Thaumazein, Ano V, Número 12, Santa Maria (Dezembro de 2013) pp

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Transcrição:

Thaumazein, Ano V, Número 12, Santa Maria (Dezembro de 2013) pp. 67-76. A MAIORIDADE ÉTICA KANTIANA SOB O VIÉS DO SISTEMA COSMOPOLITA UNIFICADO THE KANTIAN ETHICAL MAJORITY UNDER THE PERSPECTIVE OF A COSMOPOLITAN UNIFIED SYSTEM Resumo Nilmar Costa Daniel 1 O presente texto tem por objetivo analisar o enlace dos conceitos de educação, moralidade e comunidade cosmopolita no âmbito da filosofia prática kantiana. Desse modo, pretende-se seguir o percurso desses conceitos, considerando a rudeza e as influências brutas que pertencem ao estado de natureza humana, que, necessariamente carece de disciplina e instrução como suporte e orientação aos princípios do agir moral. Nesse sentido, será explanado o desenlace do progresso e o aperfeiçoamento da espécie humana que ocorre na perspectiva de um sistema cosmopolita unificado são condições de possibilidade à maioridade ética. Palavras-chave: Sistema cosmopolita unificado. Instrução. Maioridade ética. Abstract This text aims to analyze the linkage of the concepts of education, morality and cosmopolitan community in the context of Kant's practical philosophy. Thus, I intend to follow the path of these concepts, considering the rudeness and gross influences belonging to the state of human nature, which necessarily lacks discipline and instruction as support and guidance to the principles of moral action. In this sense, I seek to show that the progress and improvement of the human species that occurs in the prospect of a cosmopolitan unified system are conditions of possibility for ethical majority. Keywords: Cosmopolitan unified system. Instruction. Ethical majority. Introdução Diante da ideia de evolução e aperfeiçoamento da natureza humana, se faz necessário o estágio de aprimoramento no que se refere ao esclarecimento racional, especificamente, a razão prática e sua vertente moral, que é de grande interesse no presente trabalho. Conforme Immanuel Kant (1724-1804), a disposição como gérmen para o bem, assim como a capacidade humana de agir e problematizar a própria ação, demonstra amadurecimento do gênero humano e efetivação, porém lenta, de uma matriz arquitetada pela Providência em 1 Mestrando em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: nilmardaniel@yahoo.com.br

nossa natureza. Assim, de um ponto de vista histórico das gerações de nossa espécie e na perspectiva de uma comunidade cosmopolita, o convívio harmônico entre os povos poderá ser concebido somente a partir de um processo pedagógico que inclui a formação, tanto negativa (disciplina) quanto positiva (instrução), como instrumento indispensável na construção do sujeito moral, que, perante influência da educação (aprimoramento em cultivar, civilizar e moralizar), se vê condicionado a agir contemplando princípios e deveres, abandonando a rudeza e a menoridade de seu entendimento e de sua ação egoísta e isenta de qualquer compromisso ético. Conforme o filósofo de Königsberg, o ser humano é capaz e necessita de uma educação tanto no sentido da instrução quanto no da obediência (disciplina) 2, por propensão ao bem e vontade própria, enquanto membro inteligível de uma comunidade de hospitalidade, que se assumi como legislador ativo e responsável por si, pelo outro e pela humanidade. Desta forma, a arquitetônica da ação humana segue moldada, constantemente, pela razão esclarecedora, a qual é guia que orienta e aproxima a ideia de uma maioridade ética através da responsabilidade assumida e firmada por cada indivíduo que esteja em condições de se assumir como autônomo perante as regras morais mais elevadas, com finalidade última de ser conquistada pela espécie humana em estágio rumo a um sistema cosmopolita unificado, o qual tem por característica o acolhimento não de indivíduos, mas sim de nações que conquistaram elevado amadurecimento da razão moral. Por sistema cosmopolita unificado pode-se compreender a unificação de um conjunto de povos que atingiram um nível de avanço comum na disposição para o bem. 1. O sensível e o inteligível na ação humana O fato inegável da proposta kantiana de não abstrair a natureza humana da razão prática, transcorre paralelamente ao fato de que fontes empíricas, ou psicológicas, e fontes inteligíveis fazem parte da realidade de nossas ações. Embora as fontes empíricas sejam vistas como impuras e ilusivas para se fundamentar a ideia de uma ação boa em si, como na obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes, estão inseparavelmente vinculadas à existência humana, assim como a razão moral, que é inteligível. Conforme Kant, a realidade humana, no que se refere à ação, é representa na dualidade do agir a partir da ótica de um mundo sensível e um mundo inteligível. 2 KANT, I. Antropologia de um ponto de vista pragmático. p. 219. 68

