TESE. Fernando A. N. Galvão da Rocha. Resumo. 1. Introdução. 70 Revista ENM. Associação dos Magistrados Mineiros (Amagis-MG)

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Transcrição:

TESE Formação dos juízes da Justiça Militar para atuação democrática Fernando A. N. Galvão da Rocha Associação dos Magistrados Mineiros (Amagis-MG) Resumo As escolas judiciais devem capacitar os juízes da Justiça Militar para uma atuação democrática e independente em relação aos interesses do Poder Executivo. Sua missão não é auxiliar as instituições militares na tarefa de preservar os princípios organizacionais da hierarquia e da disciplina nas corporações militares. 1. Introdução A Justiça Militar brasileira tem suas origens no sistema judiciário português e é a mais antiga do Brasil, tendo sido criada pelo príncipe regente D. João que instituiu o Conselho Supremo Militar e de Justiça em 1 o de abril de 1808. Nosso primeiro Tribunal teve sua denominação posteriormente alterada para alcançar a atual denominação de Superior Tribunal Militar. Ao tempo da instituição de nossa Justiça Militar, a Coroa Portuguesa precisava preservar a unidade e obediência das tropas que garantiam a dominação sobre a colônia e a defendessem dos ataques de possíveis inimigos externos. A racionalidade que orientava a atuação dos militares e também de seus juízes considerava as formas de intervenção do Estado frente aos seus possíveis inimigos. Esta racionalidade da guerra inspirou e continua a inspirar a interpretação da Justiça Militar por todo o mundo, de modo a vinculá-la apenas às necessidades e conveniências das Forças Armadas que integram o Poder Executivo. Nesse sentido, tornou-se clássica a afirmação de Clemenceau, 70 Revista ENM

primeiro ministro que comandou o exército francês durante a primeira grande guerra, no sentido de que como há uma sociedade civil fundada sobre a liberdade, há uma sociedade militar fundada sobre a obediência, e o juiz da liberdade não pode ser o mesmo da obediência. 1 Este pensamento, muito próprio às necessidades da guerra, lamentavelmente, costuma ser muito lembrado para orientar a conduta de juízes que hoje atuam em contextos muito diversos daquele para o qual foi concebido. É importante lembrar que na Constituição Republicana de 1891 o Tribunal Militar brasileiro foi previsto como órgão do Poder Executivo, sendo que a Justiça Militar somente passou a integrar o Poder Judiciário com a Constituição de 1934. Com base no artigo 84 dessa Constituição foi possível a criação da Justiça Militar estadual. Neste momento, não havia qualquer distinção entre as funções institucionais das milícias federais e estaduais. O art. 167 da Carta Magna de 1934 limitava-se a dispor que as polícias militares são consideradas reservas do Exército, e gozarão das mesmas vantagens a este atribuídas, quando mobilizadas ou a serviço da União. Nenhuma palavra sobre qual seja a missão das instituições militares estaduais ou da Justiça Militar estadual. Ao tempo do regime militar, a Justiça Militar da União recebeu competência para o processo e julgamento dos crimes praticados contra a segurança nacional. Essa atuação fez com que a sociedade brasileira vinculasse a Justiça Especializada ao período de exceção. Pode-se ver no sítio do Superior Tribunal Militar a preocupação que ainda hoje existe de afirmar que o tribunal militar não é um tribunal de exceção (http://www.stm.gov.br/historia/papel_da_justica.php). Hoje vivenciamos novos tempos. Tempos de iluminação, de liberdade e de responsabilidade social. Superamos aqueles dias de trevas, mas ainda precisamos reconstruir a identidade da Justiça Militar, sobretudo a estadual, com base na premissa democrática. A recente experiência autoritária induz a sociedade a visualizar na Justiça Militar um efetivo divórcio entre a racionalidade militar e os princípios de justiça, vinculando a prática do direito militar às razões instrumentais de um Estado opressor. A perspectiva é evidentemente equivocada. Na ordem constitucional brasileira, a intervenção militar é manifestação do poder público que deve se conciliar com o Estado Democrático de Direito. 1 ROTH, Ronaldo João. Primeiros comentários sobre a reforma constitucional da Justiça Militar estadual e seus efeitos, e a reforma que depende agora dos operadores do direito, Revista dos Tribunais, São Paulo, a. 95, v. 853, p. 442-483, nov. 2006, p. 446 Revista ENM 71

