Revista Espaço Acadêmico, nº 89, outubro de 2008 http://www.espacoacademico.com.br/089/89rosa.pdf



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Transcrição:

Revista Espaço Acadêmico, nº 89, outubro de 2008 http://www.espacoacademico.com.br/089/89rosa.pdf Origens sociais, estratégias de ascensão e recursos mobilizados nos trajetos escolares de universitários da Casa de Estudante da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Ederson Helio Antunes da Rosa * Os principais objetivos deste artigo consistem na apresentação de parte dos resultados preliminares de uma pesquisa sobre as estruturas de capitais no sistema de ensino superior, cujo tema central é a inserção de estudantes menos favorecidos economicamente nos cursos de maior prestígio na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (a partir daqui denominada como UFRGS). O foco principal da análise é descrever os percursos dos discentes em dois momentos: antes e depois do vestibular. Pretende-se, assim, compreender a relação dos efeitos das origens sociais no acesso à universidade e a manutenção dentro da instituição universitária com a política de assistência estudantil Assim, o objetivo do trabalho é de analisar de que forma, contando com quais recursos e em quais condições estes estudantes lograram sua inserção na universidade em cursos de prestígio e, concomitante, analisar as práticas às quais se dedicaram a fim de conquistarem estas posições e o que contavam como recursos válidos enquanto investimentos no sistema de ensino. Em outras palavras, tomando por referência a família nuclear de origem dos estudantes (pai e mãe, incluso irmãos), privilegia-se a análise dos investimentos colocados em prática: os bens econômicos ou, mais especificamente, as profissões e a renda familiar e os recursos educacionais, além da etnia do estudante e, ainda, como última vertente analítica, que atravessa as três anteriores, são ainda abordadas as proveniências sócio-territoriais dos estudantes. Através da observação das trajetórias dos estudantes procura-se dar resposta a questões como: qual a origem social destes moradores das Casas de Estudante? Que capitais sócioeducacionais detêm os seus familiares? Quais são as condições sociais e familiares que tornam possíveis e inteligíveis esses destinos escolares? Como hipótese inicial de trabalho foi pressuposto que os estudantes de graduação das Casas de Estudante fizeram prioritariamente um investimento no seu trajeto escolar, percurso este que mobilizou acúmulos de variada ordem (econômico, cultural, social) como tática de ascensão, o qual resultou na aprovação no concurso vestibular da UFRGS. Em outras palavras, que a inclinação para a inserção no sistema de ensino universitário pode ser determinada pela inserção em redes sociais onde as estratégias escolares são valorizadas como a principal forma de manutenção e/ou fortalecimento da posição social. O trabalho se justifica pelo fato do estudo de trajetórias (em um recorte temporal) contribui para a análise de aspectos relativos às estruturas institucionais do sistema de ensino superior que sofreram uma expansão com a abertura de novos cursos, no Rio Grande do Sul e análogo ao Brasil. Ou seja, o estudo ora proposto visa investigar as lógicas e sentidos atribuídos à educação, com a análise de trajetórias sociais. Busca-se apreender os condicionantes e os efeitos de um campo de práticas cujas lógicas, as condições de existência e o funcionamento constituem uma das dimensões do problema com o qual a pesquisa se defronta. * Bacharel em Ciências Sociais/UFSM. Discente do PPG em Ciência Política Mestrado/UFRGS (Bolsista Capes).

