não aprende nada. A partir desse relato do pai, A. começou a ser atendido em sessões de psicoterapia com uma psicóloga, que trabalha com as dificuldades de aprendizagem que ele vinha apresentado na escola, o que é algo que o incomoda muito. Ao ser questionado sobre o que fazia na arteterapia, ele contou a ela, muito feliz, que ouvia e contava a história do Pequeno Polegar. Ela sabiamente quis ouvi-lo, e ao terminar de contar a história com detalhes, ela o elogiou. Ao ouvir o elogio, fez uma cara de espanto, surpreso consigo mesmo, percebendo que foi capaz de aprender decorando toda a história. Foto 6: Representando a história.

38 Os contos de fadas, além de facilitar a aprendizagem e melhorar a autoestima, constroem pontes por meio de uma fórmula mágica, capaz de causar espanto, como em A. que viveu o processo, recontando a história, depois de ouvi-la várias vezes. Assim, possibilita tratar de questões vividas por muitos de nós, identificando sofrimento, alegrias e vivências do dia-a-dia. Foi interessante observar a integração do grupo, no momento da confecção do cenário e dos personagens, os detalhes na confecção feita por cada um deles, na utilização de diversos materiais, caracterizando os personagens, demonstrando criatividade e entusiasmo. No momento anterior à apresentação, uma encenação organizada por eles, percebi que havia um certo desconforto, medo, inquietação, mas que foi superado assim que A. iniciou a apresentação. Foram encontrando soluções, no momento em que cada um, com prazer apresentava seus personagens favoritos, ou com aqueles que mais se identificavam. Para finalizarmos os trabalhos desenvolvidos até esse momento, construímos uma Mandala, com o uso de materiais diversos. Observando o processo que foi gradativamente sendo construído por meio do trabalho dos Contos de Fadas e a arteterapia percebemos que buscamos juntos uma forma de integração e individuação que transcendeu aos nossos limites. E segundo Jung (1961), o pensamento, o sentimento, a intuição e a sensação preparam o homem para lidar com o interior e o exterior, com o consciente e inconsciente, representando a unidade, o círculo, a totalidade da psique ou o self.

39 Passados alguns dias, chamamos os pais para um bate-papo. Colhemos alguns relatos sobre os filhos que freqüentavam o grupo de arteterapia. Todos tinham algo positivo para relatar, em relação à participação no grupo. Fotos 7 e 8: Trabalhos com materiais diversos.. Conforme relata a mãe de A.: A. gosta muito de estar aqui. Participar do grupo de arteterapia tem feito muito bem para ele, que nunca se interessou por nada. Até na escola já melhorou muito. Está mais tranqüilo, se comporta melhor, e tem me ajudado nos afazeres domésticos. Está se cuidando mais, está vaidoso. Segundo Bettelheim, [...] Num conto de fadas, os processos internos são internalizados e tornam-se compreensíveis enquanto representados pelas figuras da história e seus incidentes. Por esta razão, na medicina tradicional e hindu um conto de fadas personificando o seu problema particular era oferecido para meditação a uma pessoa desorientada psiquicamente. Esperava-se que meditando sobre a história a pessoa perturbada fosse levada tanto a natureza do impasse existencial que sofria como a possibilidade de sua resolução. A partir do que um conto específico implicava a cerca de desesperos, esperanças e métodos do homem para vencer tribulações, o paciente poderia descobrir não só um caminho para fora de sua desgraça, mas também um caminho para se encontrar como fazia o herói da história. explicar para uma criança porque um conto de