O primeiro mundo, que é o sensível, corresponde àquele que representa a natureza humana da ação como ela necessariamente é, em sentido empírico, e se apresenta com necessidades naturais atreladas aos impulsos como desejos imediatos de satisfação, inclinações egoístas e paixões. De acordo com Kant, a ideia de uma teoria moral ancorada paralelamente a bases sensíveis arruinaria toda proposta de uma ética deontológica, pois, o empírico é traiçoeiro e fonte de engano, o qual gera princípios morais não confiáveis. No que cabe ao mundo inteligível, este, porém, o grande diferencial da proposta ética de Kant, estabelece-se como fundamento de sua teoria moral, a razão prática pura, que tem como papel principal os móbiles da ação humana e suas motivações como ponto de partida, para enquadrar ou não determinadas ações como pertencentes ao verdadeiro propósito de agir por dever e não por outro interesse maior que venha motivar a ação a apresentar-se, aparentemente, como boa em si. Para Kant, este mundo é pensado unicamente como inteligível, pois nele se abstrai de todas as condições (fins) e mesmo de todos os obstáculos da moralidade (fraqueza ou impureza da natureza humana). 3 A preocupação do filósofo na elaboração de princípios morais que servirão de ponto de partida para ação boa em si, é a de eximir-se de qualquer inclinação ou vício e construir, em âmbito racional, a melhor fórmula para guiar o querer humano singular para uma proposta geral de humanidade a partir de máximas, ou regras do dever em forma de imperativo. Desta forma, o ser humano está destinado por natureza, como propósito do bom uso da razão como bússola inteligível do agir, conforme o filósofo de Königsberg, a admitir sua dignidade frente à humanidade e a reparar, constantemente, os desvios apetitivos da sensibilidade que insistem em deixar-se seduzir pelos atrativos e comodidades individuais em nome de um bem maior e geral; uma dignidade que tem como ponto de partida a pessoa em si, e, consequentemente, sugere a boa conduta em âmbito mais amplo, o qual possa contemplar em âmbito cosmopolita, todo o gênero humano. 2. A instrução como ponte entre disciplina e moralidade Para que a moralidade se cristalize como verdadeiro dever do homem, a educação deve ser aprimorada constantemente como obrigação que a geração atual assume para com as próximas, na perspectiva de conquista da perfeição da natureza humana. De acordo com a 3 KANT, I. Crítica da razão pura. p. 224. 69

obra, Sobre a Pedagogia, o homem não pode se tornar um verdadeiro homem senão pela educação. Ele é aquilo que a educação dele faz 4, e a instrução é o aprimoramento do indivíduo humano, que reflete na evolução da espécie como um todo, sempre na perspectiva de afastamento de uma postura rústica e impulsiva para adotar posturas inteligíveis que visem o melhoramento do gênero humano como bem maior. As ações instrutivas partem do indivíduo singular (que, por ventura, foi educado por outro mestre), e este é responsável pela transmissão e formação de princípios e deveres morais, que serão transmitidos a outros indivíduos que, consequentemente, retransmitirão aquilo que aprenderam às próximas gerações, sucessivamente, o que contribui para geração atual e aprimoramento do gênero que progride de uma geração para outra na direção do, talvez, inalcançável cosmopolitismo moral dos povos. Conforme Kant, para um contínuo progresso da espécie de seres racionais, é indispensável uma educação e o cultivo do gênero humano com meta contínua a um sistema cosmopolita moral, que vise à unificação dos povos, onde uma geração, de posse de conhecimento adquirido e amadurecimento racional e esclarecimento moral, se aproxima cada vez mais de um esclarecimento coletivo, digna de liberdade e respeito para consigo e para cada um de seus membros. Com isso, o ser humano tem, pois de ser educado para o bem, mas aquele que deve educa-lo é novamente um ser humano que ainda se encontra em meio à rudeza da natureza e deve realizar aquilo de que ele mesmo necessita. 5 No trecho da Antropologia de um ponto de Vista Pragmático, o trajeto percorrido pela razão e sua contribuição para o progresso e amadurecimento humano quanto à arquitetônica da teoria moral kantiana, equivale, neste sentido, a formação de indivíduos e influências destes quanto à educação recebida e a tarefa e desafio de aprimorar desta educação para as próximas gerações. Embora se reconheça que a geração atual não dispõe de entendimento claro e maduro o suficiente para lidar com o domínio sensível dos apetites e paixões próprios de cada cultura, há o reconhecimento da inclinação, vícios e desejos, como fonte impura para fundamentar ações boas. É, no entanto, por meio da instrução, a qual auxilia a construção de uma vontade ancorada em princípios e no dever moral e que orienta a referência ética de ação moral como virtuosa em si. Por ora, a transição de um estado rústico a um estado de esclarecimento ético, o qual o se é capaz de agir de forma autônoma e responsável, atrela-se indispensavelmente a tutela de um senhor que ditará a seu servo, em sentido disciplinar, quais 4 KANT, I. Sobre a pedagogia. p. 15. 5 KANT, I. Antropologia de um ponto de vista pragmático. p. 219. 70