O enfoque empírico deve, neste sentido, permitir que se selecione um grupo de indivíduos cujo traço comum é terem construído sua trajetória em função da inserção no sistema de ensino superior em cursos concorridos. Assim, os cursos intencionalmente recortados são: Medicina, Ciências Sociais e Jurídicas Direito, Engenharia Elétrica e Engenharia Metalúrgica. A taxa de candidato vaga, respectivamente, no concurso vestibular do ano de 2007 foi de: 36,28; 22,13; 7,65 e, por último, 6,89. Como instrumento de coleta dos dados, utilizou-se de questionário com entrevista tópica, sendo suas questões semi-abertas. O explicitamento da finalidade da pesquisa foi colocado em primeiro plano desde o início da abordagem com os estudantes, tentando dialogar numa perspectiva que fosse percebida e interpretada pelos pesquisados e, pela minha parte, reduzir as distorções que do encontro resultam, pelo que pode ser dito, pelas censuras e as incitações que encorajaram a problematizar. O estudo baseia-se, portanto, num corpus formado por cinco entrevistas. Sem pretender nem poder responder a todas as questões de modo cabal e completo no espaço deste artigo, opta-se pela apresentação de alguns aspectos pertinentes e relevantes do grupo estudado, com a finalidade principal de abrir o debate e colaborar de forma teórica e metodológica. Todos os estudantes residem no alojamento da Casa de Estudante da UFRGS. Mantido pela instituição o referido alojamento têm em suas dependências 389 estudantes de graduação e pós-graduação. Para morar no estabelecimento é preciso que o estudante tenha uma renda per capita de no máximo dois salários mínimos e ser oriundo de fora de Porto Alegre ou sua região metropolitana. Dos cinco entrevistados, notou-se uma homogeneidade no que se refere à região do estado do Rio Grande do Sul. Pois todos são oriundos de municípios do interior do Rio Grande do Sul, com população superior a 45 mil habitantes. Uma vez que com as infra-estruturas que as cidades-pólo têm, como é o caso aqui, estas podem ser altamente preservadas em contraponto a multiplicação de estabelecimentos nas periferias desafortunadas. Os estudantes são provenientes das zonas de colonização, compreendendo a região da Serra e Planalto do Rio Grande do Sul. Um fator a ser notado é de que nenhum dos entrevistados se declarou afro-descendente, refletindo a probabilidade de um branco ingressar nos bancos escolares do ensino superior que hoje é, no Brasil, 137 vezes superior a de um negro. E se colocarmos os cursos aqui examinados, creia-se que esta cifra irá ser maior ainda 1. O percentual de negros com diploma universitário no Brasil equivale ao dos Estados Unidos dos anos 40, quando leis segregacionistas estaduais impediam negros de freqüentar, como alunos, universidades para brancos. Equivale ao percentual de negros com diploma na África do Sul, durante o apartheid (PNAD, 2005). Esta emergência de democratização do ensino de terceiro grau decorre, em maior ou menor grau, primeiro, pela expansão do aparelho escolar do ensino fundamental e do ensino médio a setores socialmente mais amplos. Um segundo fator é derivado do processo de urbanização e diversificação da economia gaúcha, com a constituição de uma classe média com uma relativa posse de capital cultural (Bourdieu, 1983). Esta posse permite galgar os postos antes vinculados somente a uma restrita parcela populacional, além de redefinir e reafirmar a identidade étnica dos grupos oriundos de colônias de imigração do Rio Grande do Sul. 1 No concurso vestibular 2008 a UFRGS terá uma modalidade de inserção pelas cotas, sejam elas a descendentes africanos oriundos de escola pública, ou a estudantes de escola pública somente, a qual gerou polêmica e debates acalorados dentro da instituição. 2