40 fadas é tão cativante para ela, destrói acima de tudo, o encantamento da história, que depende, em grau considerável, de a criança não saber absolutamente porquê está maravilhada... e ao lado do confisco deste poder de encantar, vai também uma perda do potencial da história em ajudar a criança a lutar por si só, e dominar exclusivamente por si só o problema que fez a história estimulante para ela. A interpretação adulta por mais correta que sejam, roubam da criança a oportunidade de sentir que ela, por sua própria conta, através de repetidas audições e de ruminar acerca da história, enfrentou com êxito uma situação difícil. Nós crescemos, encontramos sentido na vida e segurança em nós mesmos, por termos entendido ou resolvido problemas pessoais por nossa conta, e não por eles nos terem sido explicados por outros. (1998, p. 33). Quando as questões emergem, e são compartilhadas, trabalhadas por meio da pintura, da escultura, de desenhos, na construção de personagens para a representação da história após a atividade de contar e ouvi-las, vivencia-se uma experiência única, trazendo à tona, comentários a respeito da ação dos personagens: conflitos internos; imagens guardadas dentro de nós, esquecidas e, que encontramos, neste momento, oportunidade para organizá-las, de forma que faz sentido uma modificação da sua própria história. Os contos de fadas facilitam a tarefa que temos, como arteterapeutas, de ajudar as pessoas que chegam até nós, a encontrar um significado na vida.

41 CAPÍTULO V A TRANSCENDÊNCIA DOS CONTOS POR MEIO DA ARTETERAPIA

42 5.1. RESILIÊNCIA DO SER HUMANO POR MEIO DA CONEXÃO ENTRE CONTOS E ARTETERAPIA Rutter propôs a denominação de resiliência ao, [...] fenômeno de resistência às experiências negativas em crianças que foram expostas a todo e qualquer tipo de violência, expostos a vivendo em ambientes criminosos, com pais alcoolistas ou desestruturados e nem sempre tornaram-se criminosos ou associa. (apud FRIEDMANN; CRAEMER, 2003, p. 69). É aí que nos chama a atenção o que aconteceu na vida dessas crianças que fez com que elas não repetissem o mesmo esquema de vida da sua família e do seu entorno? Qual foi o fator determinante para que isso não acontecesse? A hipótese implícita é a de que, se soubermos o que é que permite as pessoas se livrarem de danos permanentes apesar das graves experiências negativas, teremos os meios de incrementar a resistência às adversidades. Foi onde se percebeu, que existiu na vida dessas crianças uma pessoa de referência, uma pessoa de confiança, a qual a criança podia recorrer quando tinha perguntas, medos e aflições. Logo, resiliência é a resistência a experiências negativas. Na física, resistência significa elasticidade. (FRIEDMANN; CRAEMER, 2003). A resiliência em grande parte não é inata, mas é construída a partir do esforço de cada pessoa que rodeia a criança, principalmente dos cuidadores da área da educação, da saúde e da cidadania, inclusive dos tomadores de decisão nas políticas públicas.

43 Contos de Fadas E a Arteterapia EU SOCIEDADE O trabalho permanente da contadora de histórias e a arteterapia é visível para o fortalecimento individual para a pessoa tornar-se resiliente frente às adversidades que a cerca. A vida em sociedade dar-se-á de forma mais equilibrada com pessoas mais saudáveis, boas e felizes, objetivos da existência humana neste universo.

44 5.2. CONEXÃO ENTRE CONTOS E ARTETERAPIA PARA O EQUILÍBRIO DO SER HUMANO Numa experiência estética, na criação ou na contemplação de uma obra de arte, a consciência psicológica é capaz de atingir algumas de suas mais altas e perfeitas realizações. A arte nos dá o poder de acharmos e de perdermos, ao mesmo tempo. A mente que reage aos valores intelectuais e espirituais ocultos num poema, numa pintura ou numa peça musical, descobre uma vitalidade que a levanta acima de si mesmo, que atira fora de si, e a faz presente a si mesma em um nível de ser que ela não se sabia capaz jamais de atingir. (MERTON, 1976 p.49 e 50). A congruência entre contos de fadas e a arteterapia leva-nos a um estado de consciência equilibrada e fecunda, a pessoa que passa por este processo não será como antes, ela é capaz de vislumbrar alternativas de saídas para os seus conflitos internos, nunca mais ela será a mesma. A arte age como facilitadora do processo de resgate da qualidade de vida e da sua capacidade de aproximar pessoas atuando como instrumento de integração e mudanças pessoais e sociais. Segundo Bruno Bettelheim, enquanto se diverte a criança, o conto de fadas através dos personagens coloca inúmeras situações onde cada criança de acordo com a necessidade busca uma resposta para o seu conflito, sendo levada inconscientemente a resolver sua própria situação enfrentando o medo, os perigos e gradativamente se tornando resiliente e alcançando o equilíbrio.

