EDUCAÇÃO E CRIMINALIDADE: DISCURSOS ACERCA DA REDUÇÃO DA CRIMINALIDADE EM PERNAMBUCO NAS DÉCADAS DE 1880 E DE 1890.

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EDUCAÇÃO E CRIMINALIDADE: DISCURSOS ACERCA DA REDUÇÃO DA CRIMINALIDADE EM PERNAMBUCO NAS DÉCADAS DE 1880 E DE 1890. LAÉRCIO ALBUQUERQUE DANTAS 1 Em 1896, Clovis Bevilaqua escrevia Criminologia e Direito, livro que consistia numa série de artigos seus publicados anteriormente na Revista Academica da Faculdade de Direito do Recife e na Revista Brazileira. Como o próprio título sugere, o livro é divido em duas partes: a primeira versa sobre as novas teorias jurídico-penais, sobre a Antropologia Criminal e a Sociologia Criminal; já a segunda parte do livro diz respeito a temáticas diversas do âmbito do direito, como sua história, filosofia jurídica, entre outras. Nesta fala iremos nos ater apenas a primeira parte do livro. Na época em que escreveu esse livro, Bevilaqua já era bastante conhecido no meio letrado: era professor da Faculdade de Direito do Recife desde 1889 devido a reforma Benjamin Constant; autor de livros como A Philosophia Positiva no Brasil e Economia Política e Direito; abolicionista e republicano desde de seus anos de mocidade acadêmica ao lado de outro bacharel bastante atuante e conhecido localmente e, depois, nacionalmente, Isidoro Martins Junior. A poreminência acadêmica do autor também garantiu-lhe uma resenha elogiosa de Criminologia e Direito na Revista Brazileira em 1898 por Carvalho Mourão 2. Na primeira parte do livro, Bevilaqua se preocupou em elucidar qual seu posicionamento sobre as novas teorias jurídico-penais. Nesse sentido, o autor não poupou críticas aos pontos de convergência das abordagems de Cesare Lombroso, Enrico Ferri e Raffaele Garofalo, reconhecendo-lhes os méritos e atacando o que considerava exageros. Para não nos determos muito nessa questão, que não é o ponto central de nossa fala, vamos enumerar rapidamente as críticas do autor de Criminologia e Direito: a primeira dizia respeito ao exagero que a escola antropológica teria cometido ao se deixar levar pela teoria dos organismos sociais, e, assim, propor a eliminação do sujeito criminoso devido à simplificação e ao exagero da reação penal (BEVILAQUA, 1896: 15); a segunda crítica seria o caráter 1 Mestrando em História pela Universidade Federal de Pernambuco, bolsista CAPES. 2 A resenha de livros era uma prática comum na Revista Brazileira. A resenha de Carvalho Mourão sobre a livro de Bevilaqua se encontra em: Revista Brazileira, Rio de Janeiro, ano 4, tom. 13, jan-mar, 1898.