Por outro lado, muitos operadores do Direito Militar racionalizam de maneira equivocada as questões da Justiça Militar, por se basearem na premissa de que esta se presta a assegurar observância aos princípios administrativos da hierarquia e da disciplina. Nos Conselhos de Justiça, militares sem qualquer formação para o exercício da jurisdição são juízes do fato e do direito que lhe é aplicável. A origem da instituição no Poder Executivo e a formação militar da maioria de seus juízes têm produzido a errônea compreensão de que a Justiça Militar presta-se a garantir os interesses administrativos das instituições militares. Nesse contexto, pode-se constatar a ausência da intervenção qualificada das escolas judiciais na formação dos juízes da Justiça Militar. No Brasil existem 87 escolas judiciais, sendo 26 destas especializadas na matéria trabalhista e 25 na matéria eleitoral. Atuando especificamente na formação de juízes militares não há escola judicial. (http://www.enm.org.br/?secao=escolas_brasil&top=3) 2. Fundamentação A Constituição da República estabelece que os princípios da hierarquia e da disciplina são pilares organizacionais das instituições militares, que constituem apenas meios para a realização de seus fins institucionais. Constituem fins das instituições militares da União, conforme o art. 142 da CF, a defesa da pátria, a garantia dos poderes constitucionais e a garantia da lei e da ordem. Por outro lado, os fins das instituições militares estaduais, nos termos do art. 144 da CF, são a preservação da ordem pública, da incolumidade e do patrimônio das pessoas, no contexto do direito fundamental à segurança pública. As instituições militares estaduais estão inseridas no sistema de defesa social que foi concebido para a proteção de todo e qualquer cidadão, não havendo lugar para inimigos. O militar estadual deve ser considerado e tratado como cidadão, da mesma forma que se deve considerar e tratar o civil que eventualmente venha a infringir as regras estabelecidas para a boa convivência social. Por isso, a Justiça Militar estadual deve enfrentar o desafio de desvincular-se da racionalidade da guerra para aprimorar cada vez mais a sua constitucional vocação democrática. Cabe observar que nem mesmo para as instituições militares a hierarquia e a disciplina constituem fins. Constituem apenas meios organizacionais peculiares que se prestam a conferir maior eficiência aos serviços públicos prestados pelas corporações militares para o atendimento de suas missões institucionais. Não podem os juízes da Justiça Militar, portanto, transformar 72 Revista ENM

os princípios organizacionais das instituições militares (meios) em sua missão institucional (fins). A confusão possui importantes repercussões práticas: dependência do Poder Judiciário em relação aos interesses das corporações militares e parcialidade que sempre acolhe as razões do superior hierárquico. Ao Poder Judiciário cabe a garantia dos direitos fundamentais do cidadão, que estão expressos na Constituição e nas leis. Pensar que o Poder Judiciário, pelos órgãos da Justiça Militar, trabalha unicamente para preservar a hierarquia e a disciplina da tropa é transformar seus juízes em corregedores militares. No exercício da competência criminal, especificamente nos casos de condenação pela prática de crimes impropriamente militares, a Justiça Militar tem a missão de viabilizar a intervenção punitiva estatal, garantindo a observância dos direitos fundamentais do condenado. Espera-se que a imposição de pena criminal pela prática de um crime militar, da mesma forma que nos casos de crimes comuns, possa desestimular a ocorrência de novos crimes. Mas, não é missão institucional da Justiça Militar aplicar medidas disciplinares aos militares. Nos casos em que a Justiça Militar julga pedidos de perda do posto e patente de oficiais, ou da graduação das praças, a jurisdição não se presta a intimidar a tropa para observar os princípios da hierarquia e da disciplina. O exame de mérito a ser enfrentado pelo Poder Judiciário diz respeito à qualidade dos serviços prestados pelas instituições militares, excluindo da corporação o militar que apresenta conduta incompatível com a natureza do serviço público a ser prestado. Por isso, é necessário consolidar a identidade democrática da Justiça Militar, definindo claramente a sua missão constitucional. Para tanto, as escolas judiciais devem capacitar os juízes da Justiça Militar para o exercício democrático da jurisdição, considerando os seus variados contextos de aplicação (União e Estados). 3. Conclusão e proposição Do exposto, pretende-se chegar à conclusão de que, enquanto não houver escolas judiciais militares, as escolas judiciais federais e estaduais devem oferecer capacitação para os juízes da Justiça Militar, enfatizando que: no âmbito de sua competência especializada, a Justiça Militar possui a missão institucional de resolver os conflitos de interesse que lhe são levados pelas partes com base na Constituição e nas leis, garantindo os direitos Revista ENM 73

fundamentais do cidadão, como todos os demais ramos do Poder Judiciário; sua atuação deve ser absolutamente independente em relação aos interesses administrativos das corporações militares, pois a independência do Judiciário Militar é uma garantia de todo e qualquer cidadão; não constitui missão institucional da Justiça Militar garantir a observância dos princípios administrativos da hierarquia e da disciplina militares; no Código Penal Militar apenas alguns crimes tutelam a hierarquia e a disciplina militar, de modo que não se pode reduzir sua finalidade protetiva a estes bens. Referência Bibliográfica ROTH, Ronaldo João. Primeiros comentários sobre a reforma constitucional da Justiça Militar estadual e seus efeitos, e a reforma que depende agora dos operadores do direito. Revista dos Tribunais, São Paulo, a. 95, v. 853, p. 442-483, nov. 2006. 74 Revista ENM