vontades lhe são permitidas. Aqui, a ideia de servo pode ser associada à criança ou ao jovem adolescente, os quais não possuem autonomia para gerenciar seus desejos egoístas, próprios da natureza humana, e que necessitam de uma formação que direcione suas vontades limitadas a uma posterior vontade livre e moral. 3. A vontade moral como superação à vontade vigiada No que tange a vontade de um ser racional, cabe aqui salientar e diferenciar dois tipos de vontade vontade limitada e a vontade autônoma, que servirão como ponto de partida para a compreensão da proposta de emancipação do ser humano de sua menoridade, estado este de dependência e imaturidade de entendimento do agir, característicos da menoridade em âmbito moral e pedagógico. Tal proposta de emancipação da vontade vigiada para a vontade livre, em tom instrutivo, está ancorada na ideia de um ser racional que é fruto da formação disciplinar, a qual, juntamente e, principalmente, com a instrução de princípios, favorece o abandono da vontade rude em prol da responsabilidade de escolha e consciência de pertencimento a uma coletividade que o acolhe; este se reconhece como membro e agente do processo de melhoramento da espécie que, consequentemente, a partir da vontade livre compartilha deste fio condutor da boa ação, em vista de um sistema moral universal, válido para todo ser racional. A vontade do servo, ou seja, daquele que, a princípio, em vista do compromisso moral, não tem liberdade da vontade em sentido da autonomia da razão, pois, isto se dá devido à ausência parcial ou total da noção de ação ligada ao dever (devido aos traços de imaturidade racional e instrutiva), presente no indivíduo que não reconhece em si a vontade inteligível, e que deve respeitar a vontade de seu superior ou instrutor, e aceitar-se como servo. 6 No sentido de que a vontade deste, que age por servidão dos impulsos, deve, em tom disciplinar, se subordinar a vontade de um superior, que será seu guia inteligível. Isto se explica pelo fato de que a menoridade, em sentido de entendimento da ação, se deleita por inclinações e desvios típicos da vontade irracional, no sentido de satisfação imediata de suas necessidades individuais que se sobrepõem ao interesse de uma coletividade ou a vida em comum; com isso, após a natureza os ter há muito libertado do controle alheio (naturaliter maiorennes), continuem, no entanto, de boa vontade menores durante toda vida 7, tal sujeito 6 KANT, I. Antropologia de um ponto de vista pragmático. p. 31. 7 KANT, I. Resposta à pergunta: que é o iluminismo? p. 11. 71