2 puramente biológico de suas interpretações das modalidades criminais, que teria por consequências não só a falta de crença na pena enquanto força modificadora do criminoso e intimidadora do delito, como também a inexistência do crime, tido pelos defensores da Antropologia Criminal como uma entidade abstrata (BEVILAQUA, 1896: 15). Dessa forma, Bevilaqua se afastou das teorias que se prestavam a explicar o indivíduo criminoso através dos aspectos biológicos, e se aproximou dos autores que defendiam a maior importância do aspecto social, do meio, na formação desse indivíduo. Assim, Gabriel Tarde e Bernardino Alimena figuraram mais como argumento de autoridade no texto do professor da Faculdade de Direito do Recife, do que autores como Cesare Lombroso e Enrico Ferri. Isso não significa, como já dissemos, que Bevilaqua não creditasse avanços significativos às teorias dos principais autores da Antropologia Criminal, nem que ele descartasse a importância dos aspectos biológicos na gênese do delinquente. Entre as contribuições, o autor cita a negação do livre-arbítrio, a insistência na ideia de defesa social, o estudo do delinquente e do delito e a maior atenção dada à prevenção do crime (BEVILAQUA, 1896: 15). Sobre a importância dos aspectos biológico na gêneso do criminoso o autor afirmou: No crime, como no direito, e mais visível naquelle do que neste, há um aspecto puramente biológico: são as raízes, os fundamentos, as condições primarias. Mas esse bolbo não germinaria si não encontrasse o meio social. Dahi o aspecto social do direito do crime, o qual é consideravelmente preponderante (BEVILAQUA, 1896: 20). Dessa forma, as ideias de Bevilaqua sobre os apectos formadores do criminoso abrangiam o meio social e a formação biológica do mesmo. Essa apromixação entre as duas perspectivas já foi explorada no livro de Marcos Cezar Álvarez, Bacharéis, Criminologistas e Juristas, no qual ele fez a seguinte afirmação sobre os estudiosos das teorias jurídico-penais no Brasil: Os diferentes autores no Brasil se distribuem, deste modo, entre escolas antropológicas ou sociológicas principalmente pelo acento maior ou menor que atribuem aos fatores biológicos ou socioculturais na etiologia do crime, mas não discordam que a compreensão do crime e do criminoso requer a presença simultânea das duas abordagens. (ALVAREZ, 2003: 78)

3 Na nossa leitura do texto de Bevilaqua, somos levados a mesma conclusão de Álvarez no que diz respeito a presença simultânea das duas abordagens, entretanto, isso não ocorre apenas nos autores brasileiros. Por não pretendermos nos delongar nessa questão citemos o caso de Alexander Lacassagne que, em relação a gênese do indivíduo deliquente, lembra muito a afirmação de Bevilaqua quando diz que o criminoso é um elemento sem importância, senão no dia em que encontra o caldo que o faz fermentar 3. Segundo Kaluszynski, Lacassagne teria sido o chefe de um grupo unido em torno do fenômeno do crime e que tinham em comum a oposição às teorias de Lombroso. O grupo seria a escola de criminologia de Lyon e teria como foco a influência do meio social sobre os indivíduos criminosos. Assim o indivíduo poderia possuir uma predisposição para o crime, mas era o meio que definiria se ele seira ou não criminoso. Os aspectos externos como processos patológicos e condições atmosféricas, e principalmente os aspectos sociais como pobreza, imitação e vadiagem seriam mais importantes para os criminologistas franceses. Apesar disso, os aspectos biológicos continuaram sendo importantes para os membros da escola de Lyon (KALUSZYNSKI, 2006: 303-304). Lacassagne, por exemplo, que defendia a centralidade do meio social para a formação do indivíduo criminoso, não deixou de afirmar, que genes defeituosos poderiam provocar o nascimento de indivíduos criminosos (RENNEVILLE, 1994: 193-194). Além da aproximação entre as duas abordagens, entre aspectos biológicos e sociais na formação do criminoso, Bevilaqua e Lacassagne também creditaram à educação um papel importante dentro dos fatores do meio social que poderiam levar ou evitar a formação do deliquente. Bevilaqua, em especial, contrapõe à questão racial justamente a falta de educação como fator que geraria um aumento da criminalidade no Estado do Ceará, local por ele escolhido para realizar seu estudo sobre criminalidade e que resultou em uma série de artigos contidos em Criminologia e Direito. Em seus estudos a partir das estatísticas criminais, o autor chegou a conclusão de que os crimes cometidos por indivíduos indígenas e negros eram maiores do que os cometidos por 3 No original a frase é: c'est le bouillon de culture de la Criminalité, le microbe, c'est le criminel, un élément qui n'a d'importance que le jour où il trouve le bouillon qui le fait fermenter. In: ARCHIVES DE ANTHROPOLOGIE CRIMINELLE ET DES SCIENCES PENALES. Paris, Tome Trosième, 1888. p. 166.

