Efeminamento, Misoginia e Violência

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Transcrição:

Violência de Gênero - ST 5 Wanderson Flor do Nascimento Escola da Universidade de Brasília/ Instituto de Ciências Sociais e Humanas - DF/GO Palavras-chave: Homofobia, Heteronormatividade, Misoginia. Efeminamento, Misoginia e Violência A diferença só implica o negativo e se deixa levar até a contradição na medida e que se continua a subordiná-la ao idêntico (...) Queremos pensar a diferença em si mesma e a relação do diferente com o diferente, independentemente das formas de representação que as conduzem ao Mesmo e as fazem passar pelo negativo. Gilles Deleuze. Différence et Répétition, 1968. Algumas primeiras palavras No meio de muitos discursos sobre a visibilidade das identidades homossexuais, encontramos a difícil situação do efeminado. Ele é alguém que está mais à mercê das violências físicas e simbólicas, além de sofrer um estigma tanto pelos homossexuais quanto pelos não-homossexuais. Historicamente, a figura do efeminado deste que, segundo nosso imaginário registrado pelos dicionários, tem modos de mulher foi muitas vezes associada ao homossexual, ao promíscuo, ao exclusivamente passivo. Ao pensar um trajeto histórico dessa imagem, pretendo pensar as ligações do efeminado com o estigma da hierarquia que há entre os gêneros e buscar algumas conexões entre essa hierarquia, a misoginia e a violência contra efeminados. Uma das reivindicações dos movimentos gays é a afirmação e respeito das identidades gays, passos que necessitam da visibilidade dos indivíduos que sustentem tais identidades. No caso específico dos efeminados, essa visibilidade está dada na maioria das vezes mesmo quando os indivíduos não estão em busca de lutas identitárias. Os efeminados não estão no meio dos invisíveis da sexualidade que precisam de buscar visibilidades para suas lutas políticas. Há aqui um dos grandes problemas. A visibilidade que os efeminados têm não lhes garante nada que dê passagem a essa política de respeito e afirmação. Ao menos até que se implantem políticas que garantam a segurança a esses indivíduos, o que eles vem tendo a sua disposição é o medo e a violência.

Observando com atenção pesquisas que originaram livros como Causa Mortis: Homofobia, veremos que a maioria absoluta dos gays assassinados ou agredidos de outras formas, é composta de efeminados. A visibilidade aqui abre exatamente o espaço para que esses gays sejam identificados e estigmatizados e por isso agredidos, violentados pelos mais diversos dispositivos de violências simbólicas e físicas. E isso coloca os efeminados no meio de uma guerra quase sem saída. Por um lado parece que a luta pela visibilidade é necessária para que os direitos políticos incluída aí a proteção contra a violência e por outro lado a mesma visibilidade é que faz do efeminado um alvo privilegiado da violência até que se possa estabelecer meios onde ela não mais aconteça. Enquanto não se soluciona esta guerra, penso que tentar entender a lógica de funcionamento da violência contra efeminados pode ser um interessante dispositivo de combate a ela. Efeminamento e misoginia Há um curioso duplo em torno da imagem do efeminado: por um lado ele é uma suposta afirmação de uma certa imagem do homossexual como alguém que pretende ocupar o lugar da mulher na relação sexual, como é também o lugar da recusa de muitos homossexuais que recusam misoginamente o feminino. Gostaria de examinar com um pouco mais de atenção esse duplo em torno da imagem do efeminado. O primeiro ponto do duplo mostra uma norma estabelecida que divide o mundo entre homens e mulheres. Esta imagem supõe aquilo que Judith Butler chama de matriz heterossexual de inteligibilidade (conf. Butler, 2003, pp. 39-51). Esta matriz faz com que nós entendamos o mundo humano filtrado pela ótica da divisão dos seres humanos em dois. Esses dois não estão separados simplesmente pela diferença, mas pela hierarquia entre eles. O masculino do homem estaria superior ao feminino da mulher. Essa superioridade apareceria marcada nos registros econômicos, políticos, familiares e intra-relacionais. A desmesura da hierarquia acaba gerando, por uma questão de dominação do superior sobre o inferior, a violência. O homossexual masculino seria aquele que quando entendido pela ótica da matriz heterossexual é um homem que se interessa sexual e afetivamente por outros homens. O efeminado (visto nesta imagem que analisamos) seria aquele recusa o lugar do homem na hierarquia, recusando-se a se relacionar com uma mulher, fazendo-se mulher para outros homens. Várias afirmações de homofóbicos que invadem salas de bate-papo na internet frisam isso quando dizem Vocês foram feitos para foder mulheres e querem é ser fodidos! 1 Parece haver aqui uma irritação pela recusa dos lugares. O que parece ser o maior complicador nesse aspecto da imagem não é tanto que um homem se

