PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL E PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR Fabiano Samartin Fernandes * Verifica-se, há algum tempo, que o Comandante-Geral da Polícia Militar da Bahia vem aplicando sanção administrativa com pena de demissão para policiais militares, por terem estes, supostamente, praticado crime. Sem maiores delongas, este trabalho visa demonstrar que essa decisão que aplica pena capital ao policial por suposta pratica de crime é ilegal e inconstitucional, conforme adiante se verá. Antes, porém, necessário esclarecer que o policial militar no exercício irregular de suas atribuições responde civil, penal e administrativamente, nos termos do art. 50, da Lei Estadual n. 7.990/2001 Estatuto dos Policiais Militares da Bahia. A responsabilidade civil do servidor decorre de ato comissivo ou omissivo, doloso ou culposo, que resulte prejuízo da Fazenda ou de terceiros, nos termos da legislação civil, devendo o servidor indenizar os prejuízos causados através de um processo judicial, processo este de natureza civil. * Advogado, Coordenador jurídico da AGEPOL/CENAJUR, Pós-Graduando em Ciências Criminais e Sócio do IBCCRIM. 1
A responsabilidade penal, apurada pelo Poder Judiciário, alcança o policial militar que pratica conduta típica, antijurídica e culpável, seja esta dolosa ou culposa, comissiva ou omissiva, abrangendo os crimes militares, os crimes comuns e as contravenções penais. A responsabilidade administrativa é a conduta praticada pelo policial militar no desempenho de sua função ou cargo, capaz de configurar, à luz de legislação própria, transgressão disciplinar. Essa responsabilidade é apurada e julgada no âmbito da administração, sendo responsável a autoridade hierárquica superior da pessoa jurídica de direito público a que estiver subordinado o servidor acusado. Transgressão disciplinar significa violar, infringir, desobedecer, deixar de cumprir normas e preceitos de natureza administrativa. O art. 52, da Lei Estadual n. 7.990/2001, Estatuto dos Policiais Militares da Bahia prevê quatro sanções disciplinares a que estão sujeitos os policiais militares. A saber: advertência, detenção, demissão e cassação de proventos de inatividade. A advertência deverá ser aplicada, por escrito, nos casos de violação de proibição e de inobservância de dever funcional, regulamento ou norma interna, que não justifiquem imposição de penalidade mais grave. A detenção será aplicada em caso de reincidência em faltas punidas com advertência e de violação das demais proibições que não tipifiquem infração sujeita a demissão, devendo ser cumprida em área livre do quartel e não poderá exceder de trinta dias. A pena de demissão será aplicada ao policial militar que praticar atos de violência física ou moral, tortura ou coação contra os cidadãos, ainda que cometida fora do serviço; ou nos casos de consumação ou tentativa como autor, co-autor ou partícipe 2
em crimes que o incompatibilizem com o serviço policial militar, especialmente os tipificados como: a) de homicídio, quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente ou sendo este qualificado; b) de latrocínio; c) de extorsão; d) de estupro; e) de atentado violento ao pudor; f) de epidemia com resultado morte; g) contra a fé pública, puníveis com pena de reclusão; h) contra a administração pública; i) de deserção; j) tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins; l) prática de terrorismo; m) integração ou formação de quadrilha; n) revelação de segredo apropriado em razão do cargo ou função; o) insubordinação ou desrespeito grave contra superior hierárquico; p) improbidade administrativa. Caberá, ainda, pena de demissão quando o policial deixar de punir o transgressor da disciplina; utilizar pessoal ou recurso material da repartição ou sob a guarda desta em serviço ou em atividades particulares; fazer uso do posto ou da graduação para obter facilidades pessoais de qualquer natureza ou para encaminhar negócios particulares ou de terceiros; participar o policial militar da ativa de firma comercial, de emprego industrial de qualquer natureza, ou nelas exercer função ou emprego remunerado, exceto como acionista ou quotista em sociedade anônima ou por quotas de responsabilidade limitada; dar, por escrito ou verbalmente, ordem ilegal ou claramente inexeqüível, que possa acarretar ao subordinado responsabilidade, ainda que não chegue a ser cumprida; permanecer no mau comportamento por período superior a dezoito meses. O policial militar da reserva remunerada ou reformado não poderá sofrer pena de demissão, caso venha praticar uma dessas condutas, poderá, no entanto, sofrer sanção de cassação de proventos de inatividade, penalidade nova introduzida no Estatuto do Policial Militar pela Lei Estadual n. 11.356, de 06 de janeiro de 2009. 3