prefere permanecer de forma vitalícia no comodismo da menoridade ao se impor como responsável pela própria vontade, assumindo a responsabilidade de agir autônoma e moralmente em suas ações, nutrindo a ideia de uma perfeição da natureza humana. O abandono da menoridade é um dos pontos chave para a conquista de determinados propósitos humanos, sendo eleita a moralidade como caminho árduo, porém o mais seguro que conduzirá a proposta de elevação da espécie humana em grau sempre superior de excelência da ação. O segundo tipo de vontade é aquela representada pela razão prática, isto é, aquela que se caracteriza como requisito essencial da razão moral, ou seja, a maioridade ética, onde a autonomia da vontade, que é infalivelmente livre, segue passo que a própria razão do sujeito determina como obrigação moral em forma de mandamento. A vontade é boa quando respeita a dignidade humana em caráter universal, onde se age segundo princípios que tenham o outro como fim em si e não apenas como meio para se conquistar qualquer outra finalidade. Kant infere que, na medida em que a vontade pode determinar a capacidade de escolha, ela é, de fato, a própria razão prática. 8 Mas, no entanto, mesmo quando se age por imperativo da vontade livre da razão, à vontade juntamente com capacidade de escolha autônoma, guiada pelo dever e necessidade de satisfação da vontade em prol de algo bom e, mesmo sob o suporte da razão prática, este mandamento, em forma de imperativo da ação boa, pode se enquadrar em um imperativo imperfeito. Esta impureza ou falha do dever quanto ao agir moral, por já estar corrompido ou por escamotear a real intenção da ação, seja uma ação que coloca em prática princípios, aparentemente, éticos, a qual está comprometida pelo interesse em não apenas fazer o bem, mas buscar algum reconhecimento ou recompensa na ação que transpareça bondade em si, como meio e não como finalidade de seu comprometimento moral a partir de uma vontade autônoma; a ação que preza, mesmo que não intencionalmente, a ação boa como meio de determinado fim, é conforme o dever, e este imperativo chama-se imperativo hipotético. No imperativo hipotético, porém, não se caracteriza ainda como possível maioridade ética, mesmo sob a fonte pedagógica, indivíduo em plena razão tenha recebido instrução quanto a princípios do dever, permanece, por preguiça ou cobardia, obscuro em seu querer limitado, cômodo, sem que recorra ao sacrifício e esforço individual em prol do imperativo categórico fundado em uma ética do dever, isenta de interesse da ação boa como meio, mas sim na aplicação de máximas como fins em si. Assim, segue: 8 CAYGILL, H. Dicionário Kant. p. 319. 72

Uma pessoa encontra em si um talento natural que, cultivado em certa medida, poderia fazer dele um homem útil sob vários aspectos. Mas encontra-se em circunstâncias cômodas e prefere ceder ao prazer a esforçar-se por alargar e melhorar as suas felizes disposições naturais. Mas está em condições de poder perguntar ainda a si mesmo se, além da concordância que a sua máxima do desleixo dos seus dons naturais (...) concorda também com aquilo que se chama dever. 9 O Imperativo categórico contribui como referência de uma boa vontade, ação esta realizada por dever e interesse no resultado em si como fim, o qual a intenção compromete-se consigo mesma, de forma esclarecida, devido ao esforço individual e contribuição pedagógica recebida; estes atributos colocam o indivíduo na condição de pertencer a um mundo inteligível, a qual cada membro comprometido livremente com um fim cosmopolita unificado, é membro, é paralelamente, de uma comunidade ética. Uma boa vontade, conforme Kant, é a reprodução no exemplo de vontade em mais alto grau de excelência, que funciona como ideal a ser perseguido e que mais precisa de ser esclarecida do que ensinada. 10 Desta forma, o esclarecimento requer, em âmbito prático [u]m entendimento correto, um juízo exercitado e uma razão profunda constituem a inteira extensão da faculdade de conhecimento intelectual, principalmente quando esta é julgada também como habilidade para a promoção do prático, isto é, para fins. 11 Tornar-se esclarecido, em âmbito prático, ou seja, atender as exigências da razão prática, é aproximar-se de uma maioridade ética, é fazer ressaltar o reconhecimento de si e da intenção que motiva a ação, diferenciando, sob luz clara do entendimento, a ação moral conduzida pelo ideal de dever. Ser conduzido pelo entendimento liberto de possíveis preconceitos ou fundamentos não confiáveis para admitir determinadas posições, é estar alinhado ao conceito de uma boa vontade. Pela definição de Kant, [a] menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. Tal menoridade é por culpa própria se a sua causa não reside na falta de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo sem a orientação de outrem. 12 Sobretudo, a menoridade é a incapacidade de abandono do comodismo em que o próprio sujeito é responsável; da vontade própria como pessoa e de mobilizar-se via conduta esclarecedora que se apresenta como potencial e agente livre e também responsável por uma comunidade de iguais. Assim, a menoridade entende-se pelo deleito comodista em não pronunciar-se, intelectualmente ou mediante ação a leis morais; o abandono da menoridade 9 KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes. p. 61. 10 KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes. p. 26. 11 KANT, I. Antropologia de um ponto de vista pragmático. p. 96. 12 KANT, I. Resposta à pergunta: que é o iluminismo? p. 11. 73