4 brancos, mas isso não se devia a uma questão racial, a uma predisposição racial para o crime ou para o atavismo, mas por defetio de educação e pelo impulso do alcoolismo (BEVILAQUA, 1896: 92-94). Por educação, o autor entedia aquella que se recebe no lar e no convívio social, ligada à inclinação recebida hereditariamente (BEVILAQUA, 1896: 94). Aqui, Bevilaqua novamente lembrou que a predisposição biológica, ou seja, hereditária, também é um fator importante a ser levado em consideração, mas o peso maior residiria justamente na educação. Essa educação propalada por Bevilaqua não se restringiria apenas a instrução, dois conceitos diferentes na opinião do autor. Por instrução, ele entendia o ler, escrever, contar, etc. por outro lado a educação seria algo mais, seria cívica, deveria injetar os preceitos de moral e do direito a fim de melhor disciplinar a vontade: Não basta meter a carta de a b c nas mãos do povo (a quam pouco se o tem feito!); é preciso dar-lhe educação cívica. Que elle apprenda a ler, e apprenda em muito maior escala do que actualmente, pois é triste que de cem homens 85 sejam completamnete analphabetos. Mas que com a articulação das syllabas se lhe injetem os preceitos da moral e do direito, e não simplismente falando à intelligencia, mas principalmente ao sentimento, para melhor disciplina da vontade (BEVILAQUA, 1896: 95). A relação acima apontada por Bevilaqua entre falta de educação e criminalidade não era nova e nem foi por ele invetada, mas já remontava ao fim da década de 1879, época em que discussões sobre as reformas educacionais estavam a todo vigor. Segundo Cynthia Veiga, a escola elementar pública no século XIX teria se destinado às crianças pobres, mestiças e negras com o objetivo de civilizar estes indivíduos a fim de produzir uma coesão social, ou seja, produzir uma homogeneização cultural da população brasileira (VEIGA, 2008: 503-504). Essa mesma tese é defendida por Ana Luiza Costa ao tratar do caso das escolas noturnas no Rio de Janeiro entre os anos de 1870 e 1889. Para a autora, essa homogeneização cultural faria parte de um projeto político-pedagógico elitista cuja orientação não seria acabar com o analfabetismo, mas organizar hierarquicamente saberes e posições sociais. Esse projeto defendido por setores das elites, segundo Costa, teria por alvo elementos das classes perigosas e da massa de degenerados que através da educação poderiam ser regenerados e incorporados de forma subalterna aos valores da civilização (COSTA, 2011: 55).

5 Sobre essa mesma questão, Maria Helena Patto escreveu um interessante texto no qual analisa os pareceres de 1882 e de 1883 de Rui Barbosa sobre a educação pública. Nessa análise a autora constatou a existência de uma lógica educacional que denominou de escolas cheias, cadeias vazias. Para a autora, esta forma de pensar a educação estaria presente desde a reforma do ensino de 1879 empreendida pelo ministro Leôncio de Carvalho, e consistia em que estimular a educação teria por benefício não apenas o desenvolvimento das forças produtivas, mas também a redução dos gastos com segurança pública, pois diminuiria o número de enfermos, indigentes e criminosos (PATTO, 2007: 248). Segundo Patto, o mesmo discurso de que investir na educação levaria a uma diminuição da criminalidade estava presente no parecer de Rui Barbosa de 1882 sobre o projeto de reforma do ensino de Leôncio de Carvalho. Ao analisar o projeto de Rui Barbosa, Patto procurou demonstrar que o autor pensava a educação como um instrumento para diminuir a criminalidade (PATTO, 2007: 251). Ao lermos alguns dos pronunciamentos e relatórios de chefes de polícia e de presidentes de província de Pernambuco, deparamo-nos com discursos semelhantes sobre a relação da educação com a criminalidade. Em 1882, quando o então presidente da província de Pernambuco, Antônio Epaminondas de Barros Correia, passava seu cargo para seu sucessor asseverou o seguinte sobre a instrução e segurança públicas: Deve continuar a merecer a vossa atenção e solicitude este importante ramo do público serviço, attenta a certeza que deveis ter da grande influência, que ella exerce sobre os costumes. É por demais que vos repito o que se já tem dito muitas vezes diffundir a instrucção é concorrer para o adoçamento dos costumes e por conseguinte para a diminuição da estatística criminal. 4 A mesma preocupação foi esboçada por outro presidente da província de Pernambuco em 1881, Franklin Dória: a utilidade da instrucção, sob o duplo aspecto privado e social, tornou-se tão evidente, que, hoje em dia, todas as nações cultas consideram a instrucção como um 4 Falla com que o Exm. Dr. Antonio Epaminondas de Barros Correia 1º vice-presidente da província abrio a sessão da Assembleia Legislativa de Pernambuco em 1º de março de 1882 e officio com que o mesmo doutor entregou a administração da província ao Exm. Sr. Conselheiro Liberato Barroso. Pernambuco, Typographia de Manoel Figuerôa de Faria & Filhos. p.16.