O ato de demissão do Praça é de atribuição exclusiva do Comandante-Geral da Polícia Militar; por sua vez, o Governador do Estado é o responsável para a prática do ato de demissão do Oficial da PM, que somente poderá ser demitido após a perda do posto e da patente com a declaração de indignidade para a permanência na Polícia Militar ou tiver conduta com ela incompatível, por decisão do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, em decorrência de julgamento a que for submetido. A legislação infraconstitucional autoriza a pena de demissão em diversas situações, a prática de crime pelo militar é uma delas. Crime, pelo seu conceito material, é a conduta humana que lesa ou expõe a perigo um bem jurídico protegido pela lei penal. Por outro lado, pelo seu conceito formal, crime é a ação humana típica, antijurídica e culpável. Para o presente trabalho é importante, também, trazer o conceito e os princípios da jurisdição. Assim, jurisdição é poder, função e atividade do Estado de aplicar o direito ao fato concreto para solucionar os conflitos existentes. A jurisdição é um monopólio estatal. Os princípios inerentes a jurisdição são: investidura, aderência ao território, indelegabilidade, inevitabilidade, inafastabilidade, juiz natural e inércia. O juiz é a pessoa que detém o poder estatal para, no caso concreto, aplicar o direito (princípio da investidura), esse juiz sofre limitação territorial, sendo-lhe conferido jurisdição apenas nas comarcas e seções judiciárias a que estiver vinculado (princípio da aderência ao território). O juiz não pode transferir a sua competência que lhe foi atribuída pelo Estado para outra pessoa, ainda que vinculada ao Estado (princípio da indelegabilidade). A jurisdição impõe as partes o dever de aceitar as decisões proferidas pelos juízes (princípio da inevitabilidade). É garantido a todos o acesso ao 4
Poder Judiciário, não podendo este deixar de atender (princípio da inafastabilidade). Assegura, ainda, que o julgamento deve ser feito por juiz independente e imparcial, ou seja, competente, não podendo ser suspeito, nem impedido, determina ainda que órgão julgador seja prévio, anterior ao fato (princípio do juiz natural). A jurisdição é una e indivisível assim como o poder soberano. Dessa maneira a jurisdição confere exclusivamente ao juiz o poder de dizer o direito, sendo esta autoridade judiciária única competente para dizer o que é crime, salvo nos casos de crimes dolosos contra a vida, a quem, em regra, tem competência o Conselho de Sentença composto por 07 (sete) jurados no julgamento pelo Tribunal do Júri, nos termos do art. 5º, XXVIII, da Constituição Federal. Portanto, o Comandante-Geral da Polícia Militar não tem competência para dizer se determinado policial cometeu crime, não podendo, dessa forma, demiti-lo por prática de crime, sem que tenha uma sentença penal condenatória transitada em julgado anterior, sob pena de ofensa ao princípio constitucional do juiz natural. Observa-se, desde logo, que em passo algum a Constituição se refere a juiz natural. Apontam-se, porém, como consagração do princípio o disposto no artigo 5º, LIII e XXXVII: ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente ; não haverá juízo ou tribunal de exceção. [...] Longo também nos apresenta a sistematização de Felipe Bacellar Filho, que identifica, no princípio do juiz natural, a existência de cinco significados, não excludentes. O primeiro, no plano da fonte, institui a reserva absoluta da lei para a fixação da competência do juízo. A dúvida, aqui, diz respeito aos regimentos internos dos tribunais, que distribuem competências entre seus órgãos, bem como a atos administrivos, como os que distribuem os feitos entre dois juízes, conforme sejam de número par ou impar. Haveria inconstitucionalidade, nessas disposições, que visam a resolver graves problemas enfrentados pelos tribunais? O segundo diz respeito ao plano da referência temporal. Ninguém será processado ou julgado por órgão instituído após a ocorrência do fato. Repete-se, aqui, a dúvida sobre as normas de direito temporal, que têm eficácia imediata, sobretudo quando criam ou extinguem órgãos judiciários. 5
