Duas línguas próximas, globais e de futuro Augusto Santos Silva 1 Não tenho competência para avaliar a proximidade entre a língua portuguesa e a língua espanhola do ponto de vista linguístico. Sei apenas que ela existe e faz sentido, abrindo caminho para a intercompreensão dos seus falantes. Não constituirá surpresa, portanto, que, nas regiões fronteiriças, as condições de interação linguística sejam cada vez mais favoráveis. Três das comunidades autónomas espanholas que fazem fronteira com Portugal a Galiza, a Estremadura e a Andaluzia oferecem hoje ensino de português no currículo secundário; e creio que, a breve trecho, o mesmo irá suceder com Castela e Leão, além das Astúrias. O espanhol é uma das línguas estrangeiras mais escolhidas, como opção de aprendizagem, nas escolas básicas e secundárias portuguesas. Na América Latina ocorre facto análogo, designadamente entre Brasil, Uruguai, Paraguai e Argentina. As duas línguas, português e espanhol, são línguas globais, num triplo sentido. São faladas por centenas de milhões de pessoas, em todo o mundo. A sua implementação não está circunscrita a uma dada região, por mais populosa que seja, visto que são faladas no hemisfério Norte e no hemisfério Sul, na Europa, em África, nas Américas e na Ásia. E, finalmente, são línguas com grande dinamismo, quer por razões demográficas, quer como línguas internacionais de comunicação e cultura, que um número crescente de pessoas aprende num número crescente de países. 1 Intervenção no I Simpósio das Línguas Espanhola e Portuguesa no Espaço Ibero-Americano num Contexto de Diversidade Linguística realizado em Madrid em 6 de junho de 2017. 1
Hoje, o português é falado, como língua materna, por cerca de 260 milhões de pessoas. Estima-se que, por volta de 2050, o português seja falado por cerca de 380 milhões de pessoas, um terço das quais africanas; e, no fim do século, por cerca de 480 milhões de pessoas, sendo que então a maioria se situará já em África e não no Brasil. O espanhol é hoje falado, como língua materna, por 472 milhões de pessoas; e será provavelmente falado por uns 750 milhões de pessoas em meados do século XXI e por 740 milhões nos fins do século. Entretanto, a força de uma língua não decorre apenas da sua demografia. Baseia-se na qualidade e na diversidade das literaturas que a utilizam e recriam, assim como de outras formas artísticas e culturais, como o teatro, o cinema e o audiovisual, ou a música. Em especial, a diversidade das literaturas latino-americanas, africanas e europeias que se exprimem nas línguas ibéricas é uma das suas maiores riquezas. A língua tem também um valor económico, no sentido em que em torno dela se estrutura uma constelação de bens e serviços, da educação à imprensa, à indústria do livro e a outras atividades criativas. O valor da língua, apurado em percentagem do produto interno bruto, já foi estimado para Espanha e Portugal, e trata-se em ambos os casos de um valor significativo. Este potencial económico tem ainda a ver com o uso como língua de comunicação especializada e de negócios e, por sua vez, reforçase com o peso institucional e político, designadamente o peso associado ao reconhecimento e utilização em organizações internacionais. Finalmente, a projeção de uma língua, no mundo contemporâneo e no próximo futuro, depende também e dependerá cada vez mais da sua afirmação como língua de conhecimento e inovação: a língua em que se exprime a ciência, a língua que circula nas plataformas digitais, a língua em que se arquiva, preserva e difunde o conhecimento, a língua em que se 2
anunciam as novas propostas tecnológicas e organizacionais, a língua de comunicação nos novos médias e nas novas redes. Valorizemos, pois, cada uma das nossas línguas como uma língua demograficamente viva, sim, mas também viva como instrumento de comunicação, de conhecimento, de ideias, iniciativas e negócios. Minhas senhoras e senhores: Comecei por assinalar que o espanhol e o português, línguas indo-europeias e línguas românicas, são línguas próximas entre si. Assinalei, depois, que são línguas globais: são duas das línguas mais faladas e internacionalizadas do mundo contemporâneo. Quero agora acrescentar um terceiro aspeto comum. É que ambas as línguas são uma base e uma base fundamental de cooperação internacional e intercontinental. A Conferência Ibero-Americana para a Educação enquadra, desde 1991, um projeto colaborativo assente, ao mesmo tempo, no diálogo entre espaços regionais de dois continentes a Península Ibérica e a América Latina e no diálogo entre duas línguas o espanhol e o português. No âmbito geral desta Conferência e no âmbito específico da Organização Ibero-Americana a Educação, a Ciência e a Cultura, a dupla ancoragem linguística significa, em termos internacionais, uma verdadeira singularidade. A oferta nas escolas secundárias do ensino opcional da outra língua é, aliás, uma responsabilidade assumida por todos os 22 Estados-membros da Conferência Ibero-Americana. Devemos levá-la a sério, porque só retiraremos benefício. Os programas de mobilidade académica, para estudantes, professores e investigadores; o intercâmbio cultural, designadamente no domínio literário, teatral, cinematográfico e 3
audiovisual, valorizando as múltiplas culturas que se exprimem em português e espanhol; e a colaboração entre as universidades e centros de investigação que estudam as questões da língua, do conhecimento, das artes e da ciência, são todos caminhos de cooperação eficaz e promissora que a Conferência Ibero-Americana aprecia e deve explorar mais. Este quadro é, objetiva e felizmente, muito mais amplo do que Portugal e Espanha. Mas, na área da língua e da cultura, Portugal e Espanha têm uma responsabilidade própria, porque os Institutos Camões e Cervantes são ainda as estruturas mais experientes e apetrechadas para assegurar difusão internacional sistemática e contínua. A rede de cátedras, leitorados, cursos e escolas, assim como a rede de centros culturais e centros de língua que cada um dos Institutos garante, por todo o mundo, em dezenas e dezenas de países, são recursos incontornáveis para a política pública, a ação diplomática e a sociedade civil. Não há nenhuma razão para não colaborarem mais entre si. No discurso que pronunciou em novembro passado, em Lisboa, na Assembleia da República, por ocasião da sua visita de Estado a Portugal, o Rei de Espanha propôs justamente uma maior cooperação entre o Cervantes e o Camões. Quero dizer que estamos de acordo com esta proposta no plano bilateral. Há todavia uma razão para escolher dizê-lo neste simpósio, organizado pela Secretaria -Geral Ibero-Americana. É que verdadeiramente, já agora e cada vez mais no próximo futuro, o quadro de colaboração é também multilateral, envolvendo o Instituto Internacional da Língua Portuguesa, o organismo da CPLP sedeado em Cabo Verde, a Rede Brasil e outras estruturas de promoção linguística e cultural. Uma ainda maior afirmação global da língua portuguesa e da língua espanhola não implica concorrência, mas sim convergência; não significa diluição, mas sim concertação; não enfraquece uma em favor da outra, mas 4
fortalece ambas. É uma responsabilidade de todos os seus falantes, dos países e das organizações respetivas. E, sobretudo, enriquece o nosso lugarcomum que é o mundo, porque multiplica os centros, reduz as unipolaridades, limita as hegemonias e valoriza a diversidade. 5