No que se refere ao sexo dos entrevistados, todos são masculinos, o que pode ser destacado pelo fato das profissões mais tradicionais e, portanto, mais rentosas, onde se concentrarem os homens. Como afirma Establet e Boudelot (1992) em estudo realizado na França, as meninas têm as melhores notas, no entanto, como os símbolos da seleção e da competição escolares são a matemática, a física e a tecnologia, estas atraem mais os garotos. "As garotas têm tendência a subestimar suas competências nas áreas de conotação tradicionalmente masculina, quando estão na presença de garotos" (ESTABLET e BOUDELOT, 1992: 68). Assim, a aversão das jovens a se engajar nas áreas hegemonicamente reconhecidas coloca em jogo os traços culturais do modelo oferecido às mulheres: interesse mais reduzido pelo conhecimento racional da natureza, menor interiorização dos valores de competição, mais forte incerteza quanto ao investimento profissional em carreiras de prestígio. Enfim, pensei em fazer (o curso) de medicina porque me recompensaria em termos econômicos o meu esforço (estudante de medicina). Até pensei em fazer matemática, mas daí seria professor, isso é uma profissão das mulheres (estudante de engenharia elétrica). O magistério não te recompensa como a carreira do direito (estudante de direito). Os trajetos escolares no ensino fundamental foram todos realizados no ensino público, sendo que no ensino médio dos cinco alunos, três realizaram em escolas particulares, com bolsa de ensino total durante os seus três anos. Esses três que usaram a educação privada, dois obtiveram o auxílio de gratuidade por estudarem em escolas de internato católico, para a formação eclesiástica. Já outro, que usufruiu do ensino particular, conseguiu a mesma bolsa por intermédio de um parente próximo, que trabalhava no colégio onde cursou seus estudos. Todo o grupo de estudantes investigado nunca sofreu reprovação ao longo da escolaridade básica (ensino fundamental e médio). Aos que fizeram seus estudos em instituições privadas, a manutenção a esta era derivada de uma obtenção de notas altas, sendo a reprovação uma das formas de perder a bolsa. Para me manter na escola tinha que ter a nota boa, senão voltava para casa (estudante de direito). A nossa vida era muito rígida, horário para estudar, comer e rezar (no ensino médio de escola confessional católica) (estudante de medicina). A idade escolar de entrada na UFRGS a todos os estudantes foi tardia, não foi nem no primeiro e nem no segundo vestibular que se obteve a aprovação, um custo social de espera e dedicação. Nas trajetórias dos cinco estudantes, três eram oriundos de outros cursos, mais fáceis de passar (estudante de engenharia metalúrgica), seja na UFRGS ou em outra instituição privada. Uma ampla maioria utilizou de cursos pré-vestibular, os cursinhos, por um período de um ano ou usava grupos de estudos para não precisar pagar o pré-vestibular. Saía do emprego e ia direto ao cursinho, era exaustivo (estudante de engenharia elétrica). Bah, não era fácil. Aula de noite, o trabalho de dia, final de semana era folgar do serviço e estudar e estudar (estudante de direito). A escolha pela UFRGS 2 deveu-se, primordialmente, ao seu caráter público e gratuito e a política de assistência estudantil a todos os entrevistados. Esta mesma afirmação foi feita aos irmãos dos alunos, os quais fizerem ou faziam algum curso, seja na UFRGS, ou outra instituição pública. O que confere aos dados um maior significado. Comecei até a fazer um curso na particular, com o Fies (Programa de Financiamento de Ensino), mas vi que eu iria enrolar uma corda no pescoço com aquela dívida (estudante de engenharia elétrica). Pra minha irmã eu falei: o melhor é a UFRGS, melhores professores, 2 A UFRGS é a segunda maior universidade federal do país, com prestígio e conceituação. Seu vestibular é altamente seletivo, ainda maior este número de seleção nos cursos dos estudantes aqui analisados. 3

melhor estrutura que lá no interior, até mesmo se fazer um curso para professora, pois há mestrado, doutorado (estudante de medicina). Já aos seus irmãos, as escolhas dos cursos foram pulverizadas, seja na área da saúde, ciências humanas ou ciências exatas, mas a maioria (três dos cinco casos) com cursos com menor densidade de candidato/vaga ou outro caso que decidiu cursar engelharia civil, quando o irmão cursava engenharia elétrica. No caso do irmão ser do sexo feminino - dois casos estas optaram por cursos da área da educação. Os dois casos onde os irmãos não tinham feito um curso superior, um optou pelo funcionalismo público com a sua estabilidade de emprego e outro fez um curso técnico e trabalha na área. A profissão dos pais dos entrevistados se restringia a ocupações de vendedor do comércio varejista e um serviço gerais do funcionalismo público de escola estadual (no caso dos dois em vida). Nos outros três