ética requer esclarecimento moral, e não se manifesta tão só mediante contemplação passiva ou às provas dos mais esclarecidos moralistas, mas também ao juízo moral de cada ser humano, desde que pretenda pensar claramente uma tal lei. 13 4. O cosmopolitismo moral como amadurecimento da humanidade como espécie Pensar mediante luz clara a lei moral é comprometer-se ao dever moral como entendimento comprometido que, constantemente, como membro livre, se reconhece como tal e na conquista da maioridade ética pertencente a um universo cosmopolita e inteligível. De tal modo, o dever moral é, pois, um próprio querer necessário seu como membro de um mundo inteligível, e só é pensado por ele como dever na medida em que ele se considera ao mesmo tempo como membro do mundo sensível. 14 Esta consciência de pertencimento paralelo a um mundo sensível, unificado pela característica racional de seus membros, em termo cosmopolita, e inteligível, como referência moral e uso da ação como dever, satisfazem e estimulam o abandono da menoridade e a adoção de uma postura de independência do querer, frente à autonomia do entendimento e sua aplicabilidade perante as influências do mundo inteligível no sensível, na liberdade negada e na liberdade permitida pela moralidade, o que Kant reafirma como compromisso do ente como pertencente a mundo inteligível que com responsabilidade para com humanidade em si, para si e para com o outro, com objetivo constante de unificação de um sistema cosmopolita que represente o amadurecimento do caráter humano e conquista da liberdade moral: Ora, num mundo inteligível, isto é, moral, em cujo conceito abstraímos de todos os empecilhos à moralidade (inclinações), pode-se também pensar como necessário um tal sistema de uma felicidade proporcional ligada à moralidade, pois a própria liberdade, em parte movida e em parte restringida por leis morais, seria a causa da felicidade universal; conduzidos por tais princípios, os próprios entes racionais seriam os autores de seu próprio bem-estar duradouro ao mesmo tempo em que seriam os autores do bem-estar dos outros. 15 Para Kant, a conquista deste fim último da perfeição da natureza humana, que pode se desencadear em felicidade universal como consequência de um agir moral e não como o fundamento da ação em vista deste fim. A noção de um cosmopolitismo dos povos sugere o pulsar de uma meta continua de elevação do caráter humano em geral, a partir do uso da 13 KANT, I. Crítica da razão pura. p. 224. 14 KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes. p. 105. 15 KANT, I. Crítica da razão pura. p. 225. 74

razão. Esta razão, mediadora e legisladora de um sistema racional unificado, responsável pela conquista de uma liberdade necessária é a chave da conquista da moralidade. Conclusão Em Kant, a conduta do ser humano deve ser pensada como a evolução da espécie e não como aprimoramento de um grupo ou de uma determinada comunidade, mas sim, na finalidade da humanidade que percorre uma meta continua de melhoramento do gênero, o qual nunca retrocede seu aprimoramento enquanto busca do ideal de natureza humana, somente avança. Este ideal se torna eficaz se paralelamente destacarmos o papel e importância da educação na formação humana como modelador, esclarecedor e instaurador de princípios do agir, a partir da distinção dos tipos de vontade. No que foi exposto, esclarece-se a elevação do aprimoramento racional em balizar a verdadeira ação por dever, em forma de imperativo categórico, o qual é sinônimo de maioridade ética, frutos da aplicação da dignidade e respeito, guiados pela razão prática; deste modo, libertando o homem de sua rudeza e tornando-o livre, responsável e atuante na atual geração, comprometendo-se expressivamente, desta forma, como as gerações futuras hão de partir sempre de um estágio mais esclarecido e menos rústico no que se refere ao entendimento intelectual e moral da comunidade humana. Referências CAYGILL, Howard. Dicionário Kant. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: que é o iluminismo?. In: KANT, Immanuel. À paz perpétua e outros opúsculos. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1988. KANT, Immanuel. A religião nos limites da simples razão. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1995. KANT, Immanuel. Antropologia de um ponto de vista pragmático. Tradução de Clélia Aparecida Martins. São Paulo: Iluminuras, 2006. KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de Valerio Rohden e Udo Baldur Moosburger. Coleção os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1991. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1995. 75

KANT, Immanuel. Sobre a pedagogia. Tradução de Francisco Cock Fontanella. Piracicaba: Unimep, 2011. Recebido em 22 Ago. 2013 Aceito em 15 Dez. 2013 76