6 elemento essencial, não só da grandeza e prosperidade, mas também da sua segurança material. 5 Curiosamente ambos os presidentes de província falaram de instrução e não de educação, como queria Bevilaqua. Os chefes de polícia desses mesmos anos e dos anos seguintes falaram de falta de educação, seja ela cívica, religiosa ou intelectual para explicar os índices de criminalidade naquela década. No relatório de 1881 redigido pelo chefe de polícia Francisco Manoel Paraizo Cavalcante, por exemplo, os motivos para a perpetração dos delitos em Pernambuco seriam a ignorância, o atraso dos costumes, a imperfeição da organização administrativa policial e a insuficiência dos meios de repressão e prevenção dos delitos. Já para Joaquim da Costa Ribeiro, chefe de polícia nos dois anos seguintes a Francisco, a falta de educação intelectual e moral das classes mais baixas seriam as principais causas da criminalidade: Por um lado a notavel circunstancia de sahir das classes inferiores da sociedade a quasi totalidade dos delinquentes conhecidos, bem mostra quanto contribue para a pratica dos actos criminosos a falta de educação intellectual e moral 6. Nos anos de 1884 e 1886 os chefes de polícia foram outros, mas o discurso permaneceu o mesmo. Tanto para Raymundo Theodorico de Castro e Silva quanto para Antonio Domingos Pinto, ambos juízes e chefes de polícia nos anos acima citados, a falta de educação cívica e religiosa eram as principais causas para os crimes cometidos, em sua maioria, pelas camadas menos favorecidas da sociedade 7. O que evidenciaria o fato da população ainda estar longe de atingir o grau de moralidade desejado pelas autoridades públicas 8. 5 Falla com que o Exm. Dr. Franklin Américo de Menezes Doria abrio a Sessão da Assembleia Legislativa de Pernambuco em 1º de março de 1881. Pernambuco, Typographia de Manoel Figuerôa de Faria & Filhos, 1881. 6 Falla com que o Exm. Sr. Conselheiros Francisco Maria Sodré Pereira abrio no 1º de março de 1883 a Assembleia Legislativa provincial de Pernambuco. Pernambuco: Typographia de Manoel Figueiroa de Faria e Filhos, 1883. Secção 2: Secretaria de Policia de Pernambuco 15 de feveireiro de 1883, p. 2. 7 Falla com que o Exm. Sr. Presidente Desembargador José Manuel de Freitas abrio a sessão da Assembleia Legislativa provincial de Pernambuco no dia 3 de março de 1884. Recife: Typographia de Manoel Figueiroa de Farias e Filhos, 1884. Secção 2: Secretaria de Policia de Pernambuco 15 de feveireiro de 1884, p. 2. 8 Falla que o presidente da província Conselheiros José Fernandes da Costa Perreira Junior dirigio à Assembleia Legislativa de Pernambuco no dia de sua instalação a 6 de março de 1886. Recife: Typographia de Manoel Figueiroa de Faria e Filhos, 1886, p. 5

7 Pelos relatos anteriores fica óbvio que para Antonio Domingos Pinto, chefe de polícia no ano de 1887, ainda não havia se atingido o desejado grau de moralidade, uma vez que os crimes de ferimento e homicídio eram, em geral, praticados por membros das classes mais baixas da sociedade, indivíduos, a seu ver, completamente sem instrução. Assim sendo, a ignorância seria o motivo de tanta criminalidade nessa camada da população e a difusão do ensino, seu remédio. Por fim, para o chefe de polícia, a educação e os meios de correção, mesmo que imperfeitos, necessariamente levariam à modificação do estado de segurança particular num futuro mais ou menos próximo. 9 O número de crimes em 1888 continuou elevado no entender do chefe de polícia Francisco Domingues Ribeiro Vianna e os motivos já eram bastante conhecidos e repetidos: as causas principaes de semelhante estado de cousas são, a meu vêr, a falta de instrucção e de educação, e a impunidade. Entre nós a maior parte da população é composta de indivíduos inteiramente sem intrucção, e sendo a instrucção a base de uma boa educação segue-se que esta deve ser pessima.(...) D ahi a consequencia é que individuos nascidos em um meio em que a instrucção é nulla e a educação pessima, começando a receber logo máos exemplos, e sendo estes os que mais influem nas ações humanas, entram para a sociedade cheios de vicios e propensos ao crime. 