45 VI CONSIDERAÇÕES FINAIS

46 6.1. OS CONTOS DE FADAS COMO PROCESSO DE RESILIÊNCIA POR MEIO DA ARTETERAPIA É comum ouvirmos no meio social que uma ou outra pessoa não tem mais jeito. Pelos meus estudos verifiquei tantas inverdades e termino esta monografia mais esperançosa em relação ao Ser Humano. O fato é que a reprodução cultural legitimou o poder no decorrer da história, desrespeitando os contos, principalmente na cultura popular. Uma grande lacuna fora criada entre o Ser Humano e o equilíbrio dentro da estrutura social vigente. O homem e a mulher já não são mais os mesmos. Como resgatar esse equilíbrio sem causar danos em outros segmentos de ordem pessoal? Aí, entra esplendorosamente a conexão entre Contos de Fadas e a Arteterapia que busca harmonicamente inverter o paradigma que leva o indivíduo a desacreditar que é possível acontecer uma autotransformação, por meios da relação estabelecida entre o eu, o conto, a arteterapia e a resiliência. Que beleza poder voltar para a sociedade com mais lucidez, com mais equilíbrio e mais encantada com a vida. Que vida! Quantas histórias! Que riqueza! Hoje, tudo isso faz muita diferença no meu dia-a-dia! O conto vira encanto. A arte tornar-se minha arte. A transformação é mérito meu. A arteterapia legitimiza o meu eu, como protagonista de minha própria história.

47 Na verdade, já não sou mais a mesma! Sobrevivi a um mundo que constantemente me disse NÃO! Tornei-me resistente ao sofrimento. A resiliência foi possível porque outros estiveram comigo nesse contexto. E é exatamente aqui que reconheço, que contos de fadas e arteterapia, sempre caminharam juntos; pois foi, é e sempre será processo, caminho, meios para uma transcendência. A resiliência me trouxe a clareza de poder voar com minhas próprias asas, me vejo mais livre como nunca.

48 VII REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARRIEN, A. O Caminho Quádruplo Trilhando os Caminhos do Guerreiro, do Mestre do Curador e do Visionário. São Paulo: Agora, 1997. BARRIE, J. Versão Infantil de Peter Pan e Wendy. [s.l.]: [s.n.], 1911. BETTELHEIM, B. A Psicanálise dos Contos de Fadas. São Paulo: Paz e Terra, 1998. BONAVENTURE, J. O Que Conta o Conto? São Paulo: Paulus, 1992. FRIEDMANN, A.; CRAEMER, U. Caminhos para uma aliança pela infância. [s.l.]: JICA, Agência de Cooperação Internacional do Japão: 2003. GRIMM, I. Contos de Fadas. São Paulo: Iluminuras, 2002. JUNG, G.C. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira AS, 1961. KAST, V. A imaginação como espaço de Liberdade. São Paulo: Loyola, 1997. MACHADO, R. Acordais: Fundamentos Teóricos poéticos da arte de contar histórias. São Paulo: Difusão Cultural do Livro, 2004. MERTON, T. Homem algum é uma ilha. São Paulo: AGIR, 1976. PASSERINI, S.P. Os contos de fadas e sua importância na educação infantil. São Paulo: Antroposófica, 1978. PAVONI, A. Contos e os Mitos no Ensino. [s.l.]: Ed. EPU, 1989.

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