casos, teve-se a falência do pai ou não convivência com o mesmo, sendo apenas uma das mães ainda casada com o esposo pai do estudante. O grau de instrução dos pais da maioria era o ensino fundamental incompleto, apenas um tinha terminado o ensino médio e outro tinha abandonado o mesmo. Já a profissão das mães era de costureira, professora do ensino fundamental (dois casos, ambas já aposentadas), uma funcionária de escola estadual e uma vendedora do comércio varejista. Ou seja, todas estavam inseridas no mercado de trabalho formal, sendo das cinco mães, três eram profissionais da área da educação. O que dava uma seguridade nas escolhas, motivações e inserção dentro do sistema de ensino, desde precocemente. E as outras duas mães, uma como costureira, outra com a profissão de vendedora, vinculam suas profissões em gostos e estilos de vida, aquela ajuda para escolher o produto, o bom trato com o gosto ou as disposições sociais e intelectuais herdadas da convivência e familiaridade com o ethos da classe dominante. O grau de instrução das mães não passava do ensino fundamental, sendo três com o mesmo completo. O que se nota em grande maioria dos casos é o desaparecimento da figura paterna, um aspecto também ressaltado por Bourdieu (1986) e deste conjuntamente com Monique Saint Martin (1987), em especial quanto a estrutura de família de origem e o peso relativo que cabe a mãe (ou a sua linhagem) nessa estrutura (BOURDIEU e SAINT MARTIN, 1987: 33). Análogo a esta forma, Sérgio Miceli (1979), em estudo sobre o recrutamento dos intelectuais brasileiros entre o interregno de 1920 a 1945, onde o autor sublinha o papel mais presente da mãe, a morte ou a falência do pai, o absenteísmo patriarcal como fatores que determinam o surgimento de intelectuais e a inserção dos filhos no sistema de ensino superior. Outro fator a ser ressaltado, é a taxa de fecundidade, pois o maior número de irmãos dos cinco estudantes eram dois, ou seja, perfazendo no máximo três irmãos no grupo familiar. Com a limitação de nascimentos que é uma forma de numerus clausus, é uma tática à passagem pela porta estreita que dá acesso aos melhores cargos, advindos de uma admissão na carreira universitária. A vida familiar enquanto matriz norteadora e catalisadora de recursos à sua prole: A renúncia da prolificidade, escolhendo a reprodução restrita e seletiva, vivendo de forma mesquinha. [tal qual às estratégias de ascensão postas em prática pela pequena burguesia francesa] (BOURDIEU, 1979: 296). A renda familiar dos cinco entrevistados não passava de cinco salários mínimos, sendo três com renda total de quatro salários mínimos nacionais. Segundo os dados do Perfil e representações dos estudantes de Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2003), estudo realizado no ano de 2002, o intervalo de classe para renda familiar de até três salários mínimos é a menor entre todos os estudantes, perfazendo apenas 6,9 por cento, enquanto que mais de 4 a 6 salários mínimos era de 17 por cento, sendo que o maior intervalo 4

fica na renda familiar de 7 a 10 salários mínimos, com 25, 2 por cento3. Assim, estes estudantes moradores da Casa de Estudante se enquadrariam nos 23,9 por cento de estudantes, tomando em conta que esses dados não estão estratificados em cursos, pois os cursos de Medicina, Direito e Engenharia Elétrica e Engenharia Metalúrgica teriam a sua clientela uma fonte de sustento mais elevada comparado aos cursos de Licenciatura e Bacharelado da instituição, a clientela a usar mais a política de assistência estudantil da Casa de Estudante. Os cincos alunos relataram que em seus trajetos escolares tiveram a ajuda, o empenho, as dicas, os macetes, seja de profissionais da área educacional (na pesquisa se objetivou três mães profissionais da educação) ou de profissionais da área escolhida, usando de recursos da rede de sociabilidade: busca de apoio e recursos de parentes abonados, ou de instituições religiosas, relações de amizade e conhecidos das informações para com a UFRGS. Seja a de que havia Casa de Estudante onde não se paga aluguel, nem água, nem luz ; ou do RU [Restaurante Universitário] que cobra R$ 0,50 o almoço ou a janta. Em todos os casos, os relatos são de boa vontade cultural em aprender, de ter disciplina no estudo, hora para ler, hora para se divertir (estudante