10 Assim, o chefe de polícia Ribeiro Vianna acreditava que a educação e o meio ambiente no qual o indivíduo estava inserido eram preponderantes para o desenvolvimento de tendências criminosas. Como vimos, Bevilaqua também acreditava que a educação e o meio no qual o indivíduo estava inserido eram fatores deveras importante na formação do criminoso. Mas, aos dois aspectos anteriores, o professor de direito acrescentou fatores biológicos, tendências recebidas hereditariamente. Esse ascréscimo deveu-se, acreditamos, as novas discussões sobre 9 Falla que á Assemblea Legislativa Provincial de Pernambuco no dia de sua installação a 2 de março de 1887, dirigio o Exm. Sr. presidente da provincia, Dr. Pedro Vicente de Azevedo. Recife:Typographia de Manoel Figueiroa de Faria e Filhos, 1887.1ª secção: Secretaria de Policia de Pernambuco, 15 de fevereiro de 1887, p. 15. 10 Annexos á fallaque á Assembléa Legislativa provincial de Pernambuco no dia de sua installação a 15 de setembro de 1888, dirigio o Exm. Sr. presidente da provincia, desembargador Joaquim José de Oliveira Andrade. Recife:Typographia de Manoel de Figueiroa Faria e Filhos, 1888,p.2

8 o indivíduo criminoso provenientes da Antropologia Criminal que chegaram ao Recife na década de 1880 e, com maior repercussão, na década de 1890. 11 Os relatórios dos chefes de polícia do final da década de 1890 12 seguiram a mesma lógica, apresentaram dois aspectos novos em relação aos da década anterior: a presença de citações de autores das novas ideias jurídico-penais como Garofalo, Tarde e Ferri; e, por consequência, as ideias desses autores, com a presença constante, a partir daí, dos conceitos de atavismo e hereditariedade em conjunto com o de meio social. Lendo esses relatórios, concordamos mais uma vez com Marcos Cesar Álvarez quando este afirma que havia a presença das duas abordagens na interpretação do crime. (ALVAREZ, 2003: 78) Assim, nos relatórios de 1898 e de 1899, encaminhas pelo questor Antonio Pedro da Silva Marques ao governador do estado de Pernambuco daqueles anos, a educação popular, a moralidade e o bem-estar social apareceram como os remédios para as principais fontes de crimes: a ignorância e a miséria. Entretanto, as leis da hereditariedade e do atavismo também estavam presentes no relatório quando o questor tratou dos ex-setenciados do presídio de Fernando de Noronha: em virtude das leis da hereditariedade e do atavismo a prole do criminoso tem tendencia para o crime, tendencia que só poderia ser modificada pela educação em outro meio. 13 As afirmações de Antonio Marques foram seguidas quase sempre de algumas das autoridades juridico-penais daquele momento, principalmente Gabriel Tarde e Raffaele Garofalo. Mas, o mais interessante é que mesmo com a presença dos aspectos biológicos na 11 As primeiras notícias sobre a recepção das novas ideias jurídico-penais em Recife, datam de 1882 e de 1884, com os escritos de Tobias Barreto de Menezes em Menores e loucos e de João Vieira de Araújo em Ensaio de direito penal, ou, repetições escriptas sobre o Codigo criminal do Imperio do Brazil. Entretanto, essas novas ideias só ganham força dentro do mundo acadêmico recifense na década de 1890, quando elas passam a serem debatidas na Revista Academica da Faculdade de Direito, em periódicos locais, nas teses do concurso para professor da cadeira de Direito Penal de 1898 e em livros, como o de Clovis Bevilaqua já citado aqui. 12 Citamos apenas os relatórios do final da década de 1890, pois os anteriores a 1898 não possuem detalhes sobre as criminalidades daqueles anos. Provavelmente a situação de instabilidade política em Pernambuco nos anos posteriores a proclamação da República, presentes inclusive nesses relatórios, impediram uma produção de relatórios mais detalhados e de melhor qualidade sobre os aspectos ligados ao crime. 13 Relatorio apresentado ao senhor Dr. governador do estado de Pernambuco pelo questor Dr. Antonio Pedro da Silva Marques em 31 de janeiro de 1898. p. 3. In: Mensagem apresentada ao Congresso Legislativo do Estado em 6 de maio de 1898 pelo governador Dr. Joaquim Correa de Araújo. Pernambuco: Typographia de Manoel de Figuerôa de Faria e Filhos. 1898.