relacione com outro, mas que ele se recuse a se relacionar com uma mulher, que ele confunda a lógica da matriz heterossexual, que ele a utilize de outra maneira. Há aqui neste primeiro ponto um sinal ainda de identificação com o papel da mulher, que muitos homossexuais efeminados ou não acolhem. Podemos ver isso nas falas em feminino que muitos gays assumem, assumindo o gênero feminino na fala. As auto-representações, piadas, etc, que querem aproximar o gay enquanto se auto-referenciando no lugar da mulher, identificando-se não como mulher, mas como homem que quer ocupar na relação sexual o lugar da mulher. Isso não necessariamente implica apenas querer ser passivo nas relações sexuais, mas estar em relação com outros homens, na relação que não rompendo o aspecto hierárquico da matriz heterossexual, coloca um dos parceiros, quando não os dois, em relação de submissão a uma certa imagem de homem. Se observamos rapidamente o Orkut 2 encontraremos várias comunidades onde as pessoas se colocam a disposição de homens. Obviamente isso não se aplica a todos os efeminados e nem afirma que somente os efeminados estão nesta relação com o lugar da mulher. O que parece evidente é que esta imagem agrupa todos os efeminados como se todos estivessem na mesma condição de desejos. O segundo ponto da imagem parece o inverso da primeira. Aqui muitos homens homossexuais ou não mostram uma aversão pelo feminino que aparece na imagem do efeminado. O efeminado é discriminado não apenas como gay (isto é, como homem que se interessa por outros homens), mas como homem que tem modos, jeitos de mulher. O que incomoda, neste caso é o especificamente feminino. E encontramos um modo de funcionamento da misoginia explicitamente colocado na discriminação e violência contra os efeminados. Há um curioso modo machismo relacionado aos gays que afirma que já que tem que ser gay, que pelo menos seja masculinizado. Há vários anúncios em sites de encontros gays que dizem Curto de tudo, sem frescuras. Descarto efeminados. Apesar da ausência de frescuras, o efeminado não está no conjunto das coisas que se curtem por certos gays. Os efeminados são a mostra do feminino recusado na nossa cultura, que aparecem tão fortemente na agressão contra as mulheres. E a violência eclode na presença dessa recusa. A misoginia aparece como uma força tão mordaz, que agride qualquer um que apareça como feminino; mulher ou não. A mera presença de algo que recorde o feminino já é um pretexto para que a relação agressiva que advém da hierarquia dos gêneros, que divide o mundo entre homens e mulheres, já justificaria uma ação agressiva contra essa pessoa que hospede ou acolha essa recordação do feminino. O efeminado recebe, ainda, imagens que além de violentas, são cerceadoras de seu desejo. Essas imagens são tipicamente desenvolvimentos da lógica misógina que cerca a recepção e a aparição pública dos efeminados, que cria alguns estereótipos em torno dos efeminados, imagens às vezes errôneas, às vezes infundadas. Observemos algumas dessas imagens ligadas ao efeminado:

- Todo efeminado quer ser mulher. Esta é um das imagens errôneas mais comuns. Há, é claro, homens que querem ser mulheres, mas isso não quer dizer que todos esses homens sejam efeminados ou que eles sejam homossexuais. Existem claramente efeminados homossexuais (não estou pensando em transexuais) que querem ser mulher. Mas não sei se esse é o caso de todos os efeminados. E mesmo que fosse, teríamos que pensar na imagem de mulher que temos aí para que quando um efeminado queira ser mulher, tenha que ser recusado socialmente e violentado. O desejo de ser mulher, é quase um motivo de castigo. - Todo efeminado é promíscuo em função de querer sexo o tempo inteiro. Essa é uma imagem que se constrói em função de achar que o jeito do efeminado é uma forma de "estar se oferecendo". Essa é uma das grandes fontes da violência sexual contra efeminados. Algumas pessoas, pensando que os efeminados estão se oferecendo se acham no direito de possui-lo, mesmo contra a sua vontade, alegando que "se ele está se oferecendo, é por que quer algo. E não tem o direito de na hora que eu quero, negar o que ele ofereceu". Muitas vezes vemos esse tipo de reclamações de homossexuais efeminados em chats ou jornais populares, que são os lugares onde os efeminados ainda tentam falar. Mas não existe nenhum motivo para que interpretemos o jeito dos efeminados como um gesto de oferecimento. Não temos porque ligar querer fazer sexo e ser efeminado, a não ser se nos religamos à velha imagem que liga a mulher ao pecado e ao sexo. - Todo efeminado é somente passivo nas relações sexuais. Essa é uma imagem que se convencionou a aceitar por ligar o efeminado com a vontade de ser mulher. Se o efeminado quer ser mulher e a mulher só pode ser penetrada, logo ele só quer ser penetrado. Claramente temos aqui uma imagem de mulher como exclusivamente passiva nas relações sexuais. Se acreditarmos nessa imagem, vamos nos aproximar do efeminado com uma imagem já definida já "sabendo" o que ele quer. Assim como se costuma fazer com as mulheres. E isso pode se tornar quando o efeminado não for exclusivamente passivo nas relações sexuais uma forma de desrespeito ao seu desejo, sem dizer que estamos reduzindo-o a um ser que deseja ser penetrado, a um ser que só deseja sexo. Muitas pessoas em chats, sobretudo dizem que "não querem nada com efeminados, a não ser comer eles, pois eles só querem 'dar' mesmo...". Essas imagens, esses estereótipos nos mostram o quanto de trabalho a ser feito na tentativa de pensar a violência de gênero, já que ela aparece por todos os meandros onde o gênero se instaura. Parece que a violência é parte da matriz heterossexual de inteligibilidade do mundo. Identidades em questão

Parece que podemos pensar a questão da violência contra os efeminados em função de uma questão de identidade. Quando identificamos o efeminado com as mulheres, os problemas começam. Talvez essa postura de identificação, ligada à matriz heterossexual, deva ser colocada em questão. Gostaria de partir de uma afirmação de uma feminista francesa: Se nós, lésbicas e homossexuais, continuarmos a falar de nós próprias(os) e a conceber-nos como mulheres e como homens, estamos a ser instrumentais na manutenção da heterossexualidade. (WITTIG, 2001, p. 73.). Eu poderia dizer que a isto que Wittig chama de heterossexualidade, Butler chamará de matriz heterossexual, e isto nos reinsere na discussão que estamos colocando. Wittig termina seu artigo dizendo que as lésbicas não são mulheres (WITTIG, 2001, p. 76). Bastante sugestiva e interessante a idéia, pois ao afirmar isso, ela coloca este lesbianismo que eu ligo às sexualidades marginais como um movimento de estar nas bordas da matriz heterossexual, minando-a, retirando alguns indivíduos as ditas mulheres deste contexto de opressão vinda da dicotomia fundamental da matriz heterossexual. Essa fissura vinda de uma recusa de identificar-se com um conceito hegemônico não é apenas uma invenção nominal; vem, na observação de Wittig, das relações concretas entre mulheres, que recusando estes papéis de homens e mulheres. Alguém poderia pensar então, o que é o lesbianismo? Não seria uma relação entre mulheres? Wittig diria que não, pois mulher não é apenas um conceito que nomeia um corpo embora também o faça mas papel que tem atuações políticas, econômicas, sociais, epistemológicas, etc. Quando falamos em mulher, falamos não apenas em órgão sexual, mas em lugares e funções. Esses lugares e funções são determinados em função desta matriz heterossexual, que normalmente liga o corpo feminino à reprodução, ao trabalho doméstico, enfim, a várias práticas que de algum modo liguem as mulheres hierarquicamente ao domínio masculino. Ou seja, a mulher é definida, mesmo enquanto conceito, em relação ao homem. Neste sentido, este lesbianismo não é nem uma condição na qual duas mulheres estão envolvidas e nem sequer uma opção de um sujeito mulher que não quer viver mais sob o domínio dos homens. A lésbica que Wittig recusa o papel de mulher-mãe, que dita que a verdadeira mulher só se realiza na maternidade; recusa o papel da mulher-submissa, que dita que a mulher tem deveres para com os homens, enquanto seus superiores O pai, o chefe, o marido, o filho, o aluno (para a professora), etc; recusa também ser definida em função da masculinidade do homem. Esta lésbica sugerida por Monique Wittig ao recusar ser mulher, tampouco o faz para poder ocupar o lugar destinado aos homens, exatamente por saber que a lógica da opressão vem desta distinção hierarquizante, não adiantando se ela quer fugir do contexto opressor apenas deixar de ser mulher para ser homem. Em função disto, a recusa de ser (ou permanecer) heterossexual