O terceiro diz respeito ao plano da imparcialidade, com o afastamento do juiz impedido ou suspeito e imunidade do órgão judicante a ordens ou instruções hierárquicas, enquanto no exercício da jurisdição. O quarto diz respeito à abrangência funcional, que visa a garantir ao jurisdicionado a determinabilidade de qual órgão irá decidir o fato levado a juízo. O quinto diz com a garantia de ordem taxativa de competência, que assegura a pré-constituição dos órgãos e agentes, excluindo qualquer alternativa deferida à discricionaridade de quem quer que seja. Eventual modificação de competência deve estar prevista em leis anteriores ao fato. O que se constata, de uma leitura crítica desse quíntuplo conteúdo, é que o princípio da juiz natural, entendido em termos absolutos, pode inviabilizar o exercício da jurisdição; relativizado, perde sua força como princípio. Sobre o princípio do juiz natural. In: http://www.tex.pro.br/wwwroot/curso/processoeconstituicao/ sobreoprincipiodojuiznatural.htm, acesso em 25.06.2010. Dir-se-á, talvez, que não haveria violação ao princípio do juiz natural, pois o que se apura no processo administrativo é a transgressão disciplinar, não o crime; sendo o resultado naquele a demissão dos quadros do serviço público, quando neste será a prisão, e que se trata de responsabilidades distintas. As premissas estão corretas. Contudo, ainda assim, há violação ao primado do juiz natural. Veja-se. O art. 57, do Estatuto dos Policiais Militares, norma que tipifica a transgressão disciplinar fundante do ato de demissão, aduz que a pena de demissão (...) será aplicada nos seguintes casos: (...) a consumação ou tentativa como autor, co-autor ou partícipe em crimes que o incompatibilizem com o serviço policial militar; de homicídio (art. 121 do Código Penal) (grifos nossos). Assim, não pode o Comandante-Geral demitir, a bem do serviço público, policial acusado de cometimento de crime, sem que este tenha sido julgado e condenado na Justiça Criminal em processo judicial conduzido por autoridade judiciária. 6
A norma citada, de natureza administrativa, terá eficácia, apenas, a partir de evento certo e determinado, qual seja, condenação no Juízo penal por crime. Antes disso, não pode nenhum servidor ser punido administrativamente, sob pena de violação ao art. 5º, XXXVIII, da Constituição Federal, art. 74, 1º, do Código de Processo Penal, que determina a competência pela natureza da infração, competindo ao Tribunal do Júri o julgamento dos crimes previstos nos artigos 121 ao 127 do Código Penal, consumados ou tentados, bem como todo o Livro II, Título I, Capítulo II, do mesmo diploma legal, que trata do processo dos crimes da competência do Júri. Importante a menção ao art. 46, 5º, da Constituição do Estado da Bahia: Art. 46. São servidores militares estaduais os integrantes da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar, cuja disciplina será estabelecida em estatuto próprio. [...] 5º. O militar condenado na Justiça comum ou militar à pena privativa de liberdade igual ou superior a dois anos, por sentença transitada em julgado, será excluído da Corporação. Da simples leitura dessa norma inserida na Constituição da Bahia vê-se que o legislador constituinte incluiu como digna de sanção capital a infração penal comum ou militar mais grave, ou seja, aquela a que o policial é condenado a pena privativa de liberdade igual ou superior a dois anos, por sentença penal condenatória transitada em julgado. Dessa forma, a Constituição do Estado confere, e não podia ser diferente, pois decorre da Constituição Federal, ao Poder Judiciário a responsabilidade pelo julgamento do militar por crime supostamente praticado, e, após, decisão condenatória irrecorrível, é que a autoridade administrativa poderá aplicar a pena de demissão. 7
O Poder Judiciário, na instrução criminal e julgamento de uma ação penal, tem sua função sob o viés de um sistema constitucional de princípios e garantias protetoras das liberdades individuais. Portanto, o juiz além de ser a única autoridade competente para condenar por crime, é o órgão mais balizado para efetivar, durante toda a instrução processual, os direitos e garantias constitucionalmente previstas. Entende-se, dessa maneira, que o Comandante-Geral não tem atribuição para aplicar pena de demissão ao policial militar acusado de ter cometido crime, sem que, anteriormente, exista uma sentença penal condenatória transitada em julgado. 8