de direito). A disciplina escolar, é, antes de tudo, uma disciplina temporal e, se consideramos que o trabalho pedagógico tem por objetivo substituir o corpo selvagem [...] por um corpo habituado, ou seja, temporalmente estruturado [...] (BOURDIEU, 1972: 296). Concluindo, o esforço de compreender as condições e os processos sociais e culturais em que os estudantes constituíram a sua alocação no sistema de ensino leva em consideração o princípio de classificação, legitimação e definição que estes mesmos têm para com a educação. A inserção no sistema de ensino em cursos de prestigiados pode ser atribuída por uma forte implantação de seus investimentos para se inserir dentro da instituição educacional. Isto se atesta do ponto de vista recente com a escolha de seu respectivo curso de graduação com alta taxa de candidato/vaga, a escolha da UFRGS e a realização de pré-vestibular, por exemplo; ou numa perspectiva diacrônica, de toda a sua trajetória escolar nos ensinos primário e médio, sendo três casos com a passagem pelo ensino médio privado com bolsa. Estas estratégias, que não se confessam jamais como tais - a ambição escolar, como analogia à taxa de fecundidade ou até a escolha do cônjuge, retraduzem a ambição/disposição à ascese para a ascensão e/ou manutenção de sua classe social. O valor da educação no mercado de trabalho é em grande parte posicional, ou seja, quem tem mais educação tende a levar vantagem, mesmo que seus conhecimentos e competências não sejam especificamente requeridos ou adequados para determinados empregos. Em outros termos, as estratégias colocadas em ação nesta sorte de mercado do sistema de ensino superior não podem ser analisadas, bem entendido, fora das dinâmicas sociais muito mais amplas que lhes emprestam sentido e determinam, em boa parte, as suas chances de sucesso, prolongamento e manutenção no sistema de ensino. A planificação da inserção no ensino superior, a antecipação da existência, não vivendo um dia após o outro de forma onírica como é o caso das classes populares, tem como sentido de que a escolarização é uma oportunidade a ser agarrada, e de que se modelam os estudantes pelo percurso escolar para além da escolaridade obrigatória. Onde a inclinação para a inserção 3 Estudo que foi usado como fonte de pesquisa, com informações apenas para caracterizações descritivas, pois já estão agregados os dados, não podendo ser feito o processamento e aplicação de outros testes estatísticos com os dados individualizados, além de que, já de antemão, fica explícito que este mesmo trabalho toma como sua a preocupação dos alunos e/ou seus responsáveis (como desvendar o infortúnio ou aprovação no vestibular) e também a utilização nas lutas corporativas e políticas e ideológicas entre o sistema de ensino público e o sistema de ensino privado, ou seja, tendo outros objetivos, critérios idiossincráticos, utilização e validade prática parcial dos dados recolhidos. 5

escolar em cursos tradicionais de direito, medicina e engenharias pode ser determinada pela inserção em redes sociais onde as estratégias escolares são valorizadas como a principal forma de manutenção e/ou fortalecimento da sua posição social. Referências: BOUDELOT, Christian e ESTABLET, Roger. Allez les filles! Paris: Seuil, 1992. BOURDIEU, Pierre. La distinction. Critique sociale du jugement. Paris: Minuit, 1979.. Homo Academicus. Paris: Minuit, 1986.. Esquisse d une théorie de la pratique. Genève: Droz, 1972.. Futuro de Classe e causalidade do provável. In: CATANI, Afrânio e NOGUEIRA, Maria Alice. Escritos de Educação. Pierre Bourdieu. São Paulo: Vozes, 1998. BOURDIEU, Pierre e SAINT MARTIN, Monique de. Agrégation et segregation des grandes écoles et le champ du pouvoir. In: Actes de la recherche en sciense sociales, nº 69, setembro 1987, p. 2-50. BOURDIEU, Pierre; BOLTANSKI, Luc e SAINT MARTIN, Monique de. As estratégias de Reconversão. In: Durand, José Carlos (Org.). Educação e Hegemonia de Classe - as funções ideológicas da escola. São Paulo: Zahar, 1979. MICELI, Sérgio. Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920 1945). São Paulo: Diefel, 1979. Fontes utilizadas: IBGE. Pnad 2005 - síntese dos indicadores. Brasília: IBGE, 2007. UFRGS. Perfil e representações dos estudantes de Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS, 2003. 6