constantemente recusar a ser um homem ou uma mulher, conscientemente, ou não. Para uma lésbica, isto vai além de recusar o papel mulher. É a recusa do poder econômico, ideológico e político de um homem (WITTIG, 1982, p, 49). Nesta recusa de ser o duplo da mulher, o sujeito que a constitui enquanto categoria, recusa-se o imposto pela heterossexualidade. Obviamente isto é bem mais difícil para indivíduos subjetivados como homens em uma sociedade patriarcal. A idéia de um gay como sendo um homem que se relaciona com outro homem pode ser ainda um desdobramento da aplicação da matriz heterossexual. Os homens são os sujeitos sociais. As relações entre eles são até certo ponto autorizadas. Há o reconhecimento embora não a aceitação das relações gays como relações efetivas. Diferentemente do que se pode dizer das lésbicas de Wittig, os gays são homens. Vê-se isso, por exemplo, na maneira em que muitos gays assumam posturas misóginas típicas do imaginário hegemônico sobre a sexualidade em relação às mulheres, em um movimento claro de segregação. Seria uma aposta interessante pensar que possamos pensar o indivíduo que se efemina não mais na lógica da matriz heterossexual, mas pensar que ele pode fazer de si mesmo enquanto indivíduo coisas para além da matriz. Porém não basta que o indivíduo se modifique. Precisamos também que cada qual que veja esse indivíduo que tenta fugir da lógica da matriz, faça o mesmo. Talvez dependa muito mais de quem vê o efeminado do que dele mesmo essa subversão da lógica. E nesse momento precisamos inventar novas maneiras de ver, maneiras não simplificadoras e redutoras de pessoas às imagens que temos delas. Talvez uma nova maneira de ver, seja libertar as pessoas de nossa tirania do olhar, onde dizemos, identificamos aquele que vemos da maneira que podemos. Esse é um projeto que está por se fazer. Em aberto. Cada um terá que inventar, criar sua maneira de tornar-se outro, de deixar que os outros sejam outros, de libertar-se do imaginário dominante regido pela matriz heterossexual. Cada qual terá que criar os meios para que suas práticas afetivo-corporais estejam fora da regra opressora em que comumente se encontram: criar novas relações, novos modos de vida. Isto é o único que se pode dizer a quem deseje encontrar-se com sexualidades marginais. O como disso é sempre algo a se fazer, constantemente. Referências: BADINTER, Elisabeth. XY Sobre a identidade Masculina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. MOTT, Luiz; CERQUEIRA, Marcelo. Causa Mortis: Homofobia. Salvador: EdGGB, 2001.

WITTIG, Monique. One is Not Born a Woman. Feminist Issues, nº 2, pp. 47-54, winter 1982.. La Pensée straight. Paris: Balland, 2001. 1 Parte de uma conversa em um canal gay de IRC (Internet Relay Chat), em Brasília em 2004. Conforme Logs cedidos por informantes. 2 Rede de comunicações na Internet que agrupa pessoas por interesses, afinidades, em comunidades e redes de aproximação. Endereço na internet: www.orkut.com