9 sua compreensão do criminoso, o atavismo e a hereditariedade, para Antonio Marques a educação não perdeu sua posição preponderante no desenvolvimento do indivíduo deliquente. Nesse sentido, mesmo com a presença forte da Antropologia Criminal na Faculdade de Direito do Recife através do professor de Direito Penal João Vieira de Araújo, um dos principais defensores das ideias dessa vertente jurídico-penal 14, o meio social, em conjunto com a educação, figuraram como um dos fatores essenciais para a compreensão do delinquente nas décadas de 1880 e de 1890. De Clovis Bevilaqua aos chefes de polícia dessas décadas, nenhum deles deixou de apontar a educação ou sua falta como fator essencial na formação do criminoso. Referências bibliográficas: ALVAREZ, Marcos Cesar. A criminologia no Brasil ou como tratar desigualmente os desiguais. DADOS, Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, vol. 45, nº 4, 2002, pp. 677-704.. Bacharéis, Criminologistas e Juristas: saber jurídico e nova escola penal no Brasil (1889-1930). São Paulo: IBCCRIM, 2003. BEVILAQUA, Clovis. Criminologia e Direito. Salvador: Livraria Magalhães, 1896.. História da Faculdade de Direito do Recife. 2ª. ed. Brasília: INL- Conselho Federal de Cultura, 1977. COSTA, Ana Luiza Jesus da. As escolas noturnas do município da corte: Estado imperial, sociedade civil e educação do povo. Educação Social. Campinas, vol. 32, nº. 114, jan.-mar 2011, pp. 53-68. 14 João Vieira de Araújo foi um dos principais defensores das ideias de Lombroso e de Ferri no Brasil. Além de ter publicado uma série de artigos no períodico O Direito durante o final de década de 1880 e toda a década de 1890, também fez parte da comissão de revisão do Código Penal brasileiro de 1890 e fez algumas propostas enquanto deputado que iam ao encontro das teorias da Antropologia Criminal, como a pena de morte por ele proposta em 1891. ALVAREZ, Marcos Cesar. A criminologia no Brasil ou como tratar desigualmente os desiguais. DADOS, Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, vol. 45, nº 4, 2002, pp. 677-704; Discuso pronunciado no Congresso Nacional na sessão de 28 de janeiro de 1891 pelo Dr. João Vieira de Araújo. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1891.

10 KALUSZYNSKI, Martine. International congresses of criminal anthropology: shaping the French and international criminological movement (1886-1914) In: BECKER, P., WETZELL, R. (eds.), The Criminal and his Scientists: Essays on the History of Criminology in International Perspective. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, pp. 301-316. PATTO, Maria Helena Souza. Escolas cheias, cadeias vazias nota sobre as raízes ideológicas do pensamento educacional brasileiro. Estudos Avançados, vol. 21, 2007, pp. 243-266. RENNEVILLE, Marc. L anthropologie du criminel en France. Criminologie, vol. 27, n 2, 1994, pp. 185-209. VEIGA, Cynthia Greive. Escola pública para os negros e pobres no Brasil: uma invenção imperial. Revista Brasileira de Educação, vol. 13, nº. 39,set/dez de 